“O que se guarda, e se esconde, é a primeira coisa que se assalta; a liberdade do porto é o que o conserva livre da invasão.”
Era abril de 2019. Naquela data, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou a decisão que daria início a um dos casos mais emblemáticos de censura da história recente do Brasil. À época, a Corte censurou a revista Crusoé, depois de o veículo publicar uma capa com a imagem do ministro Dias Toffoli sob o título: “O Amigo do Amigo do meu Pai” — codinome usado para se referir ao magistrado no escândalo de corrupção que envolveu a empreiteira Odebrecht.
Esse caso de cerceamento deu início ao Inquérito 4.781 — o das Fake News. O advogado , um dos maiores juristas e especialistas em liberdade de expressão no Brasil, foi o primeiro intercessor a atuar nesse caso que envolveu a Crusoé. Ele guardou tudo o que viu e ouviu — além de utilizar sua experiência e bagagem — para relatar, em primeira pessoa, os bastidores daquilo que aconteceu e o que continua a acontecer no Brasil.
Marsiglia convida o povo brasileiro a mergulhar nesses eventos por meio do seu mais recente livro: Censura por toda parte — Os bastidores jurídicos do Inquérito das Fake News e a nova onda repressora que assola o Brasil — lançado em julho, pela editora Avis Rara. Na obra, o autor revela ao leitor os “perigos que rondam nosso direito mais fundamental: o de discutir, o de perguntar e o de pensar diferente”. O jurista também lembra que a censura é um instrumento usado por aqueles que detêm — ou querem deter — o poder.
Em seu livro, Marsíglia conta a sua atuação na defesa de réus do STF. No caso do Inquérito das Fake News, ele teve dificuldades para acessar os documentos de seus clientes. Inicialmente, o advogado acreditava que o problema era “um mero descuido da Corte”, afinal, a súmula vinculante de número 14 do STF garante que os juristas tenham acesso aos processos. Contudo, o tempo passou e a dificuldade em acessar inquéritos, importantes para a defesa, continuaram.
Neste ano, o Judiciário pode “comemorar” os cinco anos do inquérito que censurou a Crusoé. Para Marsiglia, esse caso é a “espinha” dos nove inquéritos semelhantes que estão em andamento no STF. O objetivo do autor é justamente “passear” pelo principal julgamento que promove a censura no Brasil e proporcionar aos leitores conhecimento para reconhecer e identificar casos reais de cerceamento. O jurista explica que, embora haja muitos casos que mostram a falta de liberdade de expressão, nem tudo é, de fato, um caso de censura, e por isso decidiu explicar “didaticamente” sobre o assunto em sua obra.
Para exemplificar a explicação sobre o tema, o autor menciona diversos casos de censura que foram marcantes durante as eleições de 2022. Ele lembrou do caso da produtora Brasil Paralelo, que ocorreu em outubro de 2022, quando o STF decidiu pela suspensão da monetização do canal do YouTube da empresa. À época, a plataforma iria lançar o documentário Quem mandou matar Jair Bolsonaro?, mas a Corte proibiu a publicação.
Marsiglia destaca que os Poderes têm utilizado a censura com a narrativa de “proteger e preservar a democracia”, supostamente sob risco. Porém, essas medidas, que seriam “excepcionais” para garantir uma suposta liberdade, viram regras que normalizam a repressão.
O autor também lembra que os ministros do STF tomam as decisões por acreditarem que a censura pode ser um “organizador da liberdade de expressão”. E muitos que apoiam as medidas concordam com esse discurso. O cerceamento tem sido vendido como uma forma de “higienizar o debate público”. O advogado considera que essa pode ser a consequência mais grave, pois a censura é colocada aos poucos.
Em 1988, brasileiros comemoraram “a volta da democracia”. Artistas, acadêmicos e jogadores de futebol levantaram o punho e comemoraram a nova liberdade que nascera de um parto que ansiava por uma certa liberdade e uma democracia moderna.
Mas, a pergunta que fica é: qual liberdade? Ou: liberdade para quem? Ou, qual tipo de democracia moderna nasceu naquela data? Marsiglia afirma categoricamente no livro que “a censura no Brasil nunca acabou, jamais deixou de existir”. “Ela permanece e é tão ou mais cruel que as demais a que assistimos pela janela da história”, escreve o autor. “A censura não acaba, apenas se modifica, alterna de mãos.”
No caso do Brasil, o exemplo da revista Crusoé e outros subsequentes mostram que a concentração do poder que manda e desmanda está nas mãos do Judiciário. Para fortalecer seu argumento, Marsiglia cita no livro o jurista norte-americano Ronald Dworkin (1931-2013). Esse jurista afirmava que “os espaços abertos com que as constituições modernas e democráticas foram e são concebidas permitem aos juízes a concentração do poder na modernidade”.
O filósofo alemão Carl Schmitt (1888-1985), por sua vez, afirmava que “a soberania do Estado está centrada na decisão”. Isto é, “o que é ou não constitucional passa às mãos de um intérprete dotado de poder concentrado, e assim a censura passa a ser representada pelas decisões judiciais dos magistrados”.
Na maioria das vezes, no entanto, a “censura judicial pode passar despercebida, pois, em geral, não partem sempre de um mesmo ministro”. Isso a impede de ser personificada dentro de uma mesma pessoa — como acontece em países como Venezuela, Coreia do Norte, Nicarágua e outras ditaduras. No caso do Brasil, contudo, não se trabalha dessa forma.
De acordo com Marsiglia, “isso mudou a partir do momento em que as decisões monocráticas de um único magistrado da mais alta Corte brasileira, por meio de inquéritos sigilosos, praticamente passaram a controlar todas as questões relacionadas ao debate público nacional”.
Marsiglia acredita que o livro não vai deixar o leitor ter dúvidas de que a censura floresce no Brasil, em razão do autoritarismo que está enraizado na cultura brasileira. O autoritarismo sempre existiu, a censura também. Cabe ao leitor mergulhar no livro para entender os perigos que rondam o país. Além disso, reler a epígrafe desta reportagem, onde é descrita a frase de Matias Aires, filósofo brasileiro do século 18: “O que se guarda, e se esconde, é a primeira coisa que se assalta”. A liberdade seria esse tesouro que o brasileiro tenta proteger com sete chaves, mesmo sabendo que pode ser assaltado.
Fonte: revistaoeste