Via @consultor_juridico | O Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu, na última sexta-feira (20/9), o julgamento de repercussão geral no qual estabeleceu critérios sobre os casos excepcionais em que o Judiciário pode determinar o fornecimento de medicamentos não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS). A tese é vista por especialistas como um bom esforço da Corte, mas que cria obstáculos para os pacientes, principalmente por vincular a concessão dos remédios ao andamento da questão na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
O fornecimento de medicamentos é um dos assuntos mais complexos e polêmicos do Judiciário brasileiro, pois afeta dezenas de milhares de processos e tem forte impacto nas contas públicas e decisões do Executivo. Muitos remédios judicializados são de alto custo — nos casos de doenças raras, as unidades têm preços na casa dos milhares ou até milhões de reais.
Segundo a tese apresentada de forma conjunta pelos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, se um medicamento não está nas listas do SUS, não pode ser fornecido por decisão judicial. Mas isso pode acontecer em situações excepcionais, desde que o remédio esteja registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que sejam preenchidos alguns requisitos.
O voto conjunto traz critérios como negativa administrativa, incapacidade financeira do paciente e medicamento eficaz, seguro, imprescindível e insubstituível. Também foram estipuladas regras a serem seguidas pelos juízes, que precisam, por exemplo, consultar órgãos técnicos.
Entidades ligadas a pacientes com doenças raras repudiaram a decisão. Uma delas foi a Federação Brasileira das Associações de Pacientes com Doenças Raras (Febrararas). O presidente da entidade, Toni Daher, explica que a crítica da federação é a um requisito específico da tese dos ministros: a chancela da Conitec.
Obstáculo burocrático
Conforme estabelecido por Gilmar e Barroso, em ações judiciais sobre o tema, o autor deve comprovar que não houve pedido para incorporação do medicamento no SUS; que houve pedido, mas a Conitec está demorando para analisá-lo; ou que a comissão negou a incorporação de forma ilegal.
A Conitec, vinculada ao Ministério da Saúde, faz análises de custo-efetividade (ou seja, leva em conta os gastos e os resultados) sobre novos medicamentos para recomendar ou não sua incorporação ao SUS.
Para Daher, exigir que o medicamento passe pela Conitec nessas situações é discriminatório: “Se o custo é alto, o cidadão não tem mais direito?”. Ele diz que antibióticos com preços na casa das centenas de reais, prescritos para períodos longos, não passam pela avaliação da comissão, mesmo quando a questão é judicializada.
O presidente da Febrararas também destaca a “morosidade” e a “falta de clareza” da Conitec. Segundo ele, a incorporação ao SUS após o lançamento de um novo remédio pode durar anos. Ou seja, um paciente pode não ter à sua disposição o tratamento mais atual e inovador para sua doença, mesmo que a “linha terapêutica apresente respostas mais eficazes”.
Por exemplo, o Zolgensma (nome comercial do onasemnogene abeparvovec-xioi), considerado o medicamento mais caro do mundo (cada dose única custa até R$ 6,9 milhões para o governo) e usado no tratamento de atrofia muscular espinhal (AME), foi incorporado ao SUS em dezembro de 2022, mas ainda não está disponível para os usuários, devido a problemas na formalização do acordo com a fabricante.
Daher questiona a atribuição do dever de avaliação à Conitec nos casos de judicialização, já que hoje o governo não consegue sequer pactuar a incorporação dos medicamentos aprovados pela comissão.
Ele também lembra que a maioria das doenças relativas a muitos dos medicamentos aprovados não têm, até hoje, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas (PCDT) — documentos com critérios para o diagnóstico e parâmetros para o tratamento.
Segundo o presidente da Febrararas, a entidade presencia muitos casos de pacientes que, mesmo após terem liminares favoráveis, não conseguem aproveitar os medicamentos: “Hoje já demora. Imagina com a chancela da Conitec”.
Segundo um levantamento feito em 2022 pelo Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) em parceria com a consultoria Ernst & Young Parthenon, 62% dos medicamentos solicitados por meio de ação judicial já estavam presentes nas listas do SUS. Dentre os que não constavam, 73% possuíam alternativas terapêuticas já incorporadas.
Ou seja, o problema maior, como aponta Daher, é “a gestão do sistema”, pois os medicamentos já aprovados pela Conitec não são disponibilizados nas farmácias.
O presidente da Febrararas acredita que o STF deveria exigir do Ministério da Saúde a elaboração de um projeto de independência da Conitec. Para ele, a comissão deveria ter status de agência e contar em seus quadros com membros da sociedade científica e civil, como ocorre nos EUA e em países da Europa.
Hoje, a Conitec é totalmente dependente do Ministério da Saúde e mais da metade de seu plenário é composto por representantes de secretarias da pasta. Daher defende a participação de especialistas em doenças raras e representantes dos pacientes
Outro problema apontado por ele é que a Conitec só ouve o testemunho do paciente quando o relatório técnico já está pronto.
De acordo com Daher, doenças raras são um assunto complexo e os próprios médicos geneticistas, muitas vezes, precisam estudá-las por dias para entender melhor seus efeitos. Para ele, sem especialistas que acompanham os pacientes, a situação real não é compreendida.
Além disso, o Brasil tem poucos especialistas do tipo. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Genética Médica (SBGM), em 2020 o país tinha 332 geneticistas — um para cada 1,25 milhão de brasileiros. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que haja um para cada cem mil habitantes.
Até por isso, falta conhecimento para os juízes que decidem sobre esses medicamentos. Uma forma melhor de lidar com isso, segundo o presidente da Febrararas, é a criação de varas específicas para casos de saúde. Isso já existe no rio grande do sul, no Paraná e em Goiás.
Daher acredita que faltou, na decisão do STF, um “olhar de quem está na ponta” do tema, ou seja, de quem entende o que acontece na prática. Na sua visão, a Corte não escutou esse lado, mas apenas o do Ministério da Saúde.
“É claro que os ministros querem fazer o melhor. Disso não tenho dúvida. Mas o entendimento das doenças raras especificamente é muito difícil para todos. Se não conversar com a ponta, não vai ter os relatos verdadeiros do que acontece”, pontua.
Provas difíceis
A advogada e professora Fernanda Schaefer Rivabem, pós-doutora em Bioética, diz que é difícil comprovar ilegalidade em uma decisão da Conitec, como exigido pela tese do STF, já que os pareceres são “bem técnicos”. Para demonstrá-la, seriam necessárias provas técnicas, que custam caro.
Além disso, o critério é “abstrato demais”, pois não há especificação sobre o que configura ilegalidade. Isso “resultaria em análises subjetivas, o que pode trazer prejuízos tanto para quem pleiteia, quanto para o sistema de saúde”.
Por isso, na sua visão, esse critério deve ser pouco utilizado. A tendência, segundo ela, é que o critério da demora na análise seja mais usado.
Existe um site no qual é possível acompanhar o status dos pedidos de incorporação de medicamentos. Mas os motivos das rejeições são disponibilizados em outra página.
“Há uma complexidade importante”, aponta Henderson Fürst, presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP. “Como um paciente conseguirá demonstrar a ilegalidade (que não seja apenas do prazo) na análise de uma decisão de não incorporação sem um especialista em avaliação de tecnologia em saúde para apontar o problema?”, indaga.
O paciente precisaria de um relatório que explicasse por que a análise de incorporação da Conitec deve ser considerada ilegal. A produção desse documento demandaria um médico — que provavelmente seria do SUS. Por isso, Fürst acredita que, na prática, “isso não ocorrerá”.
Embora considere a tese “adequada para a sustentabilidade do SUS”, Marinella Afonso de Almeida, sócia do escritório Marzagão e Balaró Advogados e especialista em Direito Médico, destaca que os PCDT “eventualmente podem não corresponder ao tratamento mais atual existente para determinada patologia”.
Portanto, na opinião da advogada, o autor da ação “tem para si uma prova processual dita diabólica, pois tecnicamente não há como comprovar que o medicamento pleiteado seria insubstituível”.
Segundo a tese de Gilmar e Barroso, a concessão dos remédios deve se basear “em avaliações técnicas à luz da medicina baseada em evidências”. Schaefer ressalta que, nos casos de doenças raras, “nem sempre será possível trazer estudos de metanálise ou randomizados”, pois muitas vezes eles não existem.
Para ela, no entanto, isso não inviabiliza ou dificulta o pedido: “Apenas exige uma cautela maior na produção do material que sustenta a necessidade do medicamento”.
Já Fürst indica que a análise, “à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco” (como previsto no voto vencedor) é justamente aquela feita pela Anvisa.
“Se é válido que o médico assistente do paciente fundamente sua prescrição em relatório médico com base em evidências científicas, não faz sentido a determinação de que o paciente peticione demonstrando questões relativas ao medicamento cuja análise é da competência da Anvisa e que por ela já foram aceitos”, assinala.
Competências
Paralelamente à definição dos critérios, o STF também homologou, com alguns ajustes, três acordos feitos entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, que definem a responsabilidade dos entes federativos em ações judiciais sobre fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS e a competência para resolvê-las.
Conforme as propostas ajustadas, os processos devem tramitar na Justiça Federal quando o valor anual específico do remédio ou do seu princípio ativo for igual ou superior a 210 salários mínimos.
Fürst aponta que, nesses casos, pacientes vulneráveis e dependentes das Defensorias Públicas não poderão mais usar as Defensorias estaduais (DPEs), mas apenas a da União (DPU). A instituição nacional “não possui estrutura espalhada e interiorizada pelo Brasil” — está presente em menos de 30% dos municípios brasileiros que contam com seção ou subseção da Justiça Federal.
Para Schaefer, a falta de acesso à DPU e ao Ministério Público da União em determinados pontos do país pode prejudicar o acesso à Justiça: “Será necessário pensar rapidamente soluções para essas situações, para evitar tal desassistência”.
Poucas mudanças
A advogada explica que critérios como “inexistência de substituto terapêutico” e comprovação da segurança e eficácia do medicamento não são novos: “Por muitos anos vêm sendo aplicados pelo Judiciário, portanto nada muda”.
O advogado Daniel Oliveira, fundador de um escritório que atua de forma exclusiva com direito à saúde, também aponta que esgotar todas as possibilidades de tratamentos e medicamentos disponíveis no SUS já é uma exigência do Judiciário há muitos anos.
Ele acredita que, na prática, os pedidos continuarão sendo negados. De acordo com o advogado, os juízes podem exigir que o paciente, de início, tente as alternativas padrão do SUS e só acione a Justiça novamente mais tarde, caso o tratamento não dê resultado.
Segundo a tese aprovada pelo STF, os juízes devem consultar o Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NatJus) sempre que disponível, ou outros entes e pessoas especializados na área da saúde.
Oliveira indica que, nos casos de medicamentos contra cânceres, a maioria dos pedidos na Justiça atualmente são negados, após o NatJus alegar que o tratamento é caro demais para uma sobrevida muito pequena do paciente.
Problemas comuns
Ele ainda ressalta as dificuldades enfrentadas pelos pacientes atualmente, mesmo quando conseguem decisões favoráveis. “A maioria das ordens judiciais são desrespeitadas pelo SUS”, aponta.
De acordo com Oliveira, os governos muitas vezes não cumprem o prazo determinado para fornecimento do medicamento e o Judiciário “raramente impõe multa”. Assim, os advogados precisam pedir o bloqueio de valores das contas do ente federativo. Ou seja, é preciso um esforço adicional e o novo procedimento está sujeito a mais demora.
A maioria dos clientes de Oliveira são pacientes com câncer. Por isso, sua grande preocupação é com algo comum para tais pacientes: o uso off label dos medicamentos, ou seja, sua aplicação em doenças para as quais não são originalmente recomendados.
O advogado lembra que alguns medicamentos considerados off label, sem registro na Anvisa, já têm registro em agências de outros países ou estudos clínicos que indicam sua eficácia. Muitas vezes, eles são a única alternativa para o paciente.
“A burocracia e o tempo exigidos para registro de novos medicamentos na Anvisa é grande demais, o que não acompanha as novas tecnologias e descobertas na área da saúde, e irá prejudicar inúmeros pacientes”, pontua.
O voto de Gilmar e Barroso explica que “medicamentos off label sem PCDT ou que não integrem listas do componente básico” são considerados remédios não incorporados ao SUS, para fins de aplicação da tese.
Na interpretação de Oliveira, a decisão do Supremo traz “critérios ainda mais rígidos do que os critérios que já são utilizados”. Isso deve inviabilizar o acesso de muitos pacientes aos medicamentos não registrados na Anvisa ou não incorporados pela Conitec que “trariam resultados exponenciais para o seu tratamento”.
RE 566.471
RE 1.366.243
José Higídio
Fonte: @consultor_juridico