Revista ISTOÉ – O agro pode ser pop, tech ou a riqueza do Brasil. Mas uma boa parte dele é, acima de tudo, golpista. O inquérito que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) demonstra que a participação de políticos e empresários do agronegócio na tentativa de golpe foi mais forte do que se sabia. Empresários e integrantes da bancada ruralista não só apoiaram e financiaram os acampamentos como também, articulados com o militarismo de quarteladas, pressionaram o ex-presidente Jair Bolsonaro a editar o decreto que “respaldaria” a anulação da eleição para mantê-lo na Presidência.
Por trás dos ruralistas está a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), a mais forte do Congresso, e seu órgão formulador e de assessoramento técnico, oInstituto Pensar Agro (IPA), dirigido pelo ex-deputado Nilson Leitão (MT), conhecido bolsonarista. O IPA representa os interesses legítimos do agronegócio, mas também abriga a direita ruralista que embarcou na tentativa de ruptura.
A mudança radical da pauta da bancada ruralista em 2023 não foi uma mera estratégia política. Frustrado o golpe, a trincheira passou a ser o Congresso, onde uma azeitada e inédita ofensiva contra o STF e o governo Lula foi posta em prática.
Personagem central nas articulações antidemocráticas, com participação decisiva de coordenação em cinco dos seis núcleos de ação golpista identificados pela Polícia Federal, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, captou recursos de empresários do agro para bancar as atividades ilegais das Forças Especiais do Exército (FE), os chamados Kids Pretos.
O alvo principal era o ministro Alexandre de Moraes, que seria o primeiro a ser preso caso Bolsonaro tivesse assinado o decreto do golpe.
O presidente Lula, o ministro do STF Gilmar Mendes e o presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, também estavam no radar dos arapongas. Os documentos em poder do STF demonstram que os Kids, usando equipamentos avançados para os padrões institucionais, acompanhavam o dia a dia da cúpula do Judiciário e do Legislativo.
O relatório da Polícia Federal não deixa dúvidas de que Cid foi o grande operador dos preparativos para o golpe. Só Bolsonaro estava acima dele, o que explica porque até agora a Justiça só aceitou a delação dele.
A polícia reúne mais provas para indiciar o ex-presidente, embora nos depoimentos que prestou, Cid tenha sustentado que cumpria ordens do então presidente e comandante em chefe das Forças Armadas.
Ele inclusive pressionou o ex-comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, para que este aceitasse o decreto que anularia a eleição de Lula. É também Cid quem coloca o agro no centro da articulação golpista: “General! Os líderes, né? O empresários do agro que estão financiando (…) tiveram os bens bloqueados e, foram chamados a depor”, disse Cid em resposta a questionamentos que Freire Gomes teria feito sobre quais os civis apoiavam a elaboração do decreto golpista.
Ele se referia a 45 empresários do agro, a maioria do Mato Gosso, que tiveram bens bloqueados em novembro por decisão do ministro Alexandre de Moraes depois que se descobriu que bancavam os atos antidemocráticos em Brasília em dezembro.
O número de ruralistas que colocou dinheiro, gente e equipamentos a favor do golpe gira atualmente em cerca de 80, a maioria ligada às entidades ruralistas.
Em novembro eram cerca de 43 mil acampados em frente aos quartéis e 804 bloqueios em rododovias pedindo o golpe.
O diálogo de Cid com Freire Gomes foi travado em 16 de novembro de 2022, quando a movimentação dos Kids Pretos se intensificara, um dia depois das comemorações do 15 de Novembro, data que deveria marcar o avanço de ações que seriam deflagradas em dezembro.
Naquele período Cid levantara R$ 100 mil para repassar ao major da reserva do Exército Rafael Martins de Oliveira, conhecido por Joe, para arregimentar e bancar, nesse dia, as despesas dos Kids Pretos, alguns dos quais seriam deslocados do Rio de Janeiro.
Kids pretos
Cid e Joe foram Kids Pretos e controlavam as FE, baseadas em Goiânia, e “visitadas” várias vezes por Bolsonaro em 2022, inclusive depois da derrota eleitoral.
No dia 9 de dezembro, Cid voltou a ligar para Freire Gomes “para colocá-lo a par” das mudanças que Bolsonaro fizera no texto do decreto e novamente cita o papel “vivandeiro” do agro.
“O presidente tem recebido várias pressõe para tomar uma medida mais pesada onde ele vai, obviamente, utilizando as forças, né? (…) a pressão que ele recebe é de todo mundo. É cara do agro. São alguns deputados, né? Então a pressão que ele tem recebido é muito grande. E hoje (…) ele enxugou o decreto, né? Aqueles considerandos que o senhor viu, enxugou (…). Fez um decreto muito mais (…) resumido, né? E o que ele comentou de falar com o general Theophilo (Estevam Cals Theóphilo, então chefe do Comando de Operações Terrestres, ao qual são vinculadas as Forças Especiais)? (…) ele quer conversar, bater papo, né?”.
Na verdade Bolsonaro já tinha o apoio de Theóphilo para o golpe. O general era um dos quatro dos 16 integrantes do Alto-Comando que apoiavam explicitamente o golpe. Mas Theóphilo condicionou a mobilização da tropa à assinatura do decreto por Bolsonaro.
A participação de empresários do agro na tentativa de golpe é um capítulo à parte, ainda cheio de lacunas, que Mauro Cid terá de preencher num novo depoimento. O que se sabe até agora é que eles dariam aos golpistas a fachada civil-empresarial para, já no início de janeiro, Bolsonaro pressionar o Congresso a convalidar o decreto de anulação da eleição.
Se não contar tudo o que sabe, Cid pode ter sua delação anulada e voltar para a cadeia. As referências ao agro e a reunião de 5 de julho em que Bolsonaro dá início ao roteiro do golpe, documentada em vídeo, foram descobertas pela PF num dos seus computadores. Nos seus depoimentos, Cid omitiu a gravação.
A parte visível da presença do agro nos preparativos do golpe foram os bloqueios nas estradas, a organização e transporte de manifestantes que acamparam em frente aos quartéis e os atos antidemocráticos patrocinados em Brasília desde 2021, com as primeiras investidas contra o STF.
Falta esclarecer ainda quem é quem no no grupo empresarial e sua relação com o IPA, que assessora os parlamentares nas demandas institucionais entre o setor e ógãos públicos, mas também, é claro, exerce forte influência sobre o posicionamento político.
Quando a agenda de Bolsonaro tratava exclusivamente das ações golpistas, surge a figura do senador Luiz Carlos Heinze (PP), um dos nomes mais fortes do bolsonarismo dentro do Congresso, expoente da direita ruralista, ex-presidente e um dos criadores da FPA e do IPA.
No dia 12 de novembro, quando Mauro Cid se esforçava para levantar fundo, o senador participou de uma videoconferência com Bolsonaro. O general Braga Netto, já sem funções no governo por ter se tornado candidato a vice, estava escalado para participar da conferência, mas avisou Cid que, como sabia do que seria tratado, desistiria, pedindo que o ajudante de ordens garantisse que a reunião se realizasse.
O tema central da conversa teria sido o financiamento e a posição de políticos e empresários do agro de apoio ao golpe.
Bolsonaro só tratava disso no período. Cid guardou no celular o link da videoconferência e depois o encaminhou para o major da reserva Angelo Denicoli, então assessor do governo paulista, encarregado de disseminar notícias falsas.
Procurado por ISTOÉ, Heize não quis falar. O delegado Fábio Alvarez Shor explicitaria em seu relatório o que estaria por trás das tratativas: “(…) demonstraram a anuência de militares com manifestações antidemocráticas em frente às instalações castrenses e o financiamento das manifestações antidemocráticas por parte de empresários”. Depois, ele esclarece que no dia 16 de novembro de 2022 Mauro Cid enviou um áudio, possivelmente para o general Freire Gomes, em que cita “o financiamento das manifestações em Brasília, por empresários do Agro”.
O presidente da FPA, deputado Pedro Lupion (PP-PR), é um “filhote” da UDR, criada por seu pai, o ex-deputado Bernardo Lupion, Heinze e o atual governador de Goiás, Ronaldo Caiado, transformada mais tarde na FPA.
No discurso de posse na presidência da FPA no ano passado, Lupion não deixa dúvidas quanto à ideologia dos ruralistas: “Eu nasci no agro. Não à toa, meu pai, na década de 80, fundou a União Democrática Ruralista e fez com que ele entrasse na política e fundasse, anos mais tarde, a FPA”.
À ISTOÉ, Lupion negou que as entidades tenham se envolvido com a tentativa de golpe e, para ilutrar o caráter plural da entidade, afirmou que até o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), assinou ficha de filiação. “O julgamento de cada parlamentar ou empresário rural é pessoal, dele. Como presidente da bancada não posso dizer o que podem fazer. Institucionalmente e oficialmente nossa bancada não teve participação alguma (no golpe).”
Através da FPA, o IPA orienta a ofensiva contra o STF e o governo com o objetivo de criar o delirante marco temporal para limitar demarcação de terras indígenas, pretensão inconstitucional já derrubada pelo STF.
O IPA é sustentado com recursos de mais de 50 grandes entidades do agronegócio que bancam as campanhas da bancada ruralista. A entidade presta todo tipo de suporte à bancada, mas também cobra fidelidade às pautas mais radicais do setor.
A PF não investiga CNPJ, mas colocou na mira o CPF de empresários e parlamentares que, gravitando em torno da entidade, financiaram e participaram das articulações para o golpe, lado a lado com o militarismo que apostou na ruptura do sistema democrático.
Três deles, os coronéis Bernardo Romão Correa Neto e Marcelo Costa Câmara e o major Rafael Martins de Oliveira, todos ex-Kids Pretos agindo sob a coordenação de Mauro Cid, estão presos, suspeitos de agir em conluio com empresários do agro para viabilizar o golpe. No topo da hierarquia está Bolsonaro.
Fonte: odocumento