Nos últimos dias, o assunto que correu fervorosamente pelas redes sociais foi o transplante de fezes. Ele não é tanta novidade assim no meio acadêmico e científico, porém, com cada vez mais frequência, a população consegue acesso aos casos de sucesso que ocorrem pelo mundo —nos tratamentos de doenças inflamatórias intestinais, infecção intestinal grave, doenças severas relacionadas à diarreia crônica e outras aplicações.
Aqui no Brasil, a Anvisa ainda estuda a regulamentação para que o transplante de fezes seja um tratamento eficaz nesses casos graves, mas ainda há muito a ser percorrido.
Após algumas publicações nas redes sociais, o transplante de fezes se tornou assunto não pela aplicação ou pela comprovação científica por trás da terapia, mas pelo medo e receio que o próprio nome dá.
Ele, na verdade, é um transplante de microbiota fecal, ou seja, FMT, e nem de longe é realizado como alguns leitores acham que é feito —alguns citam beber líquidos, outros em colocar fezes dentro de cápsulas… As histórias e receios são variados.
Para entender melhor sobre o tratamento, aplicações e como, de fato, o indivíduo pode se beneficiar —inclusive ao nível de saúde pública—, conversei com uma das maiores autoridades em microbiota intestinal no Brasil hoje, Alessandro Silveira, microbiologista.
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Que paciente pode se beneficiar do transplante de fezes?
Qualquer paciente que precise melhorar o seu microbioma. O transplante de fezes é um procedimento natural, temos diversos relatos em diversas culturas.
O mais famoso é com certeza o relato da “sopa amarela”, ou xarope dourado (mistura de água e fezes frescas), terapia usada pelo médico da dinastia Ming, Li Shizhen, 200 anos depois de ter sido registrado o uso de fezes no Manual de Medicina de Emergência, no século 4 a.C.
O FMT é uma maneira radical de modificar a microbiota intestinal de forma rápida. É indicado quando os métodos tradicionais (alimentação, estilo de vida) não foram efetivos anteriormente. A indicação primordial desse tratamento é pela infecção de Clostridium difficile, ou seja, a doença colite pseudomembranosa, e em alguns lugares é a terapia de primeira escolha, antes mesmo do uso de antibióticos.
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Como é realizado o procedimento, da seleção do doador até a aplicação do tratamento no paciente?
Após a indicação realizada exclusivamente por médicos e para procedimento em clínica médica, a seleção do paciente doador é realizada por conveniência. Ou seja, ele deve fazer parte do vínculo social ou do conhecimento prévio de determinada pessoa, a saber do seu estilo de vida (da certeza de conhecer os hábitos desse doador). Um ponto: cônjuges são geralmente contraindicados.
Após a seleção, temos a necessidade da realização de exames laboratoriais de sangue e fezes para avaliar saúde, condições preexistentes e processos infecciosos, mesmo que sejam assintomáticos.
Sequenciamento genético da microbiota é também um exame precioso nessa triagem do paciente. Infelizmente, a gente sabe que acontece de pessoas não realizarem nenhum desses exames e simplesmente receberem doação de fezes de pessoas por nível de amizade, sem a triagem minuciosa inicial, o que é um perigo.
O preparo do paciente para receber a doação após a seleção da microbiota é feito geralmente com laxante e antibióticos, porque o que queremos fazer nesse paciente é justamente trocar e modificar a microbiota dele.
Sobre o procedimento, ainda não há um padrão, nem no Brasil nem em países diferentes que já realizam o procedimento. Mas é, no geral, como uma colonoscopia, ou seja, implante via retal (mas há outra possibilidade que é via oral, em cápsulas, após extenso tratamento da amostra, obviamente).
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Quais as etapas que ainda faltam no Brasil para regulamentar a prática? Existe algum impeditivo científico ou ético?
Basicamente, todas as etapas ainda precisam de aprovação no Brasil. Existe uma aprovação do CRM (Conselho Regional de Medicina) e do Ministério da Saúde para a infecção por Clostridium difficile (colite pseudomembranosa), que é uma autorização formal já realizada.
Porém, o CRM permite que seja realizado esse procedimento em outras indicações médicas (como terapia off-label), quando as evidências científicas são muitas e bem descritas. As doenças inflamatórias intestinais (Chron e colite), autismo e SII (síndrome do intestino irritável) são as que possuem melhores evidências.
Não existe impeditivo científico, mas ético. O paciente, ao assinar o termo, deve estar ciente de que o tratamento tem caráter experimental e que, apesar de possuírem evidências científicas preliminares promissoras nesses diversos tratamentos, ele ainda não é aprovado e existem diversas complicações e riscos associadas ao procedimento, como citei anteriormente, quando não há uma minuciosa seleção do doador e quando a aplicação do transplante também não respeita aspectos sanitários mínimos.
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Existe algum fenótipo, enterotipo, específico relacionado ao melhor doador de fezes para casos de doença infeciosa grave, em que o paciente seria beneficiado de forma imediata?
Muitos casos estão sendo conduzidos, mas ainda em caráter muito inicial, em pacientes com Aids, hepatite C e B, entre outras condições mais graves.
Fenótipo para doenças inflamatórias infecciosas de doença intestinal não há, mas fenótipo de manifestação sistêmica, sim. Por exemplo: para pacientes autistas.
É realizado sequenciamento genético da microbiota do doador e, baseado nesse perfil microbiano e numa inferência metabolômica, é possível saber que os metabólitos daquela microbiota são compatíveis com benefícios à saúde de um paciente que receberá o FMT. Já sabemos mais precisamente de aplicações em obesidade, autismo e depressão.
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Aqui no Brasil, o primeiro caso foi realizado em 2013, e em 2022 resultados preliminares positivos foram divulgados em um estudo conduzido pelo Hospital das Clínicas da UFMG/Ebserh, onde dados como o perfil de fezes dos brasileiros seria de até 30% a mais de firmicutes (um filo de bactérias especialmente positivo para o organismo humano, atuando de forma positiva em diversos eixos do nosso corpo, como eixo intestino-cérebro-intestino, intestino-tireoide, intestino-rins). Por que você acha que, mesmo com dados de sucesso e casos registrados no mundo todo, como o último publicado da senhora de 67 anos que realizou o FMT no Paraná, o procedimento ainda não é amplamente divulgado ou aplicado?
Na verdade, o FMT é feito muito tempo antes dessa publicação. Esse registro foi feito para a comunidade médica e científica. Infelizmente, temos muitas questões envolvidas. Ainda precisamos de estrutura para isso.
Temos bancos de fezes já, o que é muito bom, e os doadores são monitorados com exames de rotina. Lembrando: o filo firmicutes mudou, hoje o termo correto é bacillota. Não concordo que não tenhamos divulgação sobre o tema. Semanalmente temos matérias, eu mesmo já falei em diversas reportagens sobre isso, temos estudos e temos base para aplicação.
Agora, sobre a aplicação, sim, o grande entrave é a regulamentação da prática. Hoje em dia sabemos que cada um faz do jeito que quer, aplicação de sonda nasogástrica do jeito que quer, acuidade e preparo.
A realidade do FMT no Brasil ainda é da informalidade, mas cada país tem uma realidade diferente. Para que seja regulamentado, temos primeiro que entender como caracterizar esse procedimento.
Existe uma procura muito grande no mercado, e o que há é um aproveitamento dessa situação. Esse é o problema da informalidade, existem práticas de preços extremamente altos (ultrapassando 25 mil reais pelo transplante de fezes), situação que a regulamentação poderá equalizar, evitando preços e práticas abusivas.
Para saber mais sobre o transplante de fezes e outros assuntos relacionados à saúde intestinal, pesquisa e microbiologia, acesse o perfil @alessandromicro
Fonte: uol
Colunista: @chefcarlosmiranda