Um dos romances mais melancólicos que li em minha vida. Essa é a definição mais sucinta e certeira que posso dar de A estrada, do premiado, e um dos maiores romancistas de nosso tempo, Cormac McCarthy. As obras de Cormac, que morreu há não muito tempo, no último 13 de junho, refletem uma mistura de mistério genuíno — tal como vemos em homens como Edgar Allan Poe — e um estilo único de prosa contínua e diálogos curtos. Em , ele nos leva para um mundo pós-apocalíptico, na presença de um pai e de um filho vagantes rumo à costa, seguindo sempre o mesmo rumo, como pássaros que voam instintivamente sem se questionarem muito o motivo, vão apenas porque devem fazê-lo. Mas, antes de falar do conteúdo em si, preciso falar do estilo ímpar do autor e porque ele deve ser urgentemente lido.
A narrativa corre numa composição na qual as vozes dos personagens se confundem com a do narrador; aspas ou travessões, convencionalmente usados para denotar as falas dos atores, são jogados às favas num pot-pourri de descrições longas e imersivas, seguido de diálogos curtos com sentenças de profunda psicologia agregada. Vírgulas também são quase inexistentes, as frases são antes quebradas pela lógica da própria leitura, fazendo com que as linhas do escrito dependam ativamente da participação direta do leitor e de seu engajamento mental na trama. Soberbo à sintaxe tradicional, sem parecer pedante ou um revolucionário linguístico pueril, seu estilo soa quase grosseiro e se casa perfeitamente com a eterna descrição das selvagerias e feiuras que compõem a natureza humana e a realidade como tal. O estilo único do autor, mergulhado em um ceticismo mordaz nascido de um pessimismo genuíno, traz para suas obras uma espécie de estranhamento natural que não deve intimidar o leitor iniciante de seus romances.
Não se engane, porém, pensando que esse estilo seja um defeito glamourizado por críticos pedantes; na verdade, sua escrita tem um forte poder explanativo, e, não raramente, pergunto-me como ele conseguiu explicar de forma tão clara e profunda cenários e sentimentos tão escorregadios. Questiono-me ainda se isso ocorre por seu estilo ou por seu intelecto artístico — confesso que tendo a acreditar que são por ambos. Ele realmente ostentava um estilo inconfundível, tal como Willian Faulkner e G. K. Chesterton, um leitor atento poderia reconhecer um escrito de Cormac mesmo que o seu nome fosse ocultado.
Em A estrada, por fim, o cenário de mundo decaído é sentido logo nas primeiras páginas com uma força real que se diferencia muito dos textos correlatos. Muitos escreveram sobre cenários apocalípticos e pós-apocalípticos, e, daqueles que li, nenhum foi tão sombrio e vívido quanto Cormac. Em livros com essa temática, o foco recai, geralmente, sobre a vivência dos personagens ante às dificuldades do cenário mórbido ou excessivamente sobre as descrições do ambiente cataclísmico. Em A estrada, contudo, o ambiente de devastação é uma espécie de duplicação do estado de espírito dos vagantes. O pai, sob uma esperança fugidia e cada vez mais rarefeita de encontrar ajuda na costa, concentra num horizonte decaído e em um mapa esfarelante, raspas de esperança de algo que está sempre além da próxima colina. O filho, passivo ante a uma realidade opaca e desanimadora demais, vê as cinzas constantes geradas por explosões dantescas de um tempo em que ele ainda era um feto, como uma regra sem por que de ser questionada; andar por andar e viver por viver, para ele, não passa de um movimento impensado, mecânico, temperado, vez ou outra, por um medo instintivo da morte e da solidão típicas de uma criança tardia.
A cada avanço no livro, somos interpelados por situações antagônicas: uma que clama como saída derradeira a desistência e a entrega total à morte — aquela última deusa consoladora dos covardes, a chofer dos santos —, seguido de um novo capítulo no qual uma fagulha de esperança e conforto surge como possibilidade de vida e, quem sabe, salvação. Não serei maldoso com vocês, não darei spoilers mais profundos, mas uma das principais críticas à obra diz respeito ao seu final, que para muitos é previsível demais, raso demais; eu, todavia, acho que está ali a genialidade maior de Comarc, uma espécie de releitura pós-apocalíptica do capítulo 34 de Deuteronômio que poucos notaram.
Ambiente e personagens, por fim, são uma coisa só nesse romance, o próprio paradoxo da humanidade claudicante, ou seja, o autor mistura desânimo e confiança, desalento e expectativa, costurando genialmente num só bloco literário as facetas de uma humanidade vagante e chagada, ainda que única e digna. Os desafios, recompensas, lutas e desesperos narrados de maneira ímpar pelo norte-americano fazem com que cada página voe rápido demais, e por isso, não à toa, já vou para minha terceira leitura desse livro essencial para a literatura mundial. O famoso crítico Harold Bloom classificou Cormac McCarthy como um dos maiores da literatura americana do século XXI; eu, que nada sou perto de Bloom, bem sei, coloco-o ousadamente entre um dos maiores da literatura mundial do século XXI.
Leitura indispensável para uma busca sólida de maturidade literária e humana, aqui não está apenas uma aventura qualquer num bom livro de suspense, trata-se antes de uma obra de arte com simbolismo profundo; uma espécie de visita à fenda escura do que a humanidade pode ser em tempos sombrios, ou, quem sabe, estados de ser sombrios. Talvez o livro mais banal de Cormac ante das suas principais obras, O passageiro, Onde os velhos não têm vez — o meu preferido —, e Todos os belos cavalos, mas também, de longe, a mais significativa na arte de dizer pouco e explicar muito sobre o espírito humano. Costumo julgar bons livros por meio do espólio de reflexões que eles aguçam em seus leitores.
Pois bem, já faz três anos que li A estrada pela primeira vez e, ainda hoje, constantemente pego-me pensando em suas paisagens melancólicas e falas perscrutadoras.
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Fonte: revistaoeste