Texto: Bruno Vaiano | Ilustrações: Henrique Petrus | Design: Natalia Sayuri Lara | Edição: Alexandre Versignassi
“Os primos são como a vida”, escreveu o novelista britânico Mark Haddon. “Eles até seguem uma lógica, mas você nunca vai descobrir as regras, mesmo que passe todo o seu tempo pensando sobre elas.”
Os primos, você sabe, são aqueles números divisíveis apenas por si mesmos e por um: 2, 3, 5, 7, 11, 13… Eles são especiais porque formam os tijolos fundamentais da – do mesmo jeito que os elementos da permitem montar todas as moléculas que os químicos estudam, os primos são a base para construir todos os outros números. Todo número que não é primo é composto, e pode ser obtido pela multiplicação de alguns dos primos que vieram antes dele. Dois exemplos simples: 2 x 2 = 4 e 2 x 3 = 6.
Muitas perguntas em aberto sobre os números primos padecem do mesmo problema: elas são tão simples que podem ser entendidas por uma criança, e nós temos quase certeza de que já sabemos as respostas. Falta “só” conseguir as provas, e essas provas – como Haddon bem colocou – estão entre as coisas mais difíceis que a humanidade já se propôs a fazer. É o caso da conjectura de Goldbach e da hipótese de Riemann, que assombram gerações de matemáticos.
Essa é uma história que começa há mais de 2 mil anos, quando Euclides pôs no papel o primeiro grande passo da civilização no estudo dos primos: a prova de que eles são infinitos – de que sempre existe mais um tijolinho, não importa o quão grande ele seja. Vamos começar, então, com a descoberta descrita pelo bom velhinho grego.
A prova de Euclides
Vamos começar supondo que os sejam finitos, e que o maior deles é o 11. Você já sabe que isso é mentira – os primos, na verdade, são infinitos. Mas tudo bem, porque o objetivo é justamente demonstrar que essa suposição está errada, de uma forma que a explicação sirva não só para o caso do 11, mas para qualquer outro primo.
Primeiro, você pega todos os primos dessa lista finita e multiplica uns pelos outros. Fácil: 2 x 3 x 5 x 7 x 11. Essa conta dá 2.310. Esse não pode ser um número primo, certo? Afinal, na nossa ficção, 11 é o maior primo, e 2.310 é muito maior que 11. Mas isso também acontece por um motivo mais sutil: 2.310 é o resultado da multiplicação de todos os primos, então ele também pode ser dividido por todos os primos desse cenário. E se ele pode ser dividido por primos, então ele é um número composto.
Legal. Agora, vamos fazer uma conta simples: 2.310 + 1 = 2.311. Será que esse número também é composto? Bom, 2.311 não é divisível por 11 (sobra 1). Nem por 7 (sobra 1). Nem por 5 (sobra 1). De fato, como o 2.310 é divisível por todos os primos da lista, o 2.311 automaticamente não pode ser divisível por nenhum primo, porque sempre vai sobrar aquele unzinho que a gente somou para atrapalhar tudo. E isso é um problema, porque todo número composto é divisível por algum primo.
Conclusão: se o 2.311 for mesmo composto, então ele só é divisível por algum número primo maior do que 11, que não aparece na lista. E aí o 11 não pode ser o maior primo. A outra opção é que o 2.311 seja, ele mesmo, um primo. Nesse caso, é óbvio, o 11 também não pode ser o maior primo. Em qualquer um dos casos, não dá para o 11 ser o último primo da lista. Precisa existir algum maior.
Provamos um caso específico, o do número 11. Mas o pulo do gato, aqui, é que você poderia fingir que qualquer outro número primo é o maior de todos, e repetir o procedimento. Sempre vai aparecer um primo ainda maior. E como sempre é possível encontrar um primo maior a partir dos primos preexistentes, os primos precisam ser . Essa é a beleza das provas matemáticas. Elas têm validade absoluta. Não há exceções.
A função zeta de Riemann
A infinitude dos primos é só a ponta do iceberg. A lista de coisas que ainda precisamos provar sobre esses pestinhas é imensa, e a pendência mais famosa é a hipótese de Bernhard Riemann, um matemático alemão do século 19. Ela é um dos “problemas do milênio” – sete mistérios matemáticos que dão um prêmio de US$ 1 milhão ao cabeçudo que vier a resolvê-los.
Em setembro de 2022, Paul Nelson, do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, solucionou uma versão do problema da subconvexidade, que é uma encarnação mais light da hipótese de Riemann. Um problema parecido, só que mais fácil de lidar. E esse foi um dos únicos avanços relevantes na resolução desse mistério desde que ele veio a público, há 150 anos.
Explicar o trabalho de Nelson exigiria alguns anos de pós em . Mas dá para demonstrar outra coisa: por que qualquer passo rumo à prova da hipótese de Riemann é tão importante. Para isso, precisamos entender o que ela tem a ver com os primos.
Começando do jeito mais simples possível: 1 x 1 = 1, certo? Um pouco menos óbvio é que -1 x -1 também é igual a 1. Quando você multiplica um número negativo por outro negativo, o resultado é positivo – a tal regra “menos com menos dá mais”, que repetimos no colégio feito robozinhos. Isso significa que a raiz quadrada de 4 é 2 e também é -2. Do mesmo jeito, a raiz de 9 pode ser tanto 3 como -3. Os números positivos têm todos duas raízes quadradas, uma positiva e uma negativa.
O problema é o seguinte: com cada positivo ocupando duas raízes, os negativos ficam sem nenhuma. Não existe um número que, multiplicado por ele mesmo, dê o resultado -1. Por isso, os matemáticos chamam as raízes de -1, -4 ou -9 de números imaginários. Para não precisarmos escrever √-4 ou √-9 o tempo todo, esses números fictícios foram batizados simplesmente de i. A raiz de -4 é 2i. A raiz de -9 é 3i.
Embora o i não exista, ele pode participar normalmente de uma conta qualquer. Digamos, 2 + 3i. O único problema é que o resultado precisa ser escrito como 2 + 3i mesmo, porque, veja bem: não há um resultado. Os números reais e os imaginários são como água e óleo, não se misturam. Essas somas entre reais e imaginários são o que os matemáticos chamam de números complexos.
Reserve os complexos na mente. Agora, vamos explicar funções. Funções são pequenas engenhocas que engolem um número e cospem outro, sempre seguindo uma regra fixa. Se sua função consiste em multiplicar todos os números do universo por dois, então o três vira seis e o quatro vira oito.
Muitas funções dão instruções bem mais complicadas do que isso. É o caso da função zeta. Ela pega o número de entrada (que a gente chama só de “x”) e o insere nisto aqui: 1/1x + 1/2x + 1/3x + 1/4x… até o infinito.
Parece difícil o suficiente, mas nosso amigo Riemann, que não tinha para procrastinar, resolveu enfiar números complexos nos xis da função zeta e ver no que dava. E o incrível é que, em muitos casos, o resultado dessa soma infinita de frações dava zero.
Vale dizer que o resultado zero, por si só, não é incrível. Por exemplo: todo número par negativo (-4, -6, -8) no lugar do “x” faz a soma dar zero. É um resultado que os matemáticos chamam de “zero trivial”. Mas esses são números reais, comuns. O lance é com os números complexos que dão zero. Eles têm uma característica: já verificamos zilhões deles, e calhou que todos começam com 0,5. Tipo 0,5 + 2i, ou 0,5 + 3i.
A hipótese de Riemann é justamente que todos os “zeros não-triviais” da função zeta aparecem quando a parte real do número complexo é 0,5, independentemente da parte imaginária. Quem conseguir provar isso de uma vez por todas leva o milhão de dólares. E veja bem: não adianta verificar trilhões deles no braço. Cada caso é um caso – precisamos de uma prova universal como a de Euclides.
O que isso tem a ver com números primos? Bom: o jeito como os primos estão salpicados ao longo da linha dos números – que parece aleatório, em princípio – na verdade pode ser explicado por meio de um procedimento matemático que se torna mais e mais preciso cada vez que você põe na conta um desses números complexos que dão zero na função zeta de Riemann.
Uma maneira didática de vislumbrar esse procedimento envolve um gráfico em que a linha dos números vai avançando da esquerda para a direita: 1, 2, 3, 4… Cada vez que um primo aparece, a linha dá um salto para cima, formando um degrau de uma escadinha. Esses degraus podem aparecer a cada dois, quatro ou quarenta passos, já que correspondem às aparições erráticas dos primos.
Agora vem a mágica: usando os números complexos de Riemann, é possível desenhar um gráfico que descreve exatamente a mesma escadadinha que o anterior, tomando um caminho completamente diferente (que não passa por primos e envolve, pasme, o estudo de tipos de ondas chamadas harmônicos). Esse é um resultado arrepiante: são duas áreas da que escalam uma montanha por lados diferentes, sem saber que estão chegando ao mesmo cume.
Gêmeos-problema
Além de Paul Nelson, muitos outros gênios contemporâneos atacam questões diferentes sobre a distribuição dos primos: as regras que regem os buracos entre eles. Uma história que começa com o matemático Leonhard Euler, lá no século 17.
Era uma vez o número de Euler: 2,718…. Ele é uma dessas constantes com infinitos dígitos aleatórios depois da vírgula, . Você talvez nunca tenha ouvido falar do número de Euler, mas com certeza já ouviu falar de algo chamado logaritmo natural. Todo número tem seu logaritmo, que a gente costuma chamar só de “log”, para facilitar. Alguns exemplos: o log de 2 é 0,69. O log de 10 é 2,3. O log de 100 é 4,6. O que significam esses logs? É aqui que entra o Euler. Se você elevar o número de Euler a 0,69, vai obter 2. Se você elevar a 2,3, vai obter 10. Se elevar a 4,6, vai obter 100. O log é a resposta para a pergunta “a quanto eu preciso elevar o número de Euler para obter um número tal?”
O que torna o número de Euler especial, e por que os matemáticos se dão ao trabalho de descobrir um montão de logs só para depois fazer “número de Euler elevado a esses logs” e voltar para os mesmos 1, 2, 3 de sempre? Bom, a magia da coisa é que os logs não crescem tão rápido quanto os números em si: o log de 1 bilhão é 20,7. E existem contas que você pode fazer usando o 20,7 em vez do 1 bilhão, o que é bem mais prático.
Praticidade à parte, os logaritmos naturais escondem um segredo sobre . Euler descobriu que o log natural de um número também é o intervalo médio entre os números primos até aquele número. Explicando com um exemplo, para facilitar: se você pegar todos os números primos até 1 bilhão, o vão médio entre eles será 20,7. Pode haver primos mais ou menos separados do que isso, mas essa será a média. Tal conclusão é parte do Teorema dos Números Primos (PNT) – que, para alívio dos matemáticos, já está provado desde 1896.
O fato de que os logs vão aumentando significa que os vãos entre os primos ficam cada vez maiores – e a frequência com que os primos aparecem, por consequência, fica cada vez menor. De fato, já está provado que a distância entre dois primos pode ser arbitrariamente longa, e alguns gostam mesmo é de distância dos seus pares: a maior separação entre dois primos já encontrada é de 7,18 milhões de números.
Bacana. Mas o problema dos primos que se odeiam não é nem de longe tão difícil quanto o problema dos que se amam. Estamos falando dos primos – o nome que se dá aos pares coladinhos, separados por só uma unidade, como 11 e 13, ou 17 e 19. Acredita-se que existam infinitos casais desses, e as verificações feitas na força bruta levam a crer que há. Mas, de novo, não há uma prova.
O maior passo nessa direção, até agora, foi obra do chinês Yitang Zhang em 2013 – um matemático que não fez ensino médio, imigrou para os EUA e foi até atendente do Subway antes de deslanchar na carreira. Zhang conseguiu provar que existem infinitos pares de primos que estão a uma distância de, no máximo, 70 milhões de números um do outro. Isso inclui os gêmeos, é claro – mas também pares de primos muito mais amplos, separados por quatro números, oitenta números ou milhões de números.
Usando a trilha matemática aberta por Zhang, um trabalho online colaborativo entre matemáticos deu um salto extra: conseguiu reduzir essa janela de 70 milhões para 246. Ou seja: está provado que há primos infinitos separados por essa distância, relativamente curta. O passo final seria demonstrar que existem gêmeos infinitos, aqueles apartados por um número só.
O inglês James Maynard provou um limite de 600 por um outro caminho, tão genial que lhe rendeu – o Nobel da matemática. É que o trabalho dele é mais abrangente: prova que também existem quantidades infinitas de trios, quartetos ou quintetos de primos em que cada um está a uma certa distância máxima do outro.
Esse foi só um gostinho do que ainda há para saber sobre os primos. Não falamos, por exemplo, da conjectura de Goldbach – a ideia de que todo número par maior que dois é a soma de dois números primos. Ela está na mesma situação: testamos todos os até 4 × 1018, e nenhum foge à regra, mas não há uma prova. O francês Olivier Ramaré fez um avanço parcial: demonstrou que todo par é a soma de no máximo seis primos, e o australiano Terence Tao descobriu que todo ímpar é a soma de até cinco primos.
Também descobrimos, em 2016, que os primos têm preferências. Por exemplo: se um deles termina em 9, o próximo da sequência tem 65% mais chances de terminar em 1 do que em 3 ou em 7. Por quê? Ninguém sabe.
E é claro que nenhum panda vai morrer se não chegarmos a saber. Provar a conjectura de Goldbach, a hipótese de Riemann ou a conjectura dos primos gêmeos são metas filosóficas, que podem até ter algum impacto prático para a ciência no futuro, mas que os perseguem hoje sem aplicações em mente, em nome da curiosidade.
Afinal, quando os gregos antigos começaram a mexer com primos, eles não imaginaram que esses números se tornariam fundamentais para a criptografia, por exemplo. A nós, só resta imaginar o que os gênios do futuro farão com o trabalho dos Euclides de agora.
Caçada aos gigantes
Conheça o Gimps, um projeto que conecta computadores domésticos voluntários ao redor do mundo para encontrar primos descomunais. Eles já bateram 15 vezes o recorde de maior número primo conhecido.
Em 1996, o cientista da computação americano George Woltman fundou o Great Internet Mersenne Prime Search – em português, “grande busca de números primos de Mersenne pela internet”, que atende pela sigla Gimps. Trata-se de um projeto de pesquisa coletivo. Eles oferecem um software que qualquer voluntário pode baixar. Você põe o programa para rodar e decide se quer que seu verifique novamente primos gigantescos já testados (é muito altruísmo) ou se prefere que ele tente descobrir um novo, ainda maior.
O Gimps se baseia em uma receita muito prática para descobrir números primos. Primeiro, o software pega um número primo já conhecido (por exemplo, o três). Então, põe o dito-cujo no expoente do dois (23 = 8). Por fim, subtrai um do resultado (8 – 1 = 7). Sete, claro, é primo.
Essa fórmula não dá certo sempre, mas funciona com alguma frequência, e já era conhecida por Euclides.
No século 17, um clérigo francês chamado Marin Mersenne usou a 2p – 1 para encontrar os maiores primos conhecidos à época. Só que Mersenne foi um pouco longe demais: afirmou que 2257– 1 era primo, o que está errado. É um erro compreensível, claro: ele precisou multiplicar o dois por si mesmo 257 vezes sem uma calculadora – o resultado tem 103 dígitos –, subtraiu um e então tentou descobrir (à mão!) se esse monstro era divisível por algum outro número. Difícil.
Seja como for, os primos gerados por esse atalho ficaram conhecidos como “primos de Mersenne”. E eles são úteis porque existe um teste relativamente rápido – o chamado “teste de primalidade de Lucas-Lehmer”– capaz de determinar se um número gerado por 2p – 1 é mesmo primo.
O maior primo conhecido hoje, 282.589.933 – 1,é um primo de Mersenne e foi descoberto em novembro de 2018 pelo computador do voluntário americano Patrick Laroche, conectado ao Gimps. Esse monstro tem 24,8 milhões de dígitos (teclando um algarismo por segundo, você levaria 287 dias para digitá-lo inteiro).
Grande, mas o céu é o limite: este repórter doou um pedacinho de sua CPU para o Gimps e recebeu o número 2116.144.081 – 1, que tem 34,8 milhões de dígitos. O resultado está previsto para 31 de janeiro, após a conclusão desta edição da Super. Fique na torcida: a chance é ínfima, mas, se esse número for primo, será o primeiro gigante descoberto no Brasil.
Fonte: abril