O banimento das gorduras trans no Brasil, em vigor desde janeiro, é uma ótima notícia para a saúde, mas deixa uma pergunta: o que entra no lugar do ingrediente? A substituição desse tipo de gordura, usada em produtos ultraprocessados como margarinas, sorvetes e pizzas, desperta três principais preocupações:
- Que a substituição seja por alternativas não saudáveis. Exemplo: gordura saturada;
- Que a substituição seja por alternativas que não são socioambientalmente sustentáveis. Exemplo: óleo de palma;
- Que a substituição seja por substâncias que ainda não são comprovadamente seguras à saúde. Exemplo: gorduras interesterificadas.
Na indústria, os óleos vegetais passam por diversas transformações para modular suas características. Por décadas, a hidrogenação parcial foi a queridinha dos fabricantes. Ela aumenta o ponto de fusão do óleo e o deixa mais duro e estável, resistente à temperatura ambiente. Mas esse processo altera a estrutura molecular do óleo, criando a gordura trans.
Demorou muito para a ciência reunir evidências sobre os efeitos das gorduras trans e o poder público limitar seu consumo. O insumo foi usado durante cerca de 80 anos e só agora foi banido no Brasil. Nesse tempo, a população esteve exposta aos riscos que o consumo oferece:
- Há evidências sólidas de que a ingestão de gordura trans aumenta o risco de morte por qualquer causa em mais de 30%
Agora, na transição para um país livre de gorduras trans, a população pode estar exposta a novos riscos.
O que é a gordura interesterificada?
Uma das principais técnicas usadas para substituir a hidrogenação parcial é a interesterificação. Além de um trava-língua, esse é um processo no qual são adicionados catalisadores enzimáticos ou químicos a uma mistura de óleos —uma fonte de ácidos graxos insaturados e uma fonte de ácidos graxos saturados.
Com a ação do catalisador, os dois tipos de ácidos, que estavam separados, vão parar na mesma molécula. O resultado, no jargão da indústria, é um “lipídio estruturado”, que pode ter diferentes graus de consistência —e resíduos químicos.
Do ponto de vista econômico, se mostrou uma alternativa viável, mas do ponto de vista da saúde pública há dúvidas.
Como as gorduras trans, [as gorduras interesterificadas] são um novo tipo de gordura não encontrado na natureza. O processo de interesterificação produz não um, mas uma série de diferentes tipos de moléculas de ácidos graxos rearranjados. Cada nova molécula pode ser metabolizada de uma forma diferente e desconhecida pelo organismo humano” Gyorgy Scrinis, pesquisador, em explicação no livro “Nutricionismo: A Ciência e a Política do Aconselhamento Nutricional”
Já se sabe que essas gorduras enganam o metabolismo. Na natureza, os ácidos graxos saturados geralmente ficam nas extremidades da molécula, enquanto o ácido graxo insaturado fica no meio. Durante a digestão, o organismo quebra os ácidos das extremidades primeiro e o ácido que está no meio é absorvido.
Mas, na interesterificação, a posição desses ácidos dentro da molécula se inverte. “Quando foram estudando os efeitos da gordura interesterificada no organismo, foi se observando que acontecia esse aumento da absorção de ácidos graxos que, pela natureza, a gente não ia absorver. Então, a interesterificação também não resolveu totalmente o problema”, afirma a especialista em tecnologia de alimentos Juliana Ract, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP (Universidade de São Paulo).
Prevenir para não remediar
Especialistas em saúde vêm pegando carona nas discussões sobre a eliminação das gorduras trans para pedir também a regulação da interesterificação. Laís Amaral, atual supervisora técnica do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), conta que a questão foi pautada quando a regulação das gorduras trans no Brasil estava em negociação, mas não incluíram na norma aprovada.
“A gente colocou isso para a Anvisa, porque, como não sabemos o impacto desse tipo de gordura, trabalhamos com o princípio da precaução”, explica.
Se você não sabe o mal que algo faz, é melhor isso não ser colocado para a população [consumir], se não vira outro problema” Laís Amaral, atual supervisora técnica do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec
A agência foi questionada pelo Joio na época. A resposta foi que “não há respaldo técnico-científico para proibir o uso de óleos interesterificados”. A Anvisa também informou que publicaria um guia sobre as opções para substituir gorduras trans. A previsão era de lançá-lo no segundo semestre de 2021, mas até hoje isso não aconteceu.
Questionada novamente neste mês, a agência informou que mantém essa posição e que uma consultoria foi contratada para elaborar o guia. A nova previsão é de que seja publicado até março. Também informou estar em fase de planejamento uma Avaliação do Resultado Regulatório (ARR), “que poderá fornecer informações importantes para a avaliação do uso de gorduras interesterificadas em alimentos, como ingredientes substitutos de gorduras trans industriais”.
As controvérsias em torno do óleo de palma
A substituição pela interesterificação tem implicações na escolha das matérias-primas. A regra tem sido misturar o óleo de soja ou de canola com o óleo de palma ou o palmiste, que têm mais gordura saturada. “Por isso e pelo preço, é a matéria-prima mais visada pela indústria”, afirma um consultor de empresas do ramo que concordou em falar com o Joio sem ser identificado.
Na palma há dois tipos de óleo: o da polpa da palma e o do caroço da palma, o palmiste, explicou o consultor.
O palmiste tem o que se chama de gordura láurica, que confere características como o derretimento na boca e o estalo da barra de chocolate.
- Ponto contra: tem por volta de 85% de gordura saturada. Numa formulação de cobertura de chocolate, esse percentual pode chegar a 98%.
“Já o óleo gerado a partir da polpa da palma tem por volta de 50% de gordura saturada, mas não conta com as mesmas características físicas do outro óleo”, explicou.
O consultor reconhece, no entanto, que:
Do ponto de vista da saúde, o melhor seria não usar nenhum deles”
Há ainda uma outra dimensão nessa discussão, que é a da captura de terras de comunidades tradicionais e desmatamento de florestas nativas devido ao aumento da demanda por óleo de palma no mundo. O debate é tão quente que a União Europeia aprovou em dezembro de 2022 uma lei antidesmatamento, que restringe a importação do óleo de palma.
Hoje, Tailândia, Malásia, Indonésia —incluindo a ilha de Sumatra—, e Bornéu concentram mais de 90% da produção mundial de palma. Na América Latina, o Brasil tem a dianteira. A produção se divide entre Bahia, Roraima e Pará, com esse último estado respondendo por mais de 90% do volume total. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2021 foram produzidas 2,8 milhões de toneladas de cachos de palma no país. Em 2010, esse número era de 1,2 milhão. Um crescimento de cerca de 230%. Mesmo assim, parece pouco para a indústria.
Em julho de 2020, a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos) protocolou junto à Camex (Câmara de Comércio Exterior), vinculada hoje ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, um pedido para zerar o imposto de importação do óleo de palma. O pedido encontra-se em análise na Comissão de Comércio do Mercosul, que terá sua próxima reunião no mês que vem.
Há alternativas, então?
Sim, tem como substituir as gorduras trans sem usar óleo de palma e sem a interesterificação. Segundo Juliana Ract, da USP, dá para usar a mesma tecnologia de um produto que, do dia para a noite, foi parar nos bolsos e bolsas de todo mundo. “A tecnologia se chama oleogel. É a mesma tecnologia do álcool em gel, que é o álcool líquido misturado a um agente estruturante.”
A técnica começou a ser estudada com aplicação na alimentação na primeira metade dos anos 2000. O agente estruturante, que é uma substância com ponto de fusão elevado, é adicionado ao óleo. “Na hora que essa mistura solidifica, o agente estruturante forma uma rede tridimensional que parece uma esponja, e dentro dessa esponja fica o óleo intacto, como na natureza”, explica Ract.
Do ponto de vista da saúde, é mais saudável. Mas, para a indústria, há pontos contra:
- O tempo de vida do produto na prateleira, que pode ser menor;
- A insuficiência em proporcionar certas experiências sensoriais que tornam esses produtos tão viciantes.
Seu uso ainda é recente, mas, para Ract, é “o futuro”.