Em 13 de novembro de 2022, quando as eleições já tinham sido encerradas no Brasil, o então deputado estadual do Paraná Homero Marchese (hoje filiado no Novo) teve seus perfis no Twitter/X, Facebook e Instagram retirados do ar por decisão de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e então presidente do (TSE).
Só depois de entrar com ações na Justiça (o ex-deputado não foi intimado da decisão de Moraes) para reaver as contas é que Marchese descobriu de onde proveio a ordem e o motivo da censura: a postagem de um anúncio sobre uma palestra de Moraes e outros ministros do STF dariam em Nova York, em 16 de novembro.
Como o passar dos dias e o acesso aos documentos, o então deputado estadual descobriu que sua publicação — que nada tinha a ver com eleição — foi parar no Inquérito das Fake News, em razão de um relatório feito pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE.
O responsável era Eduardo Tagliaferro, que fazia relatórios a pedido de dois juízes auxiliares de Moraes: Airton Vieira, do STF, e Marco Antonio Vargas, do TSE. Mensagens obtidas pela Folha de S.Paulo revelam que Moraes dava ordens sobre como produzir os relatórios e indicava nominalmente quem deveria ser investigado: jornalistas e influenciadores conservadores e políticos aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. Nem mesmo escapou da caneta de Moraes, que mandou os auxiliares fazerem um relatório sobre “revistas golpistas”.
Como a Folha informou que obteve 6 gigabytes de mensagens, Marchese acredita que seu caso também possa ter se originado a partir de ordem irregular de Moraes, que “que acumula papel vítima, acusador e juiz ao mesmo tempo”.
“Ainda hoje não sei como um banner que publiquei na internet acabou parando no TSE”, declarou Marchese a . “Acreditava que a Assessoria Especial de Combate à Desinformação funcionava como uma espécie de ‘agência de espionagem’ da internet brasileira e talvez tivesse tido acesso à publicação em algum grupo de WhatsApp, o que seria grave por si só, mas hoje me pergunto se o banner não foi enviado pelo próprio STF ao TSE, para de lá voltar em questão de horas como a prova necessária para me censurar.”
Para o ex-deputado, seu caso e de centenas de pessoas acusadas de golpe de Estado pelo 8 de janeiro ilustram o “sadismo oficial” que vigora no Brasil. “Esse roteiro dá conta do verdadeiro massacre sofrido por milhares de brasileiros nos últimos anos, que não tinham a mais vaga chance de sequer serem ouvidos antes de receberem uma sanção”, afirmou. “É o sadismo oficial, a sociopatia institucionalizada. Tudo o que Moraes e o STF acusavam os outros de fazer era, na verdade, feito por eles mesmos: ‘Abin’ paralela, gabinete do ódio e abolição do Estado de Direito.”
Moraes decretou a censura das redes sociais do ex-deputado de ofício, ou seja, sem que houvesse um pedido de parte prejudicada ou do Ministério Público. A Procuradoria-Geral da República (PGR), que deve se manifestar em todos os processos em trâmites no STF, foi posteriormente comunicada. A então vice-procuradora Lindôra Araújo, em um recurso contra a ordem de Moraes, listou uma série de ilegalidades e inconstitucionalidades na investigação contra o ex-parlamentar.
“No caso concreto, verifica-se que a estrutura e órgãos da Justiça Eleitoral, a princípio, estão atuando em situações alheias ao combate à desinformação no processo eleitoral, passando a monitorar redes sociais de pessoas que convocaram manifestações contra a viagem de ministros do STF aos EUA, procedendo também a análises de aplicativos de mensagens (Telegram) e culminando com a extração de conteúdo das publicações, realização de diligências para identificação de autoria e produção de relatórios que são remetidos a inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal”, detalhou Lindôra.
Ela concluiu que as investigações da AEED para subsidiar inquéritos em curso no STF “afrontam o modelo constitucional acusatório do processo penal”.
No sistema brasileiro do Direito Penal e processual penal, o Judiciário não pode exercer função investigativa, reservada às chamadas polícias judiciárias (Polícia Civil e Polícia Federal) e ao Ministério Público.
Por isso, disse ela, essas situações “configuram violação a todo o sistema de persecução penal, com a possível usurpação de funções precípuas dos órgãos policiais e ministeriais em matéria criminal, na medida em que o Poder Judiciário passa a exercer a função investigativa”.
A então vice-PGR explicou que “não se pode admitir que o órgão do Poder Judiciário eleitoral, a pretexto de combate à desinformação, materialize diligências investigativas com o escopo de coletar elementos quanto à autoria e materialidade delitiva criminal a serem compartilhados com o STF”.
Lindôra assinalou que no caso específico de Marquese “nem sequer a relação direta com os fatos sob a competência da Justiça eleitoral, sendo que o próprio relatório produzido pela assessoria do TSE delimita que o objeto da análise é restrito a três publicações que se referem a manifestações programadas para o dia 14 de dezembro na cidade de Nova Iorque, cujo foco são os ministros do Supremo Tribunal Federal”, sustentou a procuradora.
A então vice-PGR listou diversas decisões do próprio STF que vedam a atividade investigativa do Judiciário, considerando essa conduta como afronta ao devido processo legal.
No recurso, ela pediu a nulidade da decretação do bloqueio das redes sociais de Marchese. “A decretação de ofício de medida cautelar atípica de bloqueio de canais, perfis, contas em diversas redes sociais, sem prévio requerimento do Ministério Público ou de representação da autoridade policial, violou o sistema acusatório e os princípios correlatos, como os da imparcialidade, da inércia e da isonomia assegurados pela ordem constitucional”, ressaltou.
Ela afirmou, também, que com a decretação das medidas de ofício, não houve averiguação eficaz da denúncia, o que “é essencial, tanto para proteger direitos fundamentais do cidadão, que passa a ocupar a condição de investigado, como para assegurar a efetividade da investigação”.
Lindôra Araújo também afirma que não se pode combater fake news, um fenômeno complexo, com canetadas dadas por Moraes num inquérito repleto de ilegalidades, como o Inquérito das Fake News, já chamado de “inquérito do fim do mundo” e de “buraco negro”.
“As fake news estão inseridas em um campo de verdadeiros paradoxos consubstanciados em conflitos sociais complexos”, afirmou a então vice-PGR. “Dessa forma, não é plausível que inúmeras decisões monocráticas, proferidas no seio de um inquérito específico, com o bloqueio de diversas contas em redes sociais de ofício, sem a participação do Ministério Público e da Polícia, sejam capazes de combater efetivamente as fake news”.
Além da nulidade do inquérito, Lindôra também apontou a incompetência do STF para julgar Marchese, que era deputado estadual. Nesse caso, o foro para crimes de competência estadual seria o Tribunal de Justiça do Paraná e para crimes federais, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Moraes não analisou e não rebateu qualquer dos argumentos de Lindôra. Em 24 de dezembro de 2022, alegando ter atendido a um pedido do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em favor de deputados federais com redes sociais bloqueadas, revogou a censura sobre os perfis do então deputado estadual.
Em 1º de março de 2023, reconheceu a incompetência do STF para o caso, que foi remetido à Justiça Federal do Paraná — nessa época, Marchese já não era mais deputado estadual (ele não se reelegeu em 2022). Na Justiça Federal, a acusação de incitação ao crime e tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito contra Marquese foi arquivada.
Fonte: revistaoeste