As pesquisas que envolvem a carne cultivada, desenvolvida a partir de células animais, têm se expandido e algumas opções, como as de frango, já saíram dos laboratórios e ganharam as gôndolas dos supermercados. Os EUA, Israel e Singapura já possuem aprovação para a comercialização. Entretanto, no Brasil, a previsão é que isso ocorra a partir de 2025.
A viabilização comercial significa que esses alimentos atingiram sabor e cor semelhante ao original. Mas como os cientistas conseguiram isso?
A carne cultivada é formulada usando os mesmos tipos celulares presentes na convencional, por isso espera-se que as características sensoriais sejam também as mesmas. Além disso, a tecnologia permite a personalização por meio de análises, que envolvem a qualidade da proteína, o perfil de aminoácidos, digestibilidade e absorção de nutrientes.
O teor de gordura, por exemplo, pode ser modificado para a inclusão de outras mais saudáveis, como os ácidos graxos ômega 3 e ômega 6, que são benéficas à saúde. Ainda é possível adicionar agentes aromatizantes naturais e utilizar biomateriais comestíveis para garantir a presença de aminoácidos, gorduras e açúcares.
O produto visa atender aos hábitos de consumo e ao paladar dos consumidores, por isso os cientistas querem reproduzir, ao máximo, as mesmas características sensoriais do alimento original, como sabor, aroma e textura. No entanto, como visto, o fenômeno é complexo e influenciado por diversos fatores, como composição, os ingredientes utilizados e química.
Por que imitar aspectos sensoriais da carne convencional
O sabor e o aroma dos alimentos desempenham papéis cruciais em várias dimensões da experiência humana, abrangendo saúde, cultura e bem-estar psicológico. Entre as principais razões, Marcella Garcez, médica nutróloga, pesquisadora, professora e diretora da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia), cita a experiência sensorial, fundamental para estimular o apetite e proporcionar uma sensação de satisfação ao comer, que pode melhorar o humor e gerar conforto emocional.
O gosto e o cheiro ajudam, também, a identificar alimentos frescos e nutritivos, bem como a evitar alimentos estragados ou tóxicos. Podem ainda influenciar as escolhas alimentares e afetarem a dieta e a nutrição. “Além disso, são associados a memórias e emoções, tradições culturais e regionais, rituais e festividades, sendo capazes de criar conexão emocional, aliviar o estresse, a ansiedade e contribuir para o bem-estar geral”, diz Garcez.
No caso da carne, a reação de Maillard é uma das principais responsáveis pelo sabor e os aromas. Ela ocorre quando proteínas e açúcares presentes no alimento reagem sob alta temperatura, resultando na formação de compostos saborosos e de cor marrom. É ela que dá aquela casquinha e cor dourada à carne.
“A degradação térmica das gorduras, a desnaturação das proteínas, a evaporação de compostos voláteis e a hidrólise desempenham papéis fundamentais nesse processo e cada um desses fatores contribui para criar o gosto e o cheiro únicos e desejáveis da carne cozida”, descreve Garcez.
Para Amanda Leitolis, bióloga, doutora em biologia celular e molecular, mestre em farmacologia, e especialista sênior de ciência e tecnologia no GFI Brasil (Good Food Institute), os consumidores abertos a provar a proteína cultivada só se tornarão habituais se, entre outras coisas, como preço e disponibilidade, os aspectos sensoriais foram equivalentes ou melhores que os da carne convencional.
O sabor e o aroma devem ser os mesmos do churrasco e do bife tradicionais para que a adesão seja feita sem dificuldades ou resistências. Amanda Leitolis, bióloga, doutora em biologia celular e molecular, mestre em farmacologia e especialista sênior de ciência e tecnologia no GFI Brasil
“A combinação de técnicas avançadas de cultivo celular, engenharia de tecidos, processos de maturação e tecnologias de aromatização pode resultar em um produto que não só imita, mas potencialmente melhora o perfil sensorial da carne tradicional, tornando-a uma alternativa atraente e sustentável”, esclarece a nutróloga da Abran.
Frango, carnes bovinas suínas e até peixes
A carne de frango é a que possui mais protótipos e produtos já autorizados para produção e comercialização, segundo Ana Paula Bastos, médica veterinária, doutora em ciências e pós-doutora pela FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e UnB (Universidade de brasília), e pesquisadora da Embrapa Suínos e Aves (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). A carne cultivada de frango já tem legislação aprovada nos EUA, Singapura e Israel. Neste último, já há legislação para bovino de laboratório, e Singapura comercializa também carne cultivada de codorna.
No Brasil, a Anvisa publicou, em dezembro de 2023, a Resolução RDC Nº 839, que regulamenta o registro de alimentos e ingredientes sem histórico de consumo no país, englobando os oriundos de cultivo celular.
Segundo Leitolis, em vigor desde 16 de março de 2024, a regulamentação coloca o país em uma posição de destaque internacional, capaz de abrir caminhos para atrair investimentos em inovações alimentares sustentáveis e cada vez mais perto de lançar produtos feitos a partir dessa tecnologia.
“Cabe agora ao Ministério da Agricultura e Pecuária definir os regulamentos complementares, que englobam o registro, regras de rotulagem e o regulamento de inspeção das unidades produtivas”, diz Bastos.
A Embrapa Suínos e Aves já tem protótipo de filezinho de frango cultivado, mas agora trabalha para o desenvolvimento de outros alimentos e ingredientes cultivados provenientes de frango, suíno e bovino. No Brasil, já existem startups apresentando alimentos cultivados com perspectivas de submeter à autorização da Anvisa para comercialização, como a gordura suína cultivada e bolinho de peixe. Ana Paula Bastos, médica veterinária, doutora em ciências e pós-doutora pela FMUSP e pesquisadora da Embrapa Suínos e Aves
Custos e oportunidades
Para Leitolis, a indústria da carne cultivada está criando mercados e oportunidades de emprego em áreas como biotecnologia, engenharia de tecidos e produção de alimentos. “O desenvolvimento e a comercialização desses produtos podem estimular investimentos em pesquisa e desenvolvimento, infraestrutura e inovação tecnológica. A sua introdução pode transformar setores tradicionais de pecuária e agricultura, incentivando a diversificação e modernização das práticas agrícolas.”
Fonte: uol