Parlamentares, lordes, duques e outros nomões estão injuriados: não entraram na lista dos mais de dois mil privilegiados que receberam o lindo convite para o lugar mais disputado do mundo no momento, a abadia de Westminster na manhã de sábado, 6 de maio, quando Charles e Camilla serão coroados.
Quem já fez uma lista de casamento sabe como é difícil cortar nomes, mas a equipe do rei foi impiedosa. Pessoas que se destacaram em atividades benemerentes e ambientais, alinhadas com a imagem que Charles quer projetar, estão tendo prioridade sobre integrantes do mundo da política e da aristocracia para receber o primaveril convite, cheio de flores e animais dos bosques ingleses, pintado por Andrew Jamieson, um especialista em heráldica e iluminuras, e endereçado por calígrafos com uma tinta com tonalidade que só será usada uma única vez.
A ideia de convidar apenas vinte integrantes da Câmara dos Comuns e mais vinte da Câmara dos Lordes provocou um stress tão grande que foi criada, às pressas, uma área externa isolada para acomodar 400 parlamentares. Um prêmio de consolação que está sendo difícil de engolir. Para não falar nos cônjuges injuriados. Apenas o primeiro-ministro no poder, Rishi Sunak, poderá ser acompanhado pela mulher. O convite para seus antecessores é individual.
O número de lugares que seriam destinados a políticos e aristocratas diminuiu por causa da inclusão de pessoas comuns, para dar a atmosfera inclusiva, e de integrantes de todas as monarquias do mundo, além de chefes de Estado. Joe Biden é o único nomão que recusou a honraria, mas sua mulher, Jill, vai – que mulher não quer estar lá para ver todo aquele cerimonial, além de checar de perto as roupas e as joias de Kate e Camilla?
O presidente Lula da Silva confirmou presença. Todos os países europeus estarão representados, por monarcas que também são chefes de Estado ou por presidentes, sem contar os integrantes da Commonwealth, a comunidade de países que já pertenceram ao império, incluindo Canadá e Austrália. Além da sensação de estar no lugar mais privilegiado do mundo, poucos terão que se lembrar de antecedentes históricos desagradáveis de monarcas coroados em Westminster, como a decapitação do primeiro rei Charles, deposto por incompetência terminal e executado em 1649.
Para ter direito a um lugarzinho à sombra da arquitetura sublime de Westminster, membros da aristocracia tiveram que fazer uma espécie de vestibular: enviar documentação comprovando que um antepassado teve participação ativa em alguma parte do cerimonial de coroações do passado – a última foi há setenta anos, da rainha Elizabeth II.
Os que ficaram de fora estão recebendo um telefonema gravado em que Charles pede desculpas. E um bocado de gente ficou de fora, inclusive aparentados como Pamela Hicks, de 94 anos, que esperava ser uma das únicas pessoas a assistir três coroações: de Elizabeth, de seu pai e de seu filho.
A aristocrata é filha do conde Mountbatten da Birmânia, último vice-rei da Índia, que teve um papel essencial para aproximar o sobrinho, um desvalido príncipe grego chamado Philip, da futura Elizabeth II. Mountbatten (mudou o sobrenome original, Battenberg, alemão demais na época da I Guerra Mundial) foi assassinado num atentado do IRA em 1979 e Charles conduziu sua neta ao altar, num sinal de deferência à memória do conde.
Na hora do convite, nada. Pamela Hicks, que foi dama de honra no casamento da rainha, em 1947, e dama de companhia dela, foi passada para trás. Também ficaram fora nomões como os do duque de Somerset, que estava preparando a carruagem da família, imaginando algo delirantemente, desembarcar em grande estilo diante da igreja, e do duque de Rutland, entre os títulos mais antigos do reino.
“Realmente não entendo. Famílias como a minha têm apoiado a família real há coisa de mil anos”, reclamou, finamente, o duque de Rutland, conhecido pela peculiaridade de morar numa ala de seu castelo de 365 aposentos, o Belvoir, enquanto a mulher de quem se separou mora do outro lado. Espaço não falta.
Os Rutland estão fazendo uma exposição para visitantes do castelo das roupas usadas em coroações do passado, incluindo o manto de veludo com capa de arminho e a coroa ducal.
Trajes similares foram usados por todos os nobres convidados para a coroação de Elizabeth, quando mais de oito mil pessoas se espremeram em Westminster, embora com direito a mesas com sanduíches e bebidas montadas nas laterais.
Além do número muito menor de convidados, a coroação de Charles também deixou de fora cerimônias hoje arcaicas demais como o juramento de fidelidade dos nobres a Elizabeth. O primeiro a fazê-lo foi o marido da rainha, Philip, duque de Edimburgo. Ele tirou a coroa, ajoelhou-se diante da mulher, colocou as mãos entre as dela e, literalmente, prestou vassalagem. Seguiram-se os outros dois duques que eram membros da família real, o de Gloucester e o de Kent.
Em seguida, o detentor do título mais antigo dos marqueses, condes, viscondes e barões fez o mesmo juramento, enquanto seus equivalentes encostavam um joelho no chão, tiravam as coroas e repetiam o juramento solene. Impossível deixar de fazer, de novo, a comparação com Guerra dos Tronos.
Nos bastidores do governo de Rishi Sunak também houve uma guerra por influência, um espetáculo comum a todos os governos do planeta. Diferentes órgãos tentaram dar palpite na lista de convidados. Em off, fontes oficiais contaram que o principal organizador da cerimônia, o duque de Norfolk, responsável pelos impecáveis rituais que cercaram os funerais da rainha, os quais chegou a simular previamente num hangar da Força Aérea para acertar todos os detalhes, foi meio escanteado.
O duque, que ocupa a posição de Conde Marechal, ou planejador chefe de eventos, por ter o título mais antigo do reino, também sofreu o desgaste de ter tido a carteira de motorista suspensa por seis meses ao ser flagrado na direção falando no celular. E ainda por cima passando num sinal vermelho.
A suspensão causaria “dificuldades excepcionais” nas suas funções como planejador da coroação, alegou, sem nenhum efeito.
Um país que não “alivia” para um duque cuja família é responsável, desde 1386, por cerimônias como a abertura do Parlamento, funerais de Estado e coroações, merece respeito.
Ao celebrar as tradições – e ficar de olho nas inovações –, os britânicos estarão celebrando a si mesmos, como acontece em todos os rituais nacionais.
É dessa celebração que depende a continuidade da monarquia: enquanto a maioria do povo estiver satisfeita com seu papel, ela permanece. William e seu filho George, de nove anos, terão obviamente uma participação importante na coroação, um ritual que, se tudo der certo para eles, um dia protagonizarão. A imagem mais jovem do herdeiro e a beleza e elegância de sua mulher são elementos vitais da aprovação popular ao regime.
Nada menos que 71% acham que o príncipe e a princesa de Gales, título herdado com a ascensão de Charles ao trono, são bons exemplos para o país.
A mesma pesquisa mostra que 59% são contra transformar o país em república e somente 23% a favor.
A disputa por convites da coroação mostra que a a arcaica instituição não venceu seu prazo de validade. Embora parecendo tão fora de sintonia com os tempos atuais, ou talvez exatamente por isso, ainda faz muita gente boa estar disposta a qualquer coisa para tirar uma casquinha dela.
Fonte: Veja