Poucos tiveram uma vida como a de Elizabeth II e quase ninguém teve uma morte como a dela, cumprindo suas funções até dois dias antes de morrer aos 96 anos, com um mieloma, o doloroso câncer ósseo, segundo um biógrafo.
A mistura de cerimônias de uma pompa sem igual com as manifestações espontâneas de sentimento da população mostrou por que a monarquia britânica ocupa um lugar único no imaginário mundial.
A pompa não brotou do nada: as cerimônias foram planejadas durante vinte anos por Edward Fitzalan-Howard, duque de Norfolk, o mais antigo título de nobreza da Inglaterra. Entre os detalhes, ele mediu as escadas de todos os castelos e residências onde a rainha poderia eventualmente morrer, para saber como o corpo seria retirado. Num hangar da Força Aérea, montou um modelo em tamanho real do grande salão medieval onde o caixão ficou exposto à visitação do público. Os planos eram mandados regularmente para a rainha, que anotava comentários nas margens.
Até os corações mais empedernidos não deixaram de reconhecer o exemplo de comportamento digno que ela levou até o fim, um contraste com o outro acontecimento do ano na família real, o programa da Netflix, chamado com exagero de documentário, em que o príncipe Harry e a mulher, Meghan, despejaram suas mágoas.
Não é muito diferente do que acontece com conflitos de famílias cuja linhagem não remonta a Edward, o Confessor, o rei anglo-saxão que ocupou o trono entre 1042 e 1066. Harry, como todo irmão menos bem sucedido, parece sinceramente convencido de que foi alvo de uma terrível perseguição armada entre a imprensa e o “palácio”, sinônimo para a própria família.
Meghan é uma atriz, não excepcionalmente boa, mas no controle da narrativa.
Dá para acreditar numa pessoa de quase 40 anos que está tendo uma série crise existencial, a ponto de pensar em suicídio, e filma a si mesma chorando? A cara de armação fica evidente.
Quais as grandes acusações? Nada impressionante. Harry disse que o irmão, William, gritou com ele e o pai, agora rei Charles, “não falou a verdade” quando se reuniram diante de uma rainha silenciosa para discutir como ele deixaria seu lugar oficial na família real e iria morar no exterior – Canadá primeiro, depois Califórnia.
Harry acha que “eles” combinavam com a imprensa vazamentos controlados para contrabalançar notícias negativas sobre a família real com fofocas sobre o casal. Que foram perseguidos e largados à própria sorte. E que a “história poderia se repetir”, uma comparação completamente exagerada com o destino trágico de sua mãe.
Pintar Meghan como uma nova Diana é uma estratégia que só funciona para quem não conheceu o efeito inexplicável sobre o público que a princesa morta num acidente em Paris, num carro dirigido por um motorista bêbado, tinha.
Para simular a inventada similaridade com Diana, o programa usa fotos daquelas em que um batalhão de fotógrafos apontam suas câmeras – só que foram tiradas de acontecimentos diferentes. A casa que “abriram” para as câmeras do documentário também é fake, mas é verdadeira a ultrassonografia do filhinho Archie. Isso é proteger a intimidade da família? É fato que Meghan despertou enorme curiosidade e todo fotógrafo queria retratá-la. Ela também foi recebida com enorme carinho pela população britânica e total deslumbramento pela imprensa.
Houve manifestações de racismo e até ameaças de ataque físico? Com certeza: rolam horrores não pântano das redes sociais.
É possível que o encantamento com Meghan tenha provocado ciúmes na família real, como disse Harry? Sem dúvida. Em qual família uma recém-chegada, linda e elegante, não causa um certo ressentimento?
Também é fato que um tabloide, o Daily Mail, fez uma armação malévola: pagou ao pai de Meghan, Thomas Markle, para aparecer em fotos que pareceriam roubadas do percurso da casa onde ele morava, no México, até a cerimônia de casamento na Inglaterra. A história explodiu no meio do caminho e, com razão, causou muito sofrimento para a filha, que até hoje não fala com ele. Qualquer pessoa ficaria arrasada no lugar dela – e ainda mais uma que se casaria, sem o pai para acompanhá-la, numa cerimônia assistida no mundo inteiro.
A impressão de que o casal já tinha tudo planejado para sair da Inglaterra e da linha de frente da família real foi reforçada pelo documentário, com cenas filmadas por eles desde o início do relacionamento e um fotógrafo registrando momentos íntimos o tempo todo.
As confidências à Netflix fazem parte de um plano mais ambicioso de posicionar o casal como celebridades classe A, do nível dos Obama – com faturamento equivalente, refletido nos 100 milhões de dólares do contrato com a Netflix.
A diferença é que Barack Obama foi presidente dos Estados Unidos em dois mandatos e Harry só ficou conhecido por causa da família em que nasceu. O mundo da fama nos Estados Unidos é extremamente competitivo e o casal Sussex corre o risco de perder o sabor de novidade.
Na Inglaterra, perderam popularidade depois do programa da Netflix. Segundo uma pesquisa YouGov, Harry caiu 13 pontos: só 33% o aprovam, contra 59% com uma opinião negativa. A desaprovação a Meghan chega a 64%.
A carreira – e o dinheiro – do casal evidentemente está nos Estados Unidos e vai dar mais um passo com a autobiografia de Harry a ser lançada no próximo dia 10. Virará notícia, claro.
Principalmente, como muitos antecipam, se ele fizer revelações constrangedoras sobre a madrasta, Camilla. A ultima fofoca é sobre quem seria a bela mulher mais velha com quem Harry fez sexo pela primeira vez. Liz Hurley já avisou que não foi ela.
E Charles não pode nem reclamar do filho: foi ele quem voluntariamente deu uma entrevista admitindo que traía Diana com Camilla.
Erros do passado são absorvidos com o tempo, mas a realidade é que o plano de Meghan – com Harry claramente na posição de acessório – é consolidar sua posição como uma desapegada celebridade dedicada a causas humanitárias que foi perseguida por uma instituição antiquada e preconceituosa.
Sua antagonista, a única com poder de imagem para lhe fazer frente, é Kate, a nova princesa de Gales.
Fotos de Kate produzida, usando joias que foram da sogra que nunca conheceu, viraram instrumentos poderosos para desbancar o casal vingativo de Montecito e apresentar uma imagem mais moderna da monarquia.
Batalhões de especialistas em relações públicas trabalham dos dois lados, “vendendo” as narrativas divergentes.
Duas plebeias que se casaram com príncipes, igualmente belas e com um tremendo talento para hipnotizar as câmeras, protagonizam o embate para definir como uma monarquia de mil anos será vista. Isso sim é uma boa briga de família.
O exemplo virtuoso da rainha morta é frequentemente lembrado, mas tenderá ao natural esquecimento. Gerações mais jovens vão cada vez mais olhar para Kate e Meghan e ver com quem se identificam mais. A princesa perfeita ou a duquesa difícil?
Está aí um grande trunfo de Meghan – e que será explorado de todas as maneiras possíveis.
Fonte: Veja