Sophia @princesinhamt
Política

Da ‘despiora’ a ‘Trump cai’: o embate entre ideologia e jornalismo

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Se buscarmos uma genealogia dos problemas políticos, morais e sociais no Ocidente atual, tenha a certeza: a relativização de nossa capacidade racional de se chegar à verdade, aos fatos, é a pior delas. Nesta semana, vimos isso na prática, depois de Donald Trump quase morrer baleado na cabeça durante um comício na Pensilvânia. Tal ocorrência não dependia de interpretações. Havia vídeos de inúmeros ângulos, fotógrafos profissionais e amadores expondo o ocorrido a cada frame, além de centenas de testemunhas; em poucos minutos, já havia várias imagens nas redes sociais do mundo inteiro, relatos diretos de pessoas in loco que davam conta de um atirador em cima do telhado de uma fábrica próxima já era reprisado várias vezes em dezenas de canais de televisão. Ainda nos primeiros vídeos, logo depois do ocorrido, a situação já era tão óbvia que as dúvidas somente giravam em torno do responsável pelo atentado, e como ele conseguiu atirar antes de ser localizado pelo Serviço Secreto. A dúvida se era ou não um atentado não existia entre os mentalmente sãos.

Lia-se, no entanto, as seguintes manchetes no mundo das mídias à esquerda, da CNN norte-americana: “Serviço Secreto retira Donald Trump do palco após ele cair em comício”; talvez, por ser essa a fonte principal dos jornalistas de O Globo, ou por ostentar a mesma cegueira ideológica dos jornalistas da emissora americana, lia-se no noticiário do jornal brasileiro “Donald Trump cai no palco durante comício na Pensilvânia com sangue no rosto”; o portal G1, por sua vez, afirmava “Comício de Donald Trump é interrompido após supostos sons de tiro”; voltemos para os EUA por um instante, o Washington Post dizia “Donald Trump retirado após estrondos no comício”. Inacreditável.

Um artigo da Giovana Frioli, no Estadão, logo se levantou para justificar tais manchetes, no mínimo, grotescamente defeituosas, dizendo que tais situações caíam num contexto de normalidade, pois as epígrafes davam conta de algo ocorrido há poucos minutos, sem confirmação oficial; ok, posso aceitar parcialmente tal resposta, pois a simples possibilidade de erro de percepção e a necessária prudência jornalística em busca de confirmações são sempre pré-requisitos de um bom jornal, mas vocês hão de concordar comigo que, naquele atentado, parece haver um elemento a mais, parece-me que a pura prudência jornalística ou erro inocente não explicam tudo, ainda mais vindo de tantos jornais de renome, brasileiros e internacionais.

Donald Trump não “caiu no palco” como diziam as manchetes da CNN e de O Globo, mesmo que tivéssemos assistido apenas uma vez àquelas imagens do atentado, veríamos que o ex-presidente não caiu mesmo após o tiro, mas sim abaixou-se após o Serviço Secreto invadir o palco; da mesma forma, não eram estrondos o que se ouvia no vídeo, eram estalidos de tiros mesmo, e ainda que se possa emular o som de um disparo, estrondo e sons de disparos são bem diversos. O que explica tudo isso? Seria a sanha ideológica de um jornalista que não queria acreditar que havia ocorrido um atentado ao conservador Trump? Será? Mas havia sangue no rosto de Trump, o Serviço Secreto quase imediatamente havia respondido aos tiros do terrorista doméstico, e, em poucos minutos após o ocorrido, a ABC já entrevistava um homem que tinha visto o atirador se posicionar com um rifle no telhado de uma fábrica para disparar. Como alienar tais informações que pulavam dos celulares, televisões e demais redes? Ainda que o jornalista fosse um militante dos mais fervorosos, tinha que haver algo mais que mera sanha politiqueira, pois a verdade se impunha de forma vigorosa, evidente demais para ser diferente do que todos viam.

E, vejam, sequer citarei os insanos que, passado o ocorrido, já argumentavam em favor de alguma conspiração/encenação para favorecer politicamente Trump na eleição presidencial que se aproxima. Loucos amam holofotes que exponham suas vergonhas, e aqui eu não darei isso a eles.

Acredito que na base de tudo isso está uma coisa chamada de “pós-modernismo” e “teoria crítica”, entre cujas inúmeras estacas de sustentação está a tese de que tudo, absolutamente tudo, deve ser criticado à exaustão, nenhuma certeza é definitiva, nada deve ser dito ou escrito com “v” de verdade. Há nessas teorias, sob uma empolação linguística digna de sanatórios, como os escritos de Derrida, Habermas a Judith Butler, uma ideia central de que a realidade é moldável. Uma crença comum que as unem é a de que o fato ou como os filósofos diziam até meados do século passado , a “coisa em si”, não existe, o que existe realmente é uma guerra de narrativas que moldam nossa percepção sobre os eventos e a história. A verdade, dessa maneira, passa a ser algo construído, e não definido, uma junção de partículas intuitivas, percepções sensoriais e narrativas intelectualizadas, não algo essencial, real. Existem dois ótimos livros para entendermos com profundida a gênese desses movimentos e suas completudes e diferenças, o primeiro é Explicando o Pós-modernismo: ceticismo e socialismo de Rousseau a Foucault, de Stephen R. C. Hicks, e o segundo A Imaginação Dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950, de Martin Jay.

Influenciados que somos pelas duas pernas dessas teorias progressistas universitárias, temos assim um recorte do imaginário neoesquerdista que se tornou mantra em nossas universidades e, posteriormente, em nossas instituições governamentais. Outro livro se faz importante aqui pare entender, agora, o leite derramado: Revolução cultural silenciosa: como a esquerda radical assumiu o controle de todas as instituições, de Christopher F. Rufo. Um dos mais sucintos e esclarecedores sobre esse tema, junto é claro ao já clássico Radicais nas universidades, de Roger Kimball.

Quando assumimos aquilo que Olavo de Carvalho denominava “imaginário crítico” baseado em alguma ideologia, raramente conseguimos transpor sem um esforço hercúleo tais princípios já pré-aceitos como indiscutíveis. Nossos acadêmicos estão formando profissionais em especial os de humanidades numa crença ideológica radical de relativismo. Uns com concessões e tolerâncias mais ou menos aceitáveis dentro do ambiente acadêmico, mas, em sua maioria, são agentes fiéis aos seus preceitos ideológicos, tornando a filosofia pós-modernista e suas aplicações nas ciências sociais uma espécie de vocação catequética. Não é preciso muito, após estudarmos e entendermos as constituições dessas teorias, fica extremamente fácil localizar tais crentes, seja por meio da característica linguagem empregada por eles, seja pelas imposições de suas conclusões a todos, ou pelo cancelamento político legado aos discordantes.

Por isso, não acredito que tais manchetes tenham sido meramente “algo comum” no meio jornalístico; quando o desafio é narrar fatos, a interpretação não me parece ser sequer a segunda das importâncias elencadas. Como é claro no empirismo mais elementar, é preciso respeitar, primeiro, a coisa em si, sua descrição fidedigna, e somente depois vem a análise e a crítica. Se, todavia, não acreditamos em verdade, em fatos, nem na possibilidade de narrarmos os eventos como eles aconteceram, sem intervenções interpretativas de quem narra, estamos então fadados a nadar a ermo em um mar de incertezas e aberturas infindáveis à imaginação. Num terreno assim, sem solo a se pisar, qualquer evento se torna algo obscuro, quase metafísico, onde a objetividade do observado dá lugar à subjetividade de quem analisa, não sendo mais o fato o centro, mas o transmissor/guru. O jornalista torna-se uma espécie de profeta, cuja missão é interpretar as mensagens enviadas para nós por meio dos eventos, e transpô-las sob uma linguagem determinada a fim de que, sob a sua benção sacerdotal, o povo sedento de explicação tenha algo a compreender do que foi visto ou ouvido lá no Sanctum sanctorum.

Achando indigno o trabalho de noticiar a realidade tal como ela é, talvez o jornalista tenta agora algo realmente impensável aos que têm a sanidade mental como princípio analítico, ser um maquiador de fatos. Do “despiora” ao “Trump cai”, existe aí uma agenda de narrativas construídas sobre uma filosofia de relativismo e abandono da racionalidade empírica, e tratar tudo isso como sendo “mero erro” ou coisas normais do jornalismo cotidiano não ajuda a explicar o fenômeno decadente visto em inúmeros jornais à esquerda no último dia 13. Por isso, por mais que a articulista do Estadão não aceite, o ativismo político, naturalmente gerado na alma do jornalista na universidade, o ajuda embaçar sua missão primeva de noticiamento dos fatos. As redações de muitos jornais hoje são meras extensões laboratoriais dessas teorias acadêmicas; a filosofia tornada princípio, que prega que a realidade pode ser moldada e modificada, conscientemente ou não, leva o jornalista a omitir e a florear fatos, quando não, a mentir sobre algo a fim de que a “coisa” caiba nem que seja à força naquilo que por ele é esperado.

É verdade que num mundo digital, onde as redes sociais possibilitam a crítica imediata do jornalismo militante, a verdade ainda se impõe apesar dos conglomerados e corporativismos, e, por isso mesmo, para proteger as corporações, cada vez mais parece ser urgente regulamentar tais redes sociais que não deixam que o fato se torne massinha de modelar na mão de jornalistas militantes. Pois bem, mas isso é papo para outra coluna. Por enquanto, basta-nos a profética e irônica pergunta que o comediante Groucho Marx fazia em seus shows, que parece ser a pergunta que grandes jornais esquerdistas nos faziam no último dia 13: “Afinal, você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos”?

Fonte: revistaoeste

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