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Tecnologia

Stevie Wonder gravou ‘Superstition’ no TONTO, o sintetizador de 6 metros

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O músico britânico Malcom Cecil tem 84 anos, cabelo branco felpudo e sobrancelhas grisalhas que parecem se emendar com suas costeletas. Ele nasceu em 1937 e tinha uma aptidão tão aguda para CDF que, com dez anos de idade, já sabia fazer transmissões de rádio amadoras com equipamento caseiro.

Na juventude, ele seguiu uma peculiar carreira dupla como engenheiro eletricista na Real Força Aérea e baixista em diversas bandas de jazz e blues, incluindo um projeto chamado Blues Incorporated, que tinha feats por figurões como Mick Jagger e Jimmy Page.

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o nova-iorquino Robert Margouleff, hoje com 84 anos, frequentava a rodinha de amigos boêmios do artista Andy Warhol e o lendário estúdio em que eles trabalhavam, batizado simplesmente de Factory (“fábrica”, em português).

Margouleff foi um pioneiro da música eletrônica e era amigo de Robert Moog, um inventor com doutorado pelo MIT que lançou no varejo americano o primeiro sintetizador produzido em série, em 1964.

Era uma engenhoca gigantesca para os padrões dos teclados atuais, que depois ganhou uma versão portátil o Minimoog, possivelmente o sintetizador mais influente da história, popularizado na mão de monstros sagrados como Herbie Hancock, Chick Corea, Stevie Wonder e Rick Wakeman.

Em 1968, Margouleff e Cecil se conheceram em Nova York. Foi o começo de uma amizade alimentada pelo amor por engenhocas. Eles começaram a comprar muitos, muitos módulos de sintetizador — e a conectá-los entre si para expandir as possibilidades sônicas.

Um sintetizador do tipo subtrativo, como eram o Moog e o Minimoog originais, funciona grosso modo da seguinte forma. O primeiro passo é o chamado oscilador, que produz uma onda sonora simples com algumas formas possíveis: quadrada (square), triangular (triangle) e serrilhada (sawtooth).

Essas ondas soam de maneiras bem diferentes das ondas senoidais (sine), que têm o formato que você imagina instintivamente quando você pensa em uma onda. Veja o gráfico abaixo, e ouça amostras de cada onda neste vídeo.

Formas de onda senoidal , quadrada , triangular e dente de serra
(Wikimedia Commons/Reprodução)

Uma vez escolhida a onda que você usará de base, é hora de modificá-la para suas necessidades. Funciona como uma escultura: você começa com um bloco de mármore (como uma onda quadrada, para facilitar a analogia) e vai arredondando suas bordas até talhar um timbre adequado à sua composição.

Conforme Margouleff e Cecil conectavam sintetizadores uns nos outros, eles multiplicavam o número de osciladores disponíveis, bem como as oportunidades de modificar as ondas em estado puro com diversos filtros e parâmetros.

O resultado foi uma máquina redonda de 6 m de diâmetro, com oito painéis principais e uma série de outras engenhocas ao redor, conhecida pela sigla Tonto: The Original New Timbral Orchestra, ou “a nova e original orquestra de timbres” em português.

Com essa engenhoca, a dupla gravou dois álbuns inovadores de música eletrônica sob o nome Tonto’s Expanding Head Band (“a banda da cabeça de Tonto em expansão” em tradução literal, nome que contém um trocadilho peculiar, já que headband também significa “bandana”. Ah, os nerds.)

O mais interessante na história do Tonto, porém, é que vários músicos dos anos 1970 tiveram oportunidades de usá-lo em álbuns icônicos.

Um deles foi Stevie Wonder que, na época, havia abandonado o pop radiofônico do começo de sua carreira para explorar uma espécie de soul progressivo, permeado de colagens sonoras e arranjos complexos.

Stevie era uma anomalia: em apenas três dias de residência no Tonto, ao longo de experimentos entusiasmados com Margouleff e Cecil, ele compôs 17 músicas, várias das quais formariam o álbum Music of My Mind (1972), aclamado universalmente como uma obra-prima.

De acordo com o próprio Stevie, sua maior dificuldade enquanto produtor de seus próprios discos era imaginar um arranjo inteiro em sua cabeça, encomendá-lo a um grupo de músicos e acabar ouvindo um resultado completamente diferente do esperado ao final do processo.

Com o Tonto, ele pôde tirar suas ideias do papel sozinho, do começo ao fim. Essa possibilidade inebriante ocupou Stevie por várias madrugadas no estúdio Electric Lady, construído por Jimi Hendrix em Nova York, e casa do Tonto por alguns anos.

O ápice de suas realizações com esse método de trabalho solitário e febril saiu no álbum seguinte, Talking Book: a faixa “Superstition”.

Stevie já tinha o chassis básico dessa música pronto em sua cabeça antes de começar a gravá-la; a composição nasceu durante um improviso com os Rolling Stones em 1972.

A intenção, originalmente, era que o guitarrista Jeff Beck gravasse a faixa em troca de um solo de guitarra para Stevie mas Berry Gordin, o manda-chuva da gravadora Motown, percebeu que a canção um hit e convenceu Stevie a lançar antes sua própria versão no Talking Book.

A gravação foi um show à parte. Primeiro, Stevie tocou a bateria. Não havia outros músicos para acompanhá-lo: ele se limitou a imaginar que os outros instrumentos soavam enquanto gravava a batida básica de Superstition. 

Deu certo. O próximo passo foi gravar o baixo, que não era propriamente um baixo, e sim um dos teclados atrelados aos sintetizadores Moog do Tonto programado para imitar o som do instrumento, mas com um tempero eletrônico.

Então, Stevie foi para o seu clavinete. Um clavinete é um instrumento de teclas peculiar, parente distante do piano. No piano, cada tecla aciona um martelo que bate em uma corda. No clavinete, as teclas acionam palhetas que pinçam as cordas.

Instrumentos de tecla com cordas pinçadas são uma invenção antiquíssima: cravos, espinetas, clavicórdios e outras engenhocas da época de Bach, anteriores à invenção do piano como o conhecemos, já funcionavam assim.

Mas a sacada do clavinete é que ele é uma espécie de clavicórdio elétrico: usava captadores semelhantes aos de uma guitarra para enviar o som das cordas a um amplificador e gerar um timbre estalado que marcou o soul, o funk e o jazz da época.

Conta-se que Stevie gravou oito partes de clavinete, todas seguindo padrões rítmicos e melódicos únicos, entrelaçadas como os fios que compõe a trama de um tecido.

Usando os filtros de frequência do Tonto, foi possível adicionar e remover harmônicos (nome que os físicos dão às ondas sonoras mais curtinhas que soam em consonância com a frequência fundamental de uma nota).

O resultado foi uma textura caótica de teclados pululantes e fanhosos em que cada nota salta aos ouvidos e desaparece rapidamente, como uma bolha emergindo na superfície da água. A única adição posterior foram as linhas de sopro, gravadas separadamente.

Em 1973, o espaço no Electric Lady ficou disputado. Tonto, seus donos e Stevie se mudaram para o estúdio Record Plant em Los Angeles, onde Stevie mandou construir uma sala nova para acomodar Tonto, seu arsenal de teclados eletromecânicos e sua biblioteca de fitas com pedaços de músicas novas.

Ele nunca perdia a inspiração, e trabalhava em surtos: tinha ideias difíceis de executar em horários exóticos, e monopolizava a vida no estúdio de tal forma que sua equipe andava por aí usando camisetas com a inscrição “finja que está tudo bem”.

O fim da parceria não fez juz ao surto de criatividade mágico daqueles anos. Margouleff e Cecil tiveram atritos com Stevie porque ele acabou não creditando adequadamente os esforços e a amizade do trio no encarte dos discos, em discursos de agradecimento e — o mais importante — no pagamento de royalties. 

Hoje, Tonto mora no Centro Nacional de Música em Calgary, no Canadá, onde foi restaurado peça por peça e pode ser alugado por músicos interessados em usá-lo em suas gravações. Trata-se de uma engenhoca mau-humorada, que desafina quando está quente e exige reparos constantes.

Com a tecnologia atual, seus timbres analógicos podem ser replicados digitalmente com grande fidelidade por um simples notebook.

Mas… só não é a mesma coisa: “Tonto é imprevisível, ele tem algo de humano. Uma presença”, explicou à revista Rolling Stone em 2018 o músico Tim Hill, que pôde usá-lo em uma apresentação ao vivo.

Tonto permanece vivo, mau-humorado e frequentemente desafinado: em suas entranhas, a as raízes da música eletrônica sobrevivem de modo paradoxalmente orgânico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fonte: abril

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Fábio Neves

Jornalista DRT 0003133/MT - O universo de cada um, se resume no tamanho do seu saber. Vamos ser a mudança que, queremos ver no Mundo