Pois bem, 2024 está fresquinho, ainda ressoando aquele ânimo de Ano-Novo, com promessas que nem tiveram tempo para serem descumpridas. Não seria eu que estragaria esse clima com a recordação do que pinica, arde, fere e ameaça. Embora, fazendo justiça, esta coluna sempre mostre o que as tais ciências da saúde têm a oferecer de proteção e bálsamo. Mas, hoje, nada de doença, mesmo que ela tenha tratamento. Admito: a gente merece um refresco!
Quem sabe um chá gelado para hidratar nesse calorão? Pegue 1 colher de sopa rasa de casca de cacau seca para cada 200 mililitros de água, que é o volume de uma xícara de chá. Ou seja, são 5 colheres rasas da casca para cada litro. Se acha que é caso, coloque um pouco a mais de líquido na chaleira, porque, depois de ir ao fogo, você terá que deixar ferver por 10 minutos e aí, nesse tempo, inevitavelmente parte dele evapora.
Espere esfriar e derrame o chá com casca e tudo em uma jarra, para ficar na geladeira durante umas 12 horas — quem sabe, de um dia para o outro. Só então coe e desfrute uma bebida que, lá no fundo, faz o paladar se lembrar da mais famosa delícia feita com o fruto do cacaueiro: o chocolate, claro.
Antes que pense que na virada do ano fui eu quem virou a cabeça e que, em vez de sorver da ciência, resolvi trocar receitas ou ensinar mezinhas, aqueles chazinhos curam-tudo da vovó, vou revelar um detalhe que dará à dica um outro gosto: quem me explicou o passo-a-passo do preparo dessa bebida foi a geneticista e bióloga molecular Ivana Beatrice Manica da Cruz, professora da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), no Rio Grande do Sul.
Lá, ela coordena o Programa de Pós-Graduação em Gerontologia e o Laboratório de Biogenômica, onde desenvolve pesquisas em parceria com outras universidades, inclusive do Japão e da Espanha. O interesse pela casca de cacau, porém, é compartilhado com pesquisadores da UnATI ( Universidade Aberta da Terceira Idade), em Manaus, que originalmente era um núcleo da Universidade do Estado do Amazonas.
“Juntos, estamos iniciando um projeto para investigar a fundo as possibilidades de utilização dessa casca na dieta ou até mesmo em produtos para pacientes sob cuidados paliativos”, explica a professora Ivana. O que ela e seus colegas conhecem a respeito do chá serve, digamos, de aperitivo.
Por que a casca do cacau?
“De uns tempos para cá, andamos bem interessados em pesquisar produtos à base de resíduos das cadeias produtivas, que muitas vezes têm um alto valor nutritivo, além de uma concentração excepcional de bioativos”, me diz a professora Ivana. E acrescenta: “Sem contar que um dos grandes desafios nestes tempos é controlar o peso e a obesidade. Não que o chá de casca de cacau emagreça. Nada disso! Mas ele não é rico em frutose, como sucos, mesmo caseiros, que, quando são consumidos sem moderação, costumam agravar a situação na balança.”
Na linha de estudar resíduos, Ivana e outros pesquisadores começaram a olhar para a borra do vinho e para diversas cascas. Mas a do cacau chamou a atenção inclusive por uma questão de sustentabilidade.
“Na produção do chocolate, apenas 10% do fruto terminam sendo aproveitados, enquanto são geradas mais de 500 mil toneladas de casca só aqui no Brasil”, conta a geneticista. “Ela já foi considerada lixo ou poluente, mas seu potencial para a saúde é enorme.”
Os benefícios do chá
A casca, só para você saber, representa 80% do cacau. O farelo feito a partir dela pode enriquecer alimentos com fibras, proteínas vegetais, cálcio, ferro e magnésio. Muita gente está indo por esse caminho. Mas, se a pedida é fazer um chá, o que mais vai parar na xícara são catequinas, epicatequinas e quercetina, substâncias bioativas capazes de mexer com a gente. Ou melhor, com a expressão dos nossos genes.
“Temos uma bagagem genética idêntica dentro do núcleo de cada uma de nossas células, não importa a que órgão ou parte do corpo pertençam “, lembra Ivana da Cruz, ao começar a explicação. “Ora, fácil deduzir que, se esses genes sempre ordenassem a produção de uma mesma quantidade e de uma mesmíssima qualidade de proteínas, seríamos uma bolha formada por células iguais.”
Isso não acontece porque, conforme o tipo de célula, alguns genes se expressam mais e outros se expressam menos, uns falam alto e outros se calam. “E podemos dizer que, diante deles, existe uma espécie de porteiro, que atende ou não a estímulos, que podem ser internos — como o dos nossos hormônios, por exemplo — ou externos. E, quando se trata de estímulo externo, alguns compostos dos alimentos desempenham muito bem esse papel.”
Polifenóis — como as tais catequinas, epicatequinas e quercetina da casca do cacau — são reconhecidos por essa capacidade de modular os genes, quando são consumidos sem exagero, mas rotineiramente. Desse modo, fazem com que as células produzam mais ou menos componentes, o que, no final das contas, ajudaria a regular o funcionamento de organismo.
“Alguns trabalhos levantam a hipótese de que os compostos encontrados na casca de cacau contribuiriam para melhorar a glicemia e aumentariam a eficiência do sistema imunológico, algo que ainda vamos conferir ao longo deste ano”, conta a pesquisadora, animada. “Não há dúvida, porém, de que eles são excelentes antioxidantes”, afirma, de antemão. “Na verdade, a bebida feita com essa casca tem uma composição parecida com a do chá verde. Mas, na minha modesta opinião, é mais saborosa.”
Em relação à cafeina, Ivana da Cruz afirma que a quantidade não é das maiores. O que domina é a teobromina, um alcaloide da mesma família química, mas que se tornou conhecido por beneficiar a saúde cardiovascular. Vem da sua presença, principalmente, a ideia de que um pedacinho de chocolate amargo por dia faria bem ao coração. No entanto, como não é todo mundo que consegue se conter com uma porção pequena, por que não trocar o “quadradinho” do doce por um golinho de chá de vez em quando?
Quente ou frio
A concentração de polifenóis — e, portanto, a dose de benefícios — não mudará, se você preferir a bebida quente. “Mas, aí, será preciso inverter a ordem das etapas na hora do preparo”, ensina Ivana da Cruz.
Ou seja, para quem prefere o chazinho morno, o certo é deixar primeiro a jarra com a água e a casca na geladeira e, só no dia seguinte, ferver por 10 minutos para, então, coar e beber.
“No calor da fervura, são liberados principalmente compostos aromáticos, como o 3-metilbutanal e a 2,3,5-trimetilpirazina. Sei que esses nomes são esquisitos, mas acredite: graças a essas substâncias é que percebemos o cheiro achocolatado”, diz a professora.
Já as horas na geladeira servem para os bioativos pouco a pouco irem passando para a água. “Em resumo, não dá para dispensar nenhuma das duas fases de preparo, se a gente quer aproveitar tudo o que esse chá pode oferecer. E a ordem não altera o produto: vai depender se você de como você quer tomá-lo”, diz ela. “Experimente até acrescentar um pau de canela e outras especiarias, se gostar.”
Pergunto se dá para preparar a infusão com a casca da fruta comprada no mercado ou na feira, por exemplo. “Até dá, mas você teria de lavar a casca muito bem e, depois, picá-la e secá-la no forno”, é a resposta.
Como nem sempre é fácil acertar no ponto da secagem — fundamental para concentrar os biativos, pelo que me disse a professora Ivana —, talvez a melhor pedida seja comprar a casca de cacau já pronta para você fazer o seu chá em casa. Ela já é encontrada com relativa facilidade em lojas de produtos naturais e até produtores de chocolate artesanal estão lançando o chá, que pode virar tendência na sua chaleira de 2024 em diante.
Fonte: uol