Narrativa criada no Vale do Silício apresenta as “proteínas de laboratório” como um fato consumado, reforça lógica em prol da carne e desvia o foco dos reais problemas do sistema alimentar
Manchetes entusiasmadas estamparam portais de notícias e sites especializados em agronegócio e finanças nos últimos dias de setembro: era o início das obras para a construção do primeiro centro de pesquisa sobre carne cultivada no Brasil, em Florianópolis.
O JBS Biotech Innovation Center custará cerca de US$ 60 milhões e tem previsão de ser inaugurado no final de 2024. O anúncio aconteceu cerca de um ano após a maior corporação mundial das carnes (de animais) adquirir o controle acionário da espanhola Biotech, uma startup de biotecnologia que vem liderando as pesquisas sobre proteína cultivada na Europa.
“Para quem cresceu vendo pela janela os boizinhos pastando, em Herval D’Oeste, é quase uma coisa de outro mundo pensar em proteína cultivada”, concluiu o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello, à época do anúncio.
De fato, é preciso uma boa dose de abstração para crer que, em um futuro próximo, um filé mignon virá de grandes biorreatores de aço inoxidável em um ambiente fabril e asséptico, em vez do dorso traseiro de um boi criado em um sistema convencional de criação. Mas é disso que se trata.
Entretanto, o boi pastando debaixo da janela de Jorginho não é uma imagem realista do modelo predominante de criação de animais, hoje baseado em pastagens enormes e raças adaptadas para se alimentar de grãos que não têm capacidade natural de digerir, em lugar de capim. A pecuária é apontada como a grande vilã das mudanças climáticas, seja pelos altos índices de emissão do gás metano, seja pelo desmatamento de florestas para dar lugar a pastos e à soja que alimentará o gado.
Com um colapso climático batendo à porta, problemas de saúde associados ao consumo exagerado de produtos cárneos e questões morais relacionadas ao bem-estar e ao abate desses animais, a ideia de produzir comida em laboratório de forma a não depender mais do solo e da natureza para a alimentação humana pode ganhar contornos de sensatez. A narrativa das carnes cultivadas oferece solução para todos esses problemas.
Em vez de pensarmos em uma transição estrutural nos sistemas alimentares, o que se propõe é uma espécie de transição proteica, desviando, assim, da necessidade de repensarmos o modo predatório como a agropecuária tem lidado com os recursos naturais e criando um novo filão para a indústria.
O que é carne cultivada?
O processo de produção de carne cultivada começa com a extração de uma linhagem específica de células de um animal de verdade. Essas células são alimentadas com proteínas, açúcares e gordura, crescem e se reproduzem em um biorreator. Algumas semanas depois, passam para uma espécie de molde para adquirir formato e textura semelhantes aos músculos e gorduras, e em seguida vão receber aditivos e outros ingredientes para conferir cor, sabor e aroma.
É uma das apostas entre as chamadas proteínas alternativas, que vão desde os produtos plant-based até experiências com fermentação de precisão e uso de insetos na alimentação humana e animal. Uma corrida que vem mobilizando mundo afora atores alheios ao sistema agropecuário, como startups, empresas de biotecnologia, big techs e fundos de investimentos, e aportes privados milionários. Inclusive dos maiores frigoríficos do mundo, o que pode parecer contraditório em um primeiro momento e, de fato, é, não fosse a ideia de que este vai ser um mercado “e” – e não “ou”, para ficar no jargão corporativo.
O foco é nos flexitarianos, ou seja, quem deseja reduzir o consumo de produtos de origem animal “de verdade” em busca de maior saudabilidade sem que seja necessário mudar drasticamente os hábitos. Na esteira dessa tendência, poderíamos ter, por exemplo, carne cultivada de galinha enriquecida com ômega 3.
Em 2021, a brasileira BRF aportou US$ 2,5 milhões em uma rodada de investimentos promovida pela Aleph Farms, uma empresa israelense de “agricultura celular” sediada na cidade de Rehovot e com escritórios nos Estados Unidos e na Europa. JBS e BRF prometem obter um produto comercial a curto prazo, a partir de 2024, mesmo sem que haja previsão de que o tema seja incluído na agenda regulatória por aqui.
Mais dúvidas que certezas
A despeito dos investimentos milionários no setor, há mais dúvidas que certezas sobre a viabilidade comercial das carnes de laboratório. E muitas incógnitas sobre o real impacto ambiental de uma produção cultivada em larga escala. Há quem defenda que, tal como outras inovações tecnológicas, baratear custos é apenas questão de tempo. E de investimentos, inclusive públicos. Como era de se imaginar, essa logo virou uma demanda do setor.
Singapura foi o primeiro país do mundo a autorizar e regulamentar a produção e a venda de carne cultivada. Em dezembro de 2020, a foodtech americana Eat Just obteve autorização para comercializar uma espécie de isca de frango da marca Good Meat. As autoridades regulatórias do país asiático conhecido pelo forte investimento em tecnologia e inovação consideraram que não há riscos para a saúde humana decorrentes do processo de produção.
Foi criado um grupo de trabalho formado por especialistas em diferentes áreas para garantir a segurança e a revisão periódica dos processos de produção. É uma das apostas para alcançar a meta de produzir ao menos um terço das necessidades alimentares de Singapura, que atualmente importa cerca de 90% dos alimentos que consome.
Por ora, só é possível provar o frango Good Meat marcando uma reserva no Huber’s Bistrô, resultado de uma parceria entre a Eat Just e o Huber`s, uma rede de açougues especializada em carnes de alta qualidade. O menu oferece um sanduíche ou prato de massa com tiras de frango cultivado por US$ 18 cada.
Em junho de 2023, a Eat Just e a Upside Food —também uma foodtech do Vale do Silício— conseguiram o aval das autoridades regulatórias dos Estados Unidos para produção e comercialização de carne de frango. A regulamentação e a fiscalização foram divididas entre o Departamento de Agricultura e a Food and Drug Administration, o equivalente à nossa Anvisa.
Por enquanto, só é possível provar marcando uma reserva em um dos exclusivíssimos restaurantes que servem a iguaria. Um deles é o estrelado China Chilcano, em Washington. Na versão do chef José Andrés, o frango cultivado é servido em uma espécie de espetinho marinado com molho típico peruano. Ter a imagem de um chef de sucesso também faz parte da estratégia para conferir credibilidade às carnes cultivadas e atrair mais alguns milhões ou talvez bilhões de dólares.
A narrativa construída por essas empresas e pelos investidores do setor é forte o suficiente para captar investimentos mesmo em meio a muitas incertezas.
A lógica é a do Vale do Silício em que você tem um punhado de empresas que patenteia um conjunto de inovações e as apresenta como utilidade ou necessidade para depois se beneficiarem dos frutos disso. No caso das carnes celulares, é difícil saber se vai dar certo Ricardo Abramovay, professor da USP
“E as bigtechs têm uma questão envolvida: são modalidades de inovação e concentração de investimentos típicas do século 21 que mostram a capacidade de obter recursos para investir em um setor independentemente dos resultados reais”, observa Abramovay, que é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP. .
Primeira empresa a obter o aval em Singapura e depois nos Estados Unidos, a trajetória da Eat Just repete a fórmula das startups do Vale do Silício. Nasceu nos fundos de uma garagem, teve investimento próprio de um jovem egresso das melhores universidades americanas e tornou-se um unicórnio, atingindo em apenas cinco anos seu primeiro bilhão de dólares com a produção de ovo e maionese vegetal. Josh Tetrick, seu fundador, tornou-se conhecido pela capacidade de atrair investimentos.
Frango fake?
Uma reportagem publicada na revista americana Wired afirma que a Upside Foods criou uma narrativa enganosa sobre a sua real capacidade técnica de produzir filé de frango cultivado.
Ex e atuais funcionários revelaram à publicação especializada em Ciência e Tecnologia que os cortes não são feitos nos biorreatores, mas sim produzidos de forma quase manual, em garrafas de plástico.
As folhas cultivadas nesses recipientes são combinadas para formar um pedaço inteiro de frango, em um processo lento e custoso.
Os biorreatores mostrados nas visitas às instalações da empresa não são capazes de fabricar de forma segura as folhas de tecido necessárias para criar um filé, segundo essas fontes. “Um dia as pessoas vão descobrir que nenhuma dessas coisas funciona”, diz um funcionário mencionado na reportagem.
A capacidade de produzir cortes inteiros —e não apenas hambúrgueres, almôndegas e nuggets, mais fáceis de se modelar— aparentemente conferiu alguma vantagem à empresa em meio ao universo de foodtechs e startups que estão nesta corrida.
Segundo a Wired, a startup arrecadou mais de US$ 600 milhões em financiamento desde 2016, “atraindo mais de um quinto de todo o capital levantado por empresas de carne cultivada até o final de 2022.”
O mito do déficit de proteínas
Garantir segurança alimentar, conter as mudanças climáticas causadas pela agropecuária e oferecer alívio moral em relação ao sofrimento animal são as promessas da indústria de carne cultivada. Há um esforço em construir consenso em torno da ideia de que a humanidade resolverá as distorções do sistema alimentar produzindo em laboratório seu próprio alimento.
Um pilar fundamental para a construção dessa estratégia narrativa é a ideia de que o mundo viverá um grande déficit proteico nos próximos anos com o crescimento populacional, o aumento da renda per capita e das pessoas vivendo em áreas urbanizadas.
“O pano de fundo é como manter o consumo de proteína animal em uma trajetória de expansão, que é o que a gente tem visto nos últimos anos. Tem várias coisas que não estão muito claras em relação a essa trajetória. Mas em nenhum momento se questiona a necessidade de rever o nível de consumo de proteína animal”, explica Paulo Niederle, professor dos programas de pós-graduação em Sociologia e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Há uma lógica que transfere para a inovação tecnológica a promessa de uma alternativa para crise que a gente já vive e deve se agravar nos próximos anos ou décadas.”
A projeção global para o consumo de carnes nos próximos oito anos é de crescimento, ainda que em ritmo menor e de forma desigual, estima um estudo feito pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pela FAO. A estimativa é que a demanda global aumente 2% até 2032, crescimento puxado por uma produção maior de carne de frango e pela recuperação do mercado de suínos. Este resultado se ampara, em grande medida, em mudanças no padrão alimentar de países de rendimento médio, devido ao aumento da população vivendo em áreas urbanas e o crescimento das redes de fast food.
O Brasil aparece atrás apenas de Estados Unidos e Argentina entre os maiores consumidores de carne do grupo de 35 países estudados por OCDE e FAO. Um patamar que supera com folga a média mundial e muito acima dos indicadores de consumo dos países que fazem parte da organização, que reúne as economias mais avançadas do mundo e também as emergentes.
A recomendação diária de proteína —de origem animal ou não— para a grande maioria das pessoas é em torno de 10% da ingestão calórica ou 0,8 g por peso corporal, segundo a Organização Mundial da Saúde. Em 2018, por exemplo, nós, brasileiros, consumimos, em média, 78,6 quilos de carnes bovina, de frango e de porco. Isso representa cerca de 215 gramas de proteínas provenientes de animais ao dia, muito acima do necessário e recomendável para uma alimentação saudável.
A ideia é que as pessoas mantenham o padrão de consumo de carne incluindo na dieta as proteínas alternativas, sejam elas plant-based, cultivadas ou obtidas por processos de fermentação de precisão. “Se você é mais apegado a suas tradições alimentares, talvez essa solução seja a sua praia”, disse Gus Guadagnini, à frente de um telão com a imagem projetada de um hambúrguer, durante palestra TedX, em 2019. “Não mais aquela comidinha chata, como aquela salada que você não quer comer no almoço. Estão realmente fazendo a comida que a gente quer comer.”
Guadagnini é diretor da unidade brasileira do The Good Food Institute (GFI), um think tank criado nos Estados Unidos para promover proteínas alternativas em três frentes: produtos plant-based, carne cultivada e fermentação de precisão. Como líder na produção de proteína animal e de grãos, o Brasil ocupa uma posição estratégica nesta discussão.
O GFI se define como uma instituição sem fins lucrativos mantida por filantropia e não divulga seu orçamento ou relatórios financeiros. Entre grandes doadores conhecidos estão Jeff Bezos, fundador da Amazon e considerado o segundo homem mais rico do mundo, além de Bill Gates, criador da Microsoft, e sua então esposa Melinda.
Também tem entre seus doadores Sam Bankman-Fried, investidor americano fundador da FTX, corretora de criptomoedas que faliu em apenas três anos de existência, deixando um calote de US$ 8 bilhões. Segundo apurou a Forbes, houve ao menos duas doações ao GFI feitas por Fried, que está sendo julgado por pelo menos seis acusações formais de fraudes diversas e lavagem de dinheiro.
“Ao lado de cientistas, empresas e decisores políticos, as equipes do GFI trabalham para tornar a carne cultivada e produtos plant-based deliciosos e acessíveis”, informa o site da matriz americana da organização.
Em junho deste ano, por exemplo, Bruce Friedrich, fundador global do GFI, foi recebido por Márcia Barbosa, secretária de Políticas e Programas Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Participou do encontro Andy Jarvis, um dos diretores do fundo Bezos Earth, criado em 2021 pelo bilionário americano com a promessa de investir US$ 10 bilhões em ações de proteção ao meio ambiente ao longo de dez anos.
Há muitas empresas no Brasil que também estão buscando valores econômicos para as companhias, sustentabilidade e segurança alimentar por meio de novos caminhos de produzir ovos, leite e carne. Não há país mais promissor que o Brasil
A frase acima é de Friedrich, em sua segunda visita ao Brasil. [1] Em outubro de 2019, ele foi um dos palestrantes principais na abertura da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, junto do então ministro e hoje senador pelo PL Marcos Pontes.
Além dos Estados Unidos e do Brasil, o GFI tem escritórios em Singapura, Índia, Europa e Israel. Apesar da promessa de atuar sem fins de lucro, a proposta é incidir sobre a comunidade científica com editais e patrocínios a pesquisas, influenciar políticas públicas e a mídia, e oferecer “engajamento corporativo” para as empresas interessadas em entrar na corrida pelas proteínas alternativas. O GFI atua globalmente na regulamentação das proteínas alternativas, inclusive incidindo nas discussões no âmbito do Codex Alimentarius, uma organização conjunta da FAO e da Organização Mundial de Comércio para criar normatizações para o mercado global de alimentos.
No Brasil, em pouco mais de seis anos de atuação o GFI tornou-se uma espécie de autoridade credenciada a falar sobre o tema, produzindo pesquisas de opinião, relatórios sobre o estado da técnica em termos regulatórios no mundo, frequentando gabinetes de autoridades e patrocinando pesquisadores em suas três frentes de atuação.
“O que organizações como o GFI e outras do tipo querem é capturar a narrativa socioambiental e colocá-la a serviço do fortalecimento das proteínas artificiais. E conseguem a adesão inclusive de setores progressistas”, critica o professor Ricardo Abramovay.
Na Itália, progressistas e conservadores divididos
Em julho deste ano, o Senado italiano aprovou um projeto de lei que proíbe a produção e a venda de carne cultivada e de outros alimentos sintéticos fabricados em laboratório. A proposta foi apresentada pelo governo da primeira-ministra Giorgia Meloni, do partido de extrema-direita Irmãos da Itália, com o argumento de proteger as tradições e os pecuaristas italianos. O texto ainda deve ser votado pelos deputados antes de virar lei.
Encampado pela extrema-direita italiana, o tema ganhou contornos ideológicos e acusações de negacionismo científico. Foi o suficiente para contaminar outros países de forte tradição pecuarista, como Uruguai, Paraguai e Brasil, que também apresentaram projetos de lei na mesma direção.
Presidente da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, Tião Medeiros (PP-PR) apresentou um projeto de lei proibindo a pesquisa privada, a produção, a reprodução, a importação, a exportação, o transporte e a comercialização de carne animal (bovina, suína, de aves e outras) cultivada em laboratório.
Ainda não há previsão de que o texto seja votado pelos deputados.
“O consumo de carne tem sido apontado como grande responsável pelas mudanças climáticas e questões de saúde pública, assim como os produtos ultraprocessados. Isso tem criado uma situação difícil de ser equalizada. De um lado você tem movimentos contrários às mudanças climáticas e a favor de uma alimentação saudável que são fortemente críticos ao consumo de carne criando uma dificuldade de diálogo com movimentos que defendem a adoção de uma pecuária de forma mais sustentável”, avalia Paulo Nierdele.
Uma prévia do imbróglio que a discussão deve representar para o campo progressista e os conservadores em tempos de polarização e discussões simplistas sobre temas complexos, como o sistema alimentar e o colapso climático.
Estamos falando em diversificação, e não em substituição. Ela (a carne cultivada) não vai acabar com o agro atual. Ao contrário, vai somar-se a ele como outras inovações na agricultura e na pecuária também já o fizeram. Proibir a pesquisa é interromper o caminho para o futuro. Negar o futuro é condenar-se a viver no passado, movimento que nossos parceiros comerciais já demonstraram que não farão GFI, em uma nota bastante reveladora das contradições que cercam essa discussão. [2]
O futuro irreversível que a produção de alimentos em laboratórios representa se baseia em projeções supostamente científicas, como a previsão de que o setor poderá responder por até 2,1 milhões de toneladas da produção anual de carne e se tornará uma indústria de US$ 25 bilhões até 2030.
Segundo este mesmo modelo, para atingir 50% do mercado de produtos cárneos até 2050 os governos precisarão investir cerca de US$ 10 bilhões ao ano em pesquisa e desenvolvimento, e incentivos ao setor privado. Os dados são de um relatório produzido pela empresa de consultoria americana McKinsey e não são os únicos a fazer projeções grandiloquentes para o futuro de um mercado ainda marcado por incertezas.
“Produzir proteínas artificiais faria algum sentido se a humanidade estivesse à beira de uma crise de proteínas, mas não é o que acontece. O mundo – e o Brasil menos ainda – não vive uma crise de proteínas. Portanto, essa pergunta tem que ser colocada. E é essa pergunta que os investidores evitam”, concluiu Ricardo Abramovay.
Fonte: uol