Considerada uma das cidades mais bonitas do – e do mundo – foi a capital imperial do país entre 794 e 1868. Desse passado majestoso, restaram incontáveis templos budistas e santuários xintoístas (são mais de 2 mil), palácios, residências tradicionais de madeira (as chamadas machiya), casas de chá e bairros de gueixas.
Também estão na cidade alguns dos resilientes comércios familiares japoneses – chamados shinise, ou loja antiga, eles atravessam gerações e assistem a crises, guerras e transformações com as portas sempre abertas. Segundo o Research Institute of Centennial Management, sediado em , o Japão tem mais de 33 mil estabelecimentos fundados há mais de um século, ou 40% do total mundial (o mesmo estudo contabiliza ainda 3 100 negócios bicentenários, 140 abertos há mais de 500 anos e 19 existentes desde o primeiro milênio).
A seleção a seguir considera lugares que podem render uma experiência de viagem pra lá de interessante e, ainda, um charmoso omiyage, as onipresentes e caprichadas lembrancinhas japonesas.
Ichiwa (desde 1000) e Kazariya (1656)
Uma rua estreita e seis séculos de existência separam essas duas lojas de aburi mochi, um doce de arroz glutinoso espetado em um palito e grelhado para então receber uma calda à base de missô. Acompanhado de chá verde, esse é o único produto vendido nos dois estabelecimentos, bem na saída do santuário xintoísta Imamiya-jinja, ao norte de Kyoto.
O bonito santuário, aliás, foi erguido no ano 1001 para proteger a cidade de uma… pandemia. Na época, a Ichiwa alimentava os peregrinos que rogavam pelo fim da peste e sobreviveu a ela (e a muitas outras crises e desastres naturais), sendo administrada pela mesma família, os Hasegawa. A proposta da Kazariya é bem parecida, mas a vizinha mais nova não é mais administrada pelo mesmo clã que a fundou. As duas lojas estão instaladas em machiyas, os tradicionais sobrados de madeira com piso de tatame, portas deslizantes e um jardim agradável nos fundos.
Tentei visitá-las em meados de dezembro, mas ambas haviam fechado para se preparar para o Ano Novo, quando o consumo do mochi, uma das tradições para atrair sorte, aumenta em todo o país. Quando voltei, em 2 de janeiro, havia fila nas duas casas – esperamos cerca de meia hora na rua e outros 30 minutos sentados no tatame da Kazariya, onde os doces são moldados manualmente e grelhados em um único fogareiro. Adocicado, o mochi tem textura pastosa, um gostinho leve de grelha e sabor caramelado, graças a calda de missô. Como boa parte dos doces tradicionais japoneses, combina bem com chá verde (uma porção com dez espetos mais a bebida custa 500 ienes, cerca de 4 dólares). Desde o início do passeio – que incluiu passar no santuário para um prece de Ano Novo –, eu e meu marido éramos os únicos ocidentais. Mas, aparentemente, todos ali peregrinavam pela mesma causa: o fim de mais uma pandemia, 1020 anos depois.
Veja a localização aqui. As duas lojas funcionam das 10h às 17h (os dois restaurantes fecham às quartas-feiras).
Tsuen Chaya (desde 1160)
Ver essa foto no Instagram
Trata-se da mais antiga loja de chá do Japão. A poucos passos da ponte de Uji, cidade famosa pelo chá de altíssima qualidade, a Tsuen Chaya permanece do mesmo endereço desde sua fundação (o prédio atual é de 1673) e é comandada pela mesma família há 24 gerações. Anexa a ela e com vista para o rio, há uma casa de chá que serve, além das bebidas, sobremesas à base de chá e outros doces japoneses – dessa vez, minha pedida foi o dango, de arroz glutinoso, e matchá, o espumoso chá verde em pó. Entre as variedades estão ainda sencha, bancha, gyokuro e hojicha, todos extraídos da planta de chá verde, a Cammelia sinensis.
Uma das melhores escapadas a partir de Kyoto, Uji tem ruas onde pipocam lojas charmosas com produção própria, muitas delas centenárias também, além de casas que vendem outros produtos à base de chá-verde, como ramen, guioza e até cerveja. Outro atrativo local, o templo budista Byōdō-in, de 998, é Patrimônio Mundial da Unesco e merece uma visita. Se achar sua silhueta familiar, dê uma olhada na carteira – a fachada portentosa estampa a moeda de 10 ienes.
Aritsugu (desde 1560)
Pouco mais de cinquenta anos depois da chegada dos portugueses ao Brasil, o negócio abriu as portas em Kyoto, que na época ainda era a capital do Japão. Originalmente, o fundador Fujiwara Aritsugu produzia espadas, mas tempos de paz levariam a família a diversificar o negócio e se tornar uma das mais conceituadas fabricantes de facas e utensílios de cozinha do país.
Hoje, além de brilhar na cozinha do palácio imperial (a marca faz parte do seleto grupo que fornece para a família real japonesa), as lâminas Aritsugu estão entre as preferidas dos chefs de cozinha locais. O ponto atual, no Nishiki, o mercado mais famoso da cidade, vive movimentado – ali, cozinheiros profissionais se misturam a amadores que querem levar uma bela lembrança para casa, produzida pela 19ª geração da mesma família. Uma faca do tipo santoku, inventada no Japão e com uso bastante versátil, custa em torno de 17 000 ienes (ou 125 dólares) – o preço inclui a gravação do nome do dono da faca e manutenção vitalícia (ou enquanto o negócio continuar existindo).
Veja a localização aqui. A loja funciona diariamente das 10h às 17h.
Kungyokudo (desde 1594)
A fachada austera, com uma estrutura de pedra que lembra uma torre, fica em frente ao imponente templo Nishi Hongan-ji, um dos 17 patrimônios da Unesco de Kyoto, e a 5 minutos a pé da minha casa. Há mais de 400 anos, os incensos e óleos essenciais da Kungyokudo perfumam cerimônias religiosas e lares sofisticados em todo o Japão – a marca se intitula a mais antiga fabricante de incensos em funcionamento do país.
Ver essa foto no Instagram
Sândalo, lótus, flor de cerejeira, yuzu (uma fruta cítrica) e chá de Uji perfumam a silenciosa loja de dois andares e também servem de base para velas, cremes e sabonetes. Na Kungyokudo, até a água ganha cheiro – um dos meus incensos favoritos, o Otowa no Taki, tenta traduzir o frescor da cascata Otowa, que desemboca na fonte do visitadíssimo templo Kiyomizudera.
Ver essa foto no Instagram
Ippodo Tea (desde 1717)
A marca de chá-verde figura entre as mais famosas do país, com lojas em Tóquio e Nova York, além de quiosques em várias cidades japonesas, e exporta para outros países desde o fim do século 19. A matriz “trezentona” fica pertinho do Palácio Imperial, na Teramachi, uma das ruas mais charmosas de Kyoto. As vitrines e prateleiras expõem ânforas antigas para armazenar chá e produtos em embalagens bem cool e desejáveis – a oferta inclui itens sazonais, como o shincha, de folhas jovens colhidas no início do verão, e o good fortune tea, edição limitada de fim de ano de genmaicha, com adição de arroz marrom tostado.
Ver essa foto no Instagram
Ao lado fica um salão de chá, que serve a bebida acompanhada de doces japoneses. A propósito, o cultivo de chá verde no Japão começou em Kyoto, quando o monge zen Eisai trouxe sementes de Cammelia sinensis da China para cultivar no templo Kosan-ji, no norte da antiga capital.
Fonte: viagemeturismo