O médico Marcelo Amato, pioneiro na técnica de ventilação protetora, propõe uma revisão na causa da morte do ex-presidente Tancredo Neves. Ele afirma que a pressão nos pulmões do político foi determinante para o falecimento do político. O profissional deu a declaração em entrevista à revista Piauí, nesta segunda-feira, 24.
Amato sustenta que a causa principal da morte de Tancredo Neves foi “pulmão de choque, situação agravada por ventilação inadequada”. Ele observa falência de órgãos em seus estudos ao reproduzir o padrão de ventilação aplicado ao político.
Tancredo Neves, que seria o primeiro civil a ocupar a chefia do Executivo federal depois de 21 anos de regime militar, foi hospitalizado um dia antes de sua posse, em 15 de março de 1985. Ele faleceu em 21 de abril daquele ano.
Na época, Amato estava no último ano de medicina na Universidade de São Paulo (USP) e conseguiu se aproximar do leito de Tancredo Neves na unidade de terapia intensiva (UTI) do , em São Paulo. Inicialmente, suspeitava-se de apendicite, mas a biópsia revelou um leiomioma não tratado adequadamente.
Tancredo Neves passou por três cirurgias desde a internação. A terceira ocorreu em 26 de março de 1985 e visava a estancar um sangramento no intestino. Mesmo depois de uma quarta cirurgia, ele foi mantido vivo por aparelhos e drogas.
No leito do presidente, Amato notou livedo reticular, um indicador de problemas cardiovasculares e respiratórios. Tancredo Neves respirava com um ventilador pulmonar moderno, o Bear 5, que registrava 55 cmH₂O por ciclo respiratório, quase o dobro do máximo recomendado atualmente.
A função do ventilador mecânico é ventilar os pulmões. O aparelho imita a respiração natural. Para um efeito benéfico, ele deve ser ajustado em termos de pressão, volume, porcentagem de oxigênio e frequência respiratória.
Marcelo Amato, agora com 61 anos, dedicou sua vida ao estudo da ventilação mecânica. Ele supervisiona a UTI Respiratória do Hospital das Clínicas (HC) e dirige o Laboratório de Investigação Médica LIM-09, onde aplica os critérios de ventilação protetora.
Depois da morte de Tancredo Neves, Amato e sua equipe descobriram que altos níveis de pressão no ventilador mecânico eram prejudiciais. Essa descoberta levou à proposta de novos parâmetros de ventilação.
A base da nova abordagem veio do livro Oxygen transport in the critically ill, de James Snyder e Michael Pinsky, que sugeria uma ventilação mais suave e com menor volume de ar.
No fim dos anos 1980, Amato testou os novos padrões em pacientes com leptospirose. Divididos em dois grupos, um seguiu os métodos convencionais e o outro, os novos princípios de ventilação protetora, que resultaram na redução da mortalidade de 70% para 35%.
O estudo foi publicado em 1998, no jornal acadêmico New England Journal of Medicine, depois de uma revisão de um ano e meio. “Chegaram a pedir raio X dos pacientes”, disse Amato à Piauí. “Um dos revisores veio pessoalmente visitar a nossa UTI.”
Em 2000, a ARDSnet confirmou os novos padrões de ventilação, depois de um estudo clínico com cerca de 700 pacientes. A estratégia de ventilação protetora reduziu a mortalidade e foi adotada mundialmente.
Durante a pandemia de covid-19, a ventilação protetora foi reafirmada nas UTIs do HC. Dos 1.503 pacientes internados, 82% receberam ventilação protetora, que reduziu a mortalidade.
A ventilação protetora mudou paradigmas na medicina e foi amplamente adotada em hospitais. “Ventilar um paciente de outra maneira seria como diagnosticar uma pneumonia e não receitar um antibiótico”, compara o pneumologista André Nathan Costa à Piauí.
Fonte: revistaoeste