Nos últimos anos, o ambiente acadêmico tem sido palco de debates cada vez mais polarizados. Um exemplo emblemático desse movimento é o texto acadêmico que busca defender e iniciar discussões levantadas no polêmico texto acadêmico “Educando com o c: traveco-terrorismo e descolonialidade de gênero na arte”, cuja apresentação viralizou nesta semana depois da .
O trabalho acadêmico procura legitimar, sob o manto do discurso científico, perspectivas dissidentes sobre o corpo e o prazer como potenciais pedagógicos e artísticos. Além disso, o texto pode até mesmo gerar interpretações com repercussões criminais.
Chama a atenção, primeiramente, a pobreza organizacional do texto. De acordo com as regras da ABNT, depois de capa e resumo e antes de conclusão e referências, é necessário que constem uma introdução ao tema, contextualizando o problema de pesquisa e expondo a justificativa, os objetivos (geral e específicos) e a metodologia aplicada, para depois fazer um desenvolvimento, dividido em seções e subseções numeradas, seguindo a NBR 6024, abordando a fundamentação teórica, revisando a literatura sobre o tema, executando a metodologia e apresentando e discutindo os resultados e análises.
O que se vê, no entanto, é uma organização textual em apenas dois pontos, sem nenhum respeito às regras técnicas. Não custa lembrar que, ao contrário deste texto crítico, publicado em um veículo jornalístico e, portanto, sem a necessidade de respeito aos padrões científicos, o artigo sob análise foi publicado em uma revista acadêmica com ISSN, a Periódicus, vinculada ao , da Universidade Federal da Bahia (UFBA), de edição número 19.
No ponto um, “Educando com o C: introdução apresentada na UFBA”, onde, com linguagem coloquial e não científica, como “boa tarde, gente”, a autora expõe sua história pessoal, com pouca ou nenhuma relação com o tema; cita, também fora dos padrões da ABNT, alguns autores de referência; e pede que o leitor faça exercícios, como a yoga pranayama e o canto.
O exercício de canto é feito a partir de músicas da própria autora, como “Goza”, “Tieta” e “Ai, meu c”, com todas as letras sendo reproduzidas na sua integralidade no trabalho acadêmico, com destaque para os refrões: “Só no c, só no c, só no c / Goza em cima do meu c” (“Goza”); “Bota no c, bota no c, Bota no c da Tieta / Eta, eta, eta, eta” (“Tieta”); e “Eu sou puta puta puta / De marré marré marré / Eu sou puta puta puta / De marré desci, desci, desci” (“Ai, meu c”).
Posteriormente, ainda no ponto 1, a autora começa a construir sua “pedagogia do c” a partir da pedagogia da desobediência de Tiffany Odara, cuja intenção é “confrontar toda marginalização dos corpos dissidentes nos espaços educacionais”, e cita nominalmente essa confrontação nos ensinos fundamental e médio, deixando claro que a aplicação da pedagogia do c deve ter por objeto crianças e adolescentes dos 6 aos 17 anos.
+
Ainda nesse diapasão, a autora agora se declara uma transfeminista, visão que, aplicada à pedagogia, defende que “as próprias crianças e adolescentes que devem definir suas identidades sexuais e gênero a partir do conceito de autodeterminação” e “possam performar seus gêneros sem sanções morais e patologizantes”.
Aqui, podemos começar a tentar entender o que propõe a pedagogia do c. Seria pensar na educação de um jeito diferente, usando o prazer como parte do aprendizado, em especial as partes íntimas, mas usando o corpo infantil e adolescente como um todo para ensinar, mesmo que esses educandos não tenham maturidade para lidar com isso.
Não há aqui nenhuma acusação formal contra a autora em questão, mas é evidente que, ao se deparar com a afirmação de que deve ser aplicada uma pedagogia de prazer em áreas íntimas de crianças e adolescentes, interpretações das mais diversas podem daí eclodir, inclusive a mais grave de todas, que é a interpretação da sugestão de um método pedófilo de ensino.
O uso de certos termos, como “prazer”, em um contexto educacional, pode causar estranhamento ou preocupações legítimas, especialmente se não houver uma delimitação clara do que se entende por “prazer” no aprendizado e sua relação com o desenvolvimento infantil, em especial quando a pedagogia em questão se autodeclara como “do c” e explicitamente advoga que seja ensinado que o c é uma fonte de prazer (p. 186).
Para evitar mal-entendidos, é importante que os textos acadêmicos sobre temas sensíveis, como o corpo e o prazer, façam distinções explícitas sobre o que está sendo discutido, especialmente ao tratar de temas relacionados à infância. A autora falha de maneira retumbante no delineamento dessas distinções.
Antes do ponto dois, “Considerações Finais”, onde a autora apenas debate a etimologia da palavra “cu” e reafirma que quer mudar a metodologia pedagógica atual, que, segundo ela, é de “dor”, por uma de “prazer”, ainda faz algumas citações sobre a pedagogia de Paulo Freire no ponto anterior.
Freire defendia que o diálogo e a participação ativa dos estudantes no processo de aprendizagem são essenciais para romper com as estruturas de opressão. No entanto, a pedagogia do c parece substituir uma opressão por outra, ao impor visões que podem estar desalinhadas com os valores culturais e pedagógicos de muitas pessoas. A suposta liberdade proposta se converte em uma nova forma de imposição, em que o aluno é “depositado” com uma nova ideologia, sem que haja um verdadeiro diálogo ou consideração pela pluralidade de experiências e pensamentos, correndo o risco de se tornar uma forma de “educação bancária” invertida, conforme o próprio conceito crítico de Paulo Freire.
Embora a proposta da autora seja oferecer uma alternativa à educação tradicional, que ela vê como opressora e alienante, ao impor uma nova visão, ainda que dissidente, ela pode estar repetindo o mesmo erro que critica: transformar os alunos em receptores passivos de uma ideologia específica. Nesse caso, o “pacote de conhecimento” não seria o tradicional, mas sim uma série de ideias contraculturais e subversivas, que, assim como na “educação bancária” alvo da visão freireana, são transmitidas de maneira unilateral, sem espaço para questionamentos ou a contribuição ativa do educando, que sequer pode ter maturidade para entender o que está sendo ali imposto, e essa é a interpretação mais amigável desse procedimento educacional.
Em conclusão, a “pedagogia do c” se revela anticientífica tanto na forma quanto no conteúdo. Ao basear sua proposta em conceitos vagos e subjetivos como o prazer e em um discurso carregado de ideologia, ela carece de fundamentação empírica sólida e se distancia dos princípios basilares da educação rigorosa e estruturada. Na melhor das interpretações, essa abordagem pode ser vista como um método educacional igualmente opressor (caso assim se entenda o método tradicional), impondo aos educandos uma visão contracultural que, ao invés de promover o diálogo e a emancipação, reproduz uma nova forma de autoritarismo ideológico. Na pior das hipóteses, abre margem para interpretações perigosas que tangenciam a normalização de comportamentos impróprios, podendo, assim, ser entendida como uma forma de abuso infantil disfarçada de inovação pedagógica.
*Bernardo Santoro é cientista político e advogado, mestre e doutorando em Direito, conselheiro do Instituto Liberal e sócio do escritório SMBM Advogados (smbmlaw.com.br).
Fonte: revistaoeste