Os seres humanos são programados para gostar da norma, e quem sai do padrão, seja qual for o motivo, sofre por se sentir diferente, isolado e até discriminado. Os olhares podem doer muito para quem é muito alto, muito baixo, muito gordo, muito magro, tem doenças de pele e deficiências aparentes ou perdeu o cabelo na quimioterapia.
Mas uma lei feita especialmente para criminalizar a discriminação por peso ou altura ajuda ou atrapalha? Uma empresa pode ser obrigada a contratar um funcionário obeso? Não existem funções que exigem determinadas características físicas? Como um comissário de bordo muito acima do peso se movimenta nos espaços mínimos dos aviões ou um piloto de mais de 2metros de altura se coloca na cabine (na aeronáutica brasileira, os candidatos a piloto têm que ter entre 1,64 e 1,87 metro)?
O mundo muda, e num país de alto índice de obesidade como os Estados Unidos, as condições mudam também. Se um agente da lei precisasse estar em forma, como se supõe a respeito de suas exigências profissionais, Nova York não teria policiais que parecem incapazes de correr mais do que dez segundos – ou nem isso.
A nova lei assinada pelo prefeito da cidade, Eric Adams, um ex-policial que perdeu 16 quilos com uma dieta vegana, vai ser um teste para os novos padrões. Ela abre a possibilidade de que os empregadores podem ser onerados por uma onda de processos ancorados na gordofobia. Também existe o risco de que a lei avance mais um passo na normalização do excesso de peso, com todos os riscos que implica para a saúde.
“Legisladores de todo o país deveriam seguir o exemplo de Nova York e ampliar as proteções civis para corpos de todos os tamanhos”, comemorou uma ativista – sem muita atividade física, aparentemente – da diversidade corporal que se denomina Tigress Osborn. “As pessoas querem liberdade de tamanho, vamos dar isso a elas.”
Outra “ativista da gordura”, Victoria Abraham, que cria conteúdo online, disse à CNN que “ao chegar para uma entrevista de emprego, já estou em desvantagem, quaisquer que sejam minhas qualificações”.
É, indubitavelmente, verdade, em especial para as mulheres: diversos estudos mostram que os rendimentos caem na proporção da gordura de trabalhadoras, mas tendem a se manter estáveis para os homens acima do peso. Tal como é evidente que as campanhas de publicidade e os desfiles de moda com mulheres gordas implicam numa certa mistificação: querem parecer inclusivos, mas voltam muito rapidamente para modelos esguias e lindas – exatamente o que a maioria esmagadora das mulheres deseja ver, mesmo que finja que não.
A “inclusão”, geralmente falsa, obedece a dois imperativos. Primeiro, muitas empresas querem se proteger de eventuais processos, fazendo preventivamente campanhas internas e anúncios com pessoas com uma gama maior de características físicas. Têm, assim, argumentos para exibir perante a Justiça. Segundo, acham que o público mais jovem anseia por essa diversidade.
É uma estratégia que pode dar terrivelmente errado, como aconteceu com a cerveja Bud Light, ao perder 23% das vendas depois da forte reação de consumidores a uma campanha “comemorativa” com a influenciadora trans Dylan Mulvaney – foi feita uma lata de cerveja com o rosto dela para celebrar o primeiro ano que passou como algo parecido com uma mulher, e ainda por cima uma das mais belas da história do cinema, Audrey Hepburn, a quem imagina imitar.
A outra grande cidade americana que tem uma lei criminalizando a discriminação por obesidade é São Francisco. Com base nessa lei, a personal trainer Jennifer Portnick conseguiu forçar sua contratação por uma academia de ginástica que dá aulas ao ritmo de jazz. Muito acima do peso recomendado para as pessoas comuns, que dirá para os que vivem de vender boa forma física e saúde, ela disse à CNN que dá dezessete aulas por semana e está muito bem no emprego.
Mudar os padrões para se adaptar pode ser uma exigência da realidade. Nos cinco estados americanos com os mais altos índices de obesidade – Virginia Ocidental, Kentucky, Alabama, Oklahoma, Mississipi –, a proporção da população nessa categoria gira em torno de 40%.
Até o Exército americano, que vive caçando candidatos, diminuiu as exigências do teste de aptidão física, inclusive para acomodar os mais pesados e as recrutas mulheres. No teste comum, 22% das candidatas não passam na prova mais difícil, a da corrida de oito quilômetros em 40 minutos.
Uma das piadas mais conhecidas sobre os esforços para controlar o peso, que podem ter resultados tão diferentes, é a da mulher que pendurou um pedido na geladeira: “Deus, se não for possível fazer com que eu seja magra, faça com que todas as outras sejam gordas”.
O pedido parece ter sido atendido em áreas cada vez maiores dos Estados Unidos.
Qualquer tipo de discriminação é condenável e causa muito sofrimento. Os talentos das pessoas fora do padrão também são desperdiçados pela discriminação.
Uma das histórias mais famosas da II Guerra Mundial é a de Douglas Bader, piloto britânico que havia perdido as duas pernas num acidente provocado por seu excesso de exibicionismo, nos anos 30. Quando a guerra começou, foi readmitido na Real Força Aérea. Primeira missão: nada menos do que a monumental retirada de Dunquerque, quando derrubou o primeiro caça alemão.
Abatido sobre a França, saltou de paraquedas deixando presa no avião uma das pernas de madeira – assim eram as próteses – e tentou fugir do hospital francês onde foi hospitalizado. Um piloto alemão entrou em contato com autoridades britânicas para liberar o envio de outra prótese, mas Bader tentou fugir de novo. Depois da guerra, foi convidado para um jantar em Munique, com muitos ex-pilotos alemães. “Meu Deus, não tinha ideia de que deixamos tantos ***** escapar vivos”, disse.
Para aproveitar melhor talentos que seriam desperdiçados, muitas agências de inteligência dos Estados Unidos procuram ativamente a “diversidade neurológica”, significando autistas com capacidade superior no campo da análise de múltiplos dados fornecidos por satélites espiões. A turma do espectro funciona muito bem quando o trabalho exige foco e implica em enormes quantidades de dados.
Mas a gordura ocupa uma categoria especial, tanto pelas limitações físicas que ela implica, como a associação, errônea, a características morais como gula, preguiça e falta de força de vontade.
A nova lei de Nova York parece refletir uma espécie de resignação: somos gordos mesmo e nada vai mudar isso, então vamos aderir à liberdade de tamanho, como dizem as ativistas da gordura. Para a saúde da população, isso só pode fazer mal. A obesidade severa reduz a expectativa de vida em dez anos, exatamente como no caso de fumantes renitentes.
Alguém pensaria, hoje, em proibir por lei a discriminação aos fumantes e garantir seu direito de dar tragadas onde quer que estejam?
A nova lei contra a discriminação aos gordos pode ter chegado atrasada, como tantas coisas que os políticos fazem. Na era do Ozempic, o remédio emagrecedor que virou febre pelos resultados impressionantes, talvez a obesidade tenha encontrado um inimigo à altura de sua prevalência.
Até pessoas que já são magras estão tomando o remédio injetável para ficar mais magras ainda, incluindo aquelas que estão entre as mais belas do mundo – atrizes e atores de cinema. Se as irmãs Kardashian transformaram seu celebrado tipo físico, que fazia a alegria das mais cheinhas, qual a pessoa com quilos a mais que não sente a tentação de partir para o Ozempic e sair do grupo protegido pela nova lei?
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Fonte: Veja