Em homenagem à didática, vamos imaginar a seguinte situação hipotética e fantasiosa: o Brasil chama-se Venezuela, e Alexandre de Moraes é .
As autoridades locais, em especial o Supremo bolivariano, afirmam que a Venezuela é uma democracia e, Maduro, presidente eleito. Todavia, elas se negam a mostrar, ao seu povo e ao mundo, as atas que confirmariam a veracidade das duas afirmações.
No nosso exercício imaginário, as atas venezuelanas aparecem no lugar do Direito, Maduro faz as vezes de Moraes, juiz supremo constitucionalmente constituído, e a palavra democracia significa a mesma coisa, isto é, a legalidade funcional das suas Instituições.
Se as autoridades brasileira, em especial as do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República, afirmam que o Brasil é uma democracia e, Moraes, um ministro funcional, quer dizer, uma autoridade que exerce o seu cargo institucionalmente, por qual razão agem da mesma que os seus pares venezuelanos? Por que não mostram os mecanismos legais que atestam, como as atas do país vizinho atestariam a lisura das eleições de lá, o funcionamento democrático do Estado brasileiro e a institucionalidade das condutas de Moraes?
Contrariando a passividade agressiva ocultista que anima o discurso recitado em camoniano juridiquês incompreensível à população brasileira, convém proceder do mesmo modo que a oposição venezuelana ao mostrar as atas disponíveis: divulgamos o Direito brasileiro em bom português, que, tal como as atas da ditadura vizinha, contrariam as conclusões dos defensores de Moraes.
A primeira “ata” brasileira é aquela da zona da . No seu artigo 5º, constam, dentre tantas outras, as seguintes garantias:
- (a) a igualdade de todos perante a lei (caput);
- (b) só a lei, legislada pelo Congresso Nacional, pode criar obrigações e apenas a lei pode impor proibições (inciso II);
- (c) a livre manifestação do pensamento (inciso IV);
- (d) somente a lei, a mesma advinda do Poder Legislativo, pode estabelecer punições (inciso XXXIX);
- (e) toda discriminação deve ser punida (inciso XLI); e
- (f) a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, que considera crime contra a humanidade a perseguição de pessoas em razão de ideologia política (inciso LXXIX).
Por fim, no § 2º do seu artigo 220, toda e qualquer censura de natureza política e ideológica é vedada.
Tiago Pavinatto
A segunda “ata” está na zona das normas eleitorais reunidas na Lei nº 9.504/1997, que confere um direito de polícia sui generis aos tribunais eleitorais brasileiros. Seu artigo 41, no § 1º, concede aos juízes eleitorais um poder de polícia apenas e tão somente para atuar contra “propaganda eleitoral”. Esse artigo, importante destacar, veda qualquer censura prévia aos programas de rádio, televisão e internet.
Regimentos, resoluções, regulamentos e portarias não são lei. Servem apenas para orientar e estruturar o funcionamento oficial para a aplicação da lei. Não podem criar crimes, punições, obrigações nem proibições ao povo.
Em decorrência do estrito poder de polícia dado aos juízes eleitorais para atuar frente a propagandas eleitorais ilícitas, surge, no , a famigerada Assessoria Especial de Combate à Desinformação. As “atas” da institucionalidade desse órgão estão nas seguintes Portarias do TSE: 510, de 4 de agosto de 2021, portaria que torna permanente o Programa de Combate à Desinformação adotado por uma portaria anterior, a 663, de 30 de agosto de 2019, que descreve as seis funções da tal assessoria criada para atender o programa. Todas estão no artigo 3º desta portaria: (i) integração interna das áreas e estruturas da Justiça Eleitoral para responder às desinformações com contrainformações; (ii) alfabetização midiática e capacitação populares; (iii) checagem de informações; (iv) cooperação para aperfeiçoamento legislativo nessa matéria; (v) aperfeiçoamento dos recursos tecnológicos; e (vi) instituição de medidas concretas para desestimular a prática de desinformação.
Tiago Pavinatto
Olhando essas “atas” brasileiras, fica claro que essa assessoria não tem poder de polícia fora da propaganda eleitoral. É incontroverso que ela não pode combater desinformação por outro meio que não seja a contrainformação. É evidente que ela não pode criar punições nem atuar sob demanda pessoal e discriminatória, principalmente fora do período eleitoral. Por fim, ela jamais pode atuar fora da jurisdição eleitoral nem sob demanda ou, o que é pior, encomenda do Supremo.
Logo, Moraes não agiu institucionalmente. Mentem o procurador-geral da República e os seus colegas ministros que afirmam que a sua atuação foi institucional. Mentem quando dizem respeitar o Direito do Estado Brasileiro. Mentem quando dizem que a democracia está inabalada. Se dizem a verdade, porque não mostram as “atas” da institucionalidade publicadas non ordenamento jurídico nacional? Não mostram porque não podem. Não mostram porque, tal como Maduro e seu Tribunal Supremo, sabem que estão mentindo.
Somos, como é a Venezuela, mais que uma ditadura enrustida. Vivemos em uma ditadura travestida com a minissaia da democracia, que é incapaz de esconder a proeminência dos ovos.
Tiago Pavinatto é advogado e jornalista. É o apresentador do , programa que vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 14h às 16h, no canal da Revista
Fonte: revistaoeste