No dia 5 de abril, três pit bulls atacaram a escritora Roseana Murray enquanto ela caminhava perto de sua casa em Saquarema, no Rio de Janeiro. Roseana, que tem 73 anos, passou duas semanas no hospital, recuperando-se de ferimentos graves: ela perdeu uma orelha e precisou amputar o braço direito. Os cachorros pertenciam aos seus vizinhos, que agora estão sem a guarda dos animais e tornaram-se réus no processo que investiga o caso.
Apenas nove dias depois desse episódio, um pit bull matou o próprio dono na cidade de Mogi Mirim, em São Paulo. O homem passava por uma crise de epilepsia quando o cachorro mordeu seu pescoço. Um guarda municipal, vizinho da vítima, tentou salvá-la – e matou o animal com um tiro.
Ataques fatais como o de Mogi Mirim estão cada vez mais frequentes. Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2023, o Brasil registrou 51 mortes causadas por cães, 27% a mais que em 2022. É o maior número desde 1996, quando o órgão começou a fazer a contagem.
O Brasil não possui uma lei federal que exija que raças de grande porte consideradas perigosas, como pit bulls, rottweillers e dobbermanns, usem focinheira em locais públicos (há, porém, um projeto em tramitação na Câmara). Mas estados e municípios podem criar legislações específicas para controlar esses animais.
Em São Paulo, por exemplo, cachorros do tipo precisam andar com guia curta e enforcador. No caso de parques e centros comerciais, também precisam de focinheira. O Rio de Janeiro exige o mesmo, e vai além: no estado fluminense, cães tidos como ferozes precisam ser castrados com seis meses de idade e não podem, de forma alguma, frequentar praias.
Qual é melhor o caminho para diminuir os ataques que colocam humanos, outros animais e os próprios cães em perigo? Será que pit bulls e cia. são tão agressivos que, mesmo com todos os cuidados, sua criação deve ser desestimulada? Essas são questões complexas, que precisamos contextualizar com uma mãozinha da história e da genética.
Rinha de cão
Um dos passatempos preferidos dos ingleses medievais era colocar cachorros para lutar contra touros e ursos acorrentados. Foi nessa época que, de cruzamento em cruzamento, surgiu o ancestral dos buldogues (bull significa “touro” em inglês). Pequeno e musculoso, ele era ideal para as brigas.
No século 19, o Parlamento britânico proibiu a prática, alegando crueldade contra os animais acorrentados. Mas permitiu que os cães continuassem a se engalfinhar entre si. Para criar bons lutadores, os ingleses cruzaram buldogues com raças mais ágeis de terrier, um tipo de cachorro usado para caça. Nasciam aí os bull terriers, que dariam origem aos pit bulls – um termo guarda-chuva, que abrange várias raças.
O adestramento era cruel. Os cães de rinha precisavam ser agressivos (para atacar outros cães) e, ao mesmo tempo, subservientes (para não atacar seus donos).
Diante de um tratamento tão cruel, fica a pergunta: até que ponto os pit bulls têm fama de violentos porque seus donos, historicamente, os ensinaram a ser assim – e até que ponto eles já nascem brucutus por causa da seleção artificial de características agressivas, feita séculos atrás pelos criadores?
A resposta é um pouco de cada coisa. E isso não vale só para os pit bulls. Vale para todas as raças. Um grupo de cientistas (1) analisou por oito anos amostras de DNA de 2,1 mil cães, além de questionários respondidos por mais de 18 mil pais de pet.
De acordo com a pesquisa, as raças que surgiram nos últimos 200 anos, caso dos pit bulls, explicam apenas 9% do comportamento de um cachorro. É que os genes que determinam se um animal é mais amigável ou agressivo seriam, em grande parte, heranças de ancestrais mais antigos. As diferenças entre as linhagens atuais se concentrariam em traços físicos.
Outro estudo (2), feito por pesquisadores da USP, ressalta que o que determina a agressividade de um cão é a mistura de genética com fatores externos, como a experiência de vida, o ambiente e o adestramento do animal. Até dias quentes (que se tornarão mais frequentes com a crise climática) aumentam as chances de um ataque, segundo uma pesquisa de Harvard (3).
Apesar de tudo isso, não dá para ignorar que, nos últimos séculos, a humanidade produziu minitanques de guerra que abanam o rabo. A mordida de um pit bull pode chegar a uma pressão de 232 quilos por metro quadrado. Por mais dóceis que eles possam ser quando bem criados, medidas de segurança ainda são necessárias. E já estão em vigor em alguns países.
Em 1991, o Reino Unido baixou uma lei que bania pit bulls e outras três raças (incluindo o fila brasileiro). Existem, porém, 3,5 mil cachorros dessas raças vetadas que ainda vivem por lá. Todos têm registro no governo, possuem chips de rastreamento e são castrados.
Os tutores, por sua vez, passam por treinamentos, contratam um seguro e adaptam suas casas (com cercas mais altas, por exemplo). Só assim recebem um certificado de que estão aptos a cuidar do animal. Recentemente, os britânicos vetaram o American XL Bully, envolvido em ataques fatais, então os donos dessa raça também precisarão se adequar.
Banir raças por completo talvez não seja a melhor saída para o Brasil. “A proibição poderia estimular um comércio ilegal”, diz a advogada Maíra Vélez, presidente da comissão de Defesa dos Direitos dos Animais da OAB/sp. Isso tornaria ainda mais frágil o mercado de criadores de cães de raça, prática que carece de uma regulamentação mais sistemática.
Maíra defende a criação de uma base de dados de cães e tutores, que poderia começar em parceria com clínicas veterinárias. Alguns lugares, como o Rio Grande do Sul, já exigem o cadastro de cães considerados perigosos, mas não há um projeto em escala nacional.
O monitoramento canino não é apenas uma garantia de proteção para nós, mas para os cães também. Na Holanda, a alta rastreabilidade permite campanhas eficientes de castração e adoção. Resultado: quase não há cães abandonados. O país também mantém o registro de maus tratos a animais, usado para decidir se uma pessoa pode adotar um cãozinho.
Capacitar os tutores (e exigir algum tipo de certificado) também é importante. Cada raça, afinal, tem necessidades específicas, e deve ser adestrada com reforços positivos. “Esse treinamento também deveria acontecer com agentes públicos e até na escola, para que se aprenda a como lidar com esses animais, quais tipos de brincadeiras evitar e como reconhecer sinais de ansiedade nos bichos”, diz Maíra.
Não tem segredo: a solução para os ataques está em um conjunto coeso de políticas públicas. É a saída para garantir a segurança e o bem-estar dos humanos – e dos nossos colegas de quatro patas também.
Fontes: artigos (1) “Ancestry-inclusive dog genomics challenges popular breed stereotypes“; (2) “Relationships among morphological, environmental, social factors and aggressive profiles in Brazilian pet dogs“; (3) “The risk of being bitten by a dog is higher on hot, sunny, and smoggy days“.
Fonte: abril