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Síndrome de Guillain-Barré: a preocupante ressurgência da velha doença e a situação de emergência nacional de saúde no Peru.

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*Por Paulo Porto de Melo

Domingo passado, dia 9, o governo do Peru declarou emergência nacional de saúde após quatro pacientes morrerem de complicações decorrentes da síndrome de Guillain-Barré.

A medida, “viralizada” pela mídia, tem implicações mais administrativas do que de contenção epidemiológica, haja vista esta doença não ser uma doença de natureza infecciosa. Não há a menor possibilidade de transmissão inter-humanos ou mesmo interespécies.

Segundo o governo local, a medida foi tomada com o objetivo de facilitar a burocracia para a compra de insumos e medicamentos altamente especializados (e caros), utilizados no tratamento dessa síndrome, que, se não tratada a tempo, pode ser fatal.

A profusão de manchetes e imagens de micro-organismos que ilustram reportagens sobre a agora famosa síndrome constitui, por si própria, mais uma constatação do estado de doença que afeta a comunicação em nosso país. A síndrome de Guillain Barre não é causada por micro-organismo algum, nem a emergência de saúde se destina a conter a propagação dessa doença, haja vista não ter natureza contagiosa.

“Casos de síndrome de Guillain-Barré disparam no Peru, e governo declara emergência”

Por que, então, testemunhamos isto? Porque vivemos em uma era em que mais valem os “likes”, os “cliques”, os compartilhamentos, o “tráfego” que gera monetização do que a mensagem séria, de esclarecimento correto à população, que, após a última pandemia, naturalmente se encontra ávida por notícias médicas, e um tanto quanto perdida, não à toa, no que e em quem confiar.

Vamos aos fatos, então? A síndrome de Guillain Barré é conhecida desde 1859, quando Jean Baptiste Octave Landry de Thézillat, médico francês, registrou pela primeira vez na literatura médica um caso de “paralisia ascendente aguda”. Foi somente em 1916, no entanto, que foram descritas não apenas as manifestações clínicas, mas também os achados de exames complementares, por Georges Guillain, Jean-Alexandre Barré e André Strohl, médicos neurologistas franceses cujos nomes oficialmente “batizaram” a doença. Strohl, cujo nome não aparece associado à síndrome, era muito jovem à época, sendo esta uma das possíveis razões para a ausência de seu nome dado à doença.

Síndrome de Guillain-Barré (Interna)Síndrome de Guillain-Barré (Interna)
‘A Síndrome De Guillain-Barre Não É Causada Por Micro-Organismo Algum’, Diz Paulo Porto De Melo

A doença foi descrita em 1916, em dois soldados, durante a Primeira Guerra Mundial. Eles apresentaram formigamento e fraqueza muscular ascendente (iniciada nos membros inferiores) e alterações muito específicas ao exame de liquor, que caracterizam a doença e fecham o diagnóstico.

Sendo assim, a nossa “centenária” doença não é novidade. Neste século de existência, muito se avançou na compreensão dos mecanismos que ocasionam a doença, das suas fases e dos tratamentos empregados para seu combate.

“O que é a síndrome neurológica que fez o Peru declarar estado de emergência”

Inicialmente tida como uma doença desmielinizante pós-infecciosa, hoje teorias demonstram que, na verdade, o mecanismo pode ser mais complexo, atacando não apenas a mielina (o revestimento dos nervos) quanto os neurônios dos nervos periféricos em si.

Qual é o risco, então? Como toda atividade muscular de nosso corpo é comandada por um ramo nervoso, se a doença acomete o revestimento ou parte dos neurônios, qualquer músculo pode ser atingido pela doença, incluindo-se, aí, os músculos respiratórios — e é aí que mora o perigo. Ao falharem, desencadeiam insuficiência respiratória — algo potencialmente fatal.

A compreensão do mecanismo de origem da doença permitiu à medicina desenvolver formas de combatê-la, já consagradas e eficazes na literatura científica. A utilização de uma classe especial de medicações, as imunoglobulinas, ou plasmaférese (uma técnica em que o plasma do paciente é filtrado e autoanticorpos são eliminados) é muito eficaz quando realizada a tempo.

Tanto as imunoglobulinas quanto a plasmaférese atacam um elemento central na gênese da doença: autoanticorpos que são produzidos pelo sistema imunológico e que acabam identificando a mielina ou parte dos neurônios como “alvo” a ser destruído. Com essas intervenções, removem-se esses autoanticorpos e se modula a atividade imune, permitindo ao paciente se recuperar.

A doença é rapidamente progressiva, daí a necessidade de ser realizado o diagnóstico e o tratamento precoces, preferencialmente em hospital com retaguarda de UTI e fisioterapia neurológica. A maior parte dos pacientes apresenta recuperação plena em semanas, embora uma parcela possa requerer fisioterapia por períodos prolongados e permanecer com sequelas (especialmente aqueles diagnosticados e tratados tardiamente), e cerca de 5% evoluem a óbito.

Mas então não existe relação desta síndrome com doenças infecciosas? A interpretação científica atual revela que existe, sim, relação com doenças infecciosas ou, mais apropriadamente, com desafios imunológicos, haja vista que estes usualmente precedem o início da doença.

A interpretação atual, então, nos leva a pensar que algo que produza uma resposta imune muito exacerbada pode acabar induzindo o sistema imunológico ao erro, a identificar partes do próprio organismo (como a mielina ou os axônios dos neurônios) com ameaças e passar a atacá-las, produzindo os sintomas.

Assim, ao longo desses mais de cem anos de conhecimento da doença, não é incomum vermos “surtos” de Guillain-Barré após epidemias de diarreia ou outras doenças de natureza viral. Na verdade, é de amplo conhecimento (consta inclusive das bulas) que a síndrome de Guillain-Barré pode acontecer como reação a diversas vacinas utilizadas rotineiramente nos calendários vacinais do mundo inteiro. A ocorrência desse efeito adverso, no entanto, é tão rara que o benefício das vacinas justifica com larga margem o risco ínfimo de esta síndrome se manifestar, ainda mais por possuir tratamento conhecido e eficaz.

No Peru, para citar apenas o país em evidência, outro surto semelhante aconteceu em 2019, precedido por uma epidemia de diarreia causada por enterovírus.

Afirmações constantes de reportagens divulgadas com intenções duvidosas declaram que não está descartado que um “surto desta infecção” chegue ao Brasil. Eu li a reportagem inteira, por dever de ofício, mas você, leitor, pode parar logo após a palavra “infecção”, afinal, um artigo que trata a doença que não é infecciosa como se o fosse destrói a sua credibilidade nesse exato ponto.

No Brasil, que é o que nos interessa imediatamente, houve um grande surto de Guillain-Barré concomitante à epidemia de zika vírus. Mais uma vez, uma doença infecciosa precedendo a manifestação clínica desta doença neurológica.

O fato de não ser, em nosso país, uma doença de notificação compoulsória, segundo as normas sanitárias vigentes, torna um pouco difícil dimensionar o impacto desta doença anualmente em território pátrio.

A prática clínica, no entanto, é efusiva ao demonstrar que praticamente todo médico que trabalha ou trabalhou em pronto-socorros e emergências já lidou ou lida com casos de Guillain-Barré ao longo de sua vida profissional, seja pós-infecções ou pós-vacinas, tendo a imensa maioria desfecho favorável.

Em minha experiência profissional, não consigo me lembrar do último paciente que tenha tido desfecho fatal por essa doença e que tenha passado pelas minhas mãos, ou pela de colegas próximos, em meus 25 anos de prática. Não é porque o médico brasileiro é o melhor do mundo, não. É porque o diagnóstico correto, precoce, seguido do tratamento imediato literalmente salva essas vidas, sem muito estresse.

Finalizo concitando o leitor a “filtrar” muito bem o que lê de notícias de saúde, haja vista a “dinâmica” instalada na imprensa hoje em dia, em que muito mais vale um “like” do que a consciência de ter esclarecido e tranquilizado a nossa já tão sofrida população.

Paulo Porto de Melo é especialista em neurologia, em neurocirurgia e em medicina de urgência.

Fonte: revistaoeste

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