Rosa — nome fictício por razões de segurança — é uma mulher de 22 anos que deixou a Nicarágua aos 12, quando a situação econômica do país piorou consideravelmente e o autoritarismo de Daniel Ortega, do país, foi ficando cada vez mais evidente.
“Espero que as coisas mudem um dia, porque adoraria voltar para a Nicarágua”, disse Rosa em entrevista a Oeste. “Realmente amo o país em que cresci. A Nicarágua tem um lugar especial no meu coração.”
Filha de uma nicaraguense e de um guatemalteco, Rosa nasceu na Guatemala, mas passou toda a infância na Nicarágua, desde que tinha 1 ano. Depois que deixou o país, ainda conseguia voltar constantemente para visitar membros da família. Mas o autoritarismo foi crescendo cada vez mais, e ela não volta mais à Nicarágua desde 2018.
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“A Nicarágua era o meu lar”, disse Rosa. “Foi assim até 2018, quando a situação política explodiu, e minha família decidiu que o melhor era não voltar mais por causa do perigo. Em 2018, baniram todos os protestos e tudo o que fosse contra Ortega.”
Naquele ano, milhares de nicaraguenses protestaram contra o governo de Ortega, chegando a pedir renúncia. A resposta do ditador foi violenta. A Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) estima que 355 pessoas foram mortas. Já as organizações locais calculam 684. Acusado de terrorismo, um opositor de destaque foi condenado a 216 anos de prisão.
Além de indivíduos, Ortega também persegue a igreja Católica e os cristãos no geral. De acordo com a organização Portas Abertas, a Nicarágua é um dos 50 países em que os cristãos são mais perseguidos. Ortega já dissolveu a Ordem Franciscana e outras mais de 3 mil organizações privadas, incluindo sindicatos empresariais, universidades católicas e .
Os avós de Rosa ainda vivem dentro da ditadura. Por causa da idade, o país é tudo que eles conhecem. É pela vida deles que Rosa prefere não mostrar o rosto nem o nome verdadeiro. Estudante de ciência política, a jovem também é líder do (LOLA), uma organização internacional liberal voltada para as mulheres.
Há dois anos no LOLA, Rosa atua com mulheres nicaraguenses no movimento, principalmente estudantes. Ela se reúne com as associadas por chamadas virtuais. Mas as associadas também fazem reuniões presenciais na Nicarágua, que precisam ser secretas — se descobertas, seriam consideradas traição contra o regime. “É preciso camuflar, não podemos admitir que somos um movimento de mulheres libertárias”, diz Rosa.
Em sua viagem a São Paulo, Rosa visitou Oeste e deu detalhes sobre o país em que viveu sua infância. Ela também comentou sobre o apoio da esquerda brasileira ao regime de Ortega. Confira os principais trechos da entrevista.
Além de seus avós, há mais alguém da família na Nicarágua?
Para ir à Nicarágua, você precisa passar por um longo processo de investigação. Eles investigam quem você é e quem é sua família, praticamente tudo sobre você. Por isso não é bom para ir e voltar, como costumávamos fazer. Uma das minhas tias foi para o Panamá e os outros dois tios para a Inglaterra, em asilo político, porque era impossível para eles continuarem lá. Em uma ocasião, minha tia ajudou os estudantes que estavam protestando. E o governo estava investigando na área onde ela vivia, pois sabia que pessoas dali tinham envolvimento com os estudantes. Meus avós ficaram, porque a Nicarágua é a única coisa que eles conhecem, cresceram e passaram a vida inteira ali. Seria difícil simplesmente seguirem em frente em outro país.
Ortega é o governante mais perigoso que a Nicarágua já teve?
Sim. E, se deixar o poder, não terá mais onde estar ou ficar, porque o que mais ele pode fazer agora, que ganhou tudo? Ele ficará no controle até quando puder, e, provavelmente, depois disso, outro membro da família dele assume o país. Ninguém realmente sabe o que mais pode acontecer com ele no poder, porque é algo que nunca aconteceu antes na Nicarágua. Não há uma referência para Ortega. O tipo de autoritarismo que ele exerce é algo novo. Ele foi eleito a princípio, mas depois continuou comandando o país ilegalmente, com falsas eleições. Ortega controla praticamente todos os aspectos do sentimento político e da vida normal dos nicaraguenses, e também a imprensa. Além de controlar a Nicarágua, quer controlar a narrativa. Ele controla a liberdade de expressão, porque pode selecionar se gosta ou não do que as pessoas dizem. Ortega pode selecionar quem são as pessoas consideradas um “perigo” e jogá-las na prisão para manter a “ordem” do país. Se ele não gostar de você ou enxergá-lo como uma ameaça, pode simplesmente tirar sua nacionalidade. Minha sorte é o meu pai: se Ortega retirar minha nacionalidade nicaraguense, ainda tenho a guatemalteca. Além do poder militar e policial, ele tem o poder econômico.
Quão restrita está a liberdade religiosa na Nicarágua?
Não há nenhuma liberdade. O poder da ditadura está corroendo todos os campos da vida dos nicaraguenses. Um cidadão não tem tantas decisões próprias. Ortega decide se quer ou não a religião. Ortega também está fechando universidades católicas. O ditador vê os cristãos como ameaça, porque quer estar no poder em todos os sentidos. Não é mais seguro ir à igreja. Mas ainda há fé na Nicarágua. As pessoas são conservadoras, como na maioria dos países latino-americanos. A religião é realmente presente na vida delas, mesmo que agora não possam ir à igreja como costumavam fazer. Muitos agora praticam a religião em seus próprios bairros, com a comunidade reunida e orando em suas casas. Ir à igreja muitas vezes não é uma opção, e as pessoas tentam estar no lugar mais seguro possível. E, embora perseguido, o cristianismo ainda é enorme entre os nicaraguenses. A fé é o único recurso no fim do dia, porque, afinal, o que mais eles poderiam fazer?
A eleição de Ortega em 2021 é considerada fraudulenta por várias entidades: ele prendeu e expulsou do país opositores que tinham chance de vencer. O Partido dos Trabalhadores (PT), do atual presidente do Brasil, apoiou Ortega na ocasião. Como vê esse apoio?
Ortega tem uma ditadura moderna, porque ele “faz” as “eleições” e, “surpreendentemente”, sempre vence todas elas. É realmente estranho que eles tenham apoiado esse regime. Não foi uma eleição constitucional. Em 2018, um ano muito importante para o país, as pessoas protestavam contra Ortega. Ele varreu as pessoas dos protestos. É engraçado quando Ortega diz que houve eleições e que ele foi eleito. Se há eleições mas as pessoas são contra ele, como Ortega diz que está ganhando? Como ainda está no poder? E se outro governo apoia isso, é realmente preocupante.
O que você diria para as pessoas que ainda apoiam Ortega no Brasil, como os petistas?
Eles deveriam investigar um pouco mais sobre o que está acontecendo na Nicarágua. É interessante pensar que os nicaraguenses preferem agora ir para outro país, em vez de viver no seu próprio. A Nicarágua está enfrentando um problema populacional: as pessoas estão tentando imigrar para outros países. Por exemplo, muitos preferem arriscar a vida indo para Costa Rica, mesmo não tendo visto para trabalhar lá, do que ficar sob o regime de Ortega. Não é algo que você gostaria de enfrentar no Brasil. Não é uma coisa boa imaginar ser privado de todas as suas liberdades, porque foi isso que realmente aconteceu. Você não pode decidir se quer estudar ou não, nem o assunto que quer estudar. Você não pode apoiar outros candidatos livremente. Ortega joga opositores na prisão. Você não pode controlar onde falar ou o quê, porque ele controla a mídia. Você não decide nada. Os jovens estão muito preocupados. Queremos um futuro melhor para a Nicarágua, porque neste momento não há futuro lá. Diria para eles repensarem o que estão apoiando, porque não é algo que gostariam de enfrentar. Quem apoia Ortega sabendo disso não é democrático.
Como está a situação econômica na Nicarágua?
O governo controla parte do investimento que vai para o país. Falo de empresas estrangeiras que querem começar na Nicarágua. Normalmente, as empresas que estão se estabelecendo no país precisam fazer aliança com o regime. É difícil entrar. As empresas têm de passar por muitos processos. Não é um mercado livre, embora Ortega não admita. Sim, ele está controlando a economia. E é engraçado que ele se diz democrático. Os supermercados nicaraguenses não estão como os da Venezuela. Mas a maioria dos produtos são de fornecedores locais, não há uma oferta farta, como em um país de economia livre. Os mercados informais são os que as pessoas mais frequentam.
Como o Ladies Of Liberty Alliance atua na Nicarágua?
Quando ouvi falar do LOLA, pensei que era muito importante ter o projeto na Nicarágua, porque há uma geração inteira que cresceu com Ortega, que não conhece outras alternativas. Para uma mulher que está enfrentando as consequências do sistema militar e socialista nicaraguense, é realmente importante contar com esse grupo feminino que apoia a liberdade. Começamos com reuniões on-line, secretas, porque não queríamos colocar as meninas em risco. Ninguém poderia saber quem estava na reunião, além das administradoras da chamada, por medo de gente infiltrada. As mulheres estavam muito preocupadas com a própria segurança ao entrar nesse tipo de movimento. Não queriam ter consequências para elas nem para suas famílias. Elas se conheceram recentemente, quando ganharam confiança. Mas, para ter reuniões presenciais na Nicarágua, é preciso camuflar toda a narrativa. Não podemos admitir que estamos falando de política. Para o governo é traição. Se as meninas vão em uma pizzaria e solicitam uma sala particular, dizem que estão comemorando um aniversário, fazem até decoração. Fazem parecer que é somente “coisa de meninas”, nunca podem dizer que estão falando de política. É difícil, mas estamos desenvolvendo uma comunidade. Temos compromisso com essas mulheres. Vamos conseguir cada vez mais pessoas. Por enquanto, é sobre educar, mostrar as consequências da falta de liberdade. Que ficar sem liberdade não é uma boa opção. No futuro, esperamos que mais pessoas conheçam as ideias de liberdade, juntem-se a nós e de repente façam algo sobre o governo. Mas agora a única coisa que podemos oferecer é comunidade e ensino.
Como é ser uma mulher na Nicarágua?
As mulheres não decidem por si mesmas. Não há muitas oportunidades nem para os homens nem para as mulheres. Mas, para as mulheres, as coisas são ainda mais difíceis. Por isso as pessoas saem em busca de oportunidades. Mas veja o que aconteceu com a Miss Universo 2023 [a ditadura de Ortega proibiu a volta da diretora do concurso no país, Karen Celebertti]. Sheynnis Palacios, eleita a Miss Universo neste ano, é nicaraguense e se tornou uma ameaça para Ortega. Tudo por causa de 2018, quando os protestos estavam no auge. Ela foi uma dos manifestantes, e as pessoas estão dizendo que ela as representa. Ela é uma garota muito humilde, vem de uma família muito pobre. Para Ortega, a Miss Universo é um lembrete de 2018. Pode não ser seguro para ela ficar no país. Agora a situação está muito perigosa para ela. A única coisa que ela fez foi protestar contra Ortega.
Está acompanhado o cenário político do Brasil? Se sim, gostaria de deixar uma mensagem para os brasileiros?
Preocupo-me com o apoio de Lula a Ortega. É importante lembrar que Ortega começou a tomar o poder aos poucos. Aconselho os brasileiros a buscarem suas liberdades, como a liberdade econômica, a liberdade de expressão. É muito importante poder falar a favor ou contra o governo. Diria para os brasileiros procurarem universidades, igrejas, centros comunitários, todo tipo de associação livre. Porque, se o governo começar a intervir nestas associações, as pessoas começam a perder liberdade. Que lutem por manter a liberdade em seu país.
Fonte: revistaoeste