Via @portalmigalhas | O Brasil tem hoje 1,3 milhão de advogados inscritos na OAB. Todos os causídicos, sem distinção, estão automaticamente habilitados para atuar na Justiça como um todo, até mesmo nos Tribunais Superiores.
O alto número de pessoas com a chamada capacidade postulatória reflete no grande número de causas na Justiça. Com efeito, estima-se que haja mais de 60 milhões de processos em andamento.
E, como bem sabem os leitores, por meio de uma teia de recursos é possível alcançar os tribunais estaduais ou regionais e as Cortes Superiores.
Muitos processos sendo julgados significa um grande número de sustentações orais. Com esse alto número, nasce um problema: julgadores se incomodam com sustentações despropositadas; advogados reclamam da falta de atenção por parte dos magistrados.
Seria, então, o momento de se debater a regulamentação das sustentações orais no Brasil?
Ou mesmo a aplicação de um filtro – tempo de atuação, uma habilitação especial ou outro requisito?
A fim de enriquecer o debate, Migalhas fez um levantamento de como isto se dá em outros países.
Embora a sustentação seja fundamental na atuação dos advogados, muitas vezes não há tempo para que os argumentos sejam devidamente considerados pelos magistrados. No sistema processual brasileiro, o debate entre partes e juízes durante a sustentação não é comum.
Em outros países, cujo sistema jurídico tem raízes diversas da romano-germânica, como Estados Unidos e Inglaterra, baseados na common law, a atuação dos advogados perante as Cortes ocorre de forma diferente.
Aliás, como se verá abaixo, mesmo em países de origem romano-germânica (civil law), como França e Alemanha, as regras a respeito da atuação nos tribunais são diversas.
Reino Unido
De acordo com o advogado e árbitro radicado na Inglaterra Roberto Castro de Figueiredo, no Reino Unido há um filtro para acesso às Cortes Superiores.
Lá os advogados têm duas qualificações básicas: solicitors e barristers. Apenas estes últimos podem sustentar oralmente nas Cortes, porque são treinados após a conclusão do curso de Direito, obtendo um certificado de prática.
Os solicitors, por sua vez, podem obter o direito de sustentar mediante qualificação adicional, chamada Higher Rights of Audicente (HRA).
Segundo o advogado, o Processo Civil inglês é bastante diferente do brasileiro; lá há mais oralidade. As sustentações podem ser longuíssimas, a depender da complexidade do caso, e têm grande relevância.
O juiz decide a partir da sustentação.
Estados Unidos
Segundo o advogado com atuação nos Estados Unido Paulo M. Calazans, no caso norte americano, os Estados possuem ampla autonomia político-jurídica e cedem ao ente Federal poucas competências, a depender do que é autorizado pela Constituição.
Assim, cada Estado tem legislação própria, até mesmo no que tange ao Judiciário e, consequentemente, a atuação dos advogados depende de Estado para Estado.
Os advogados ingressam na profissão pela “admission to the bar”, que equivale ao exame da Ordem brasileiro. Na maioria dos Estados, exige-se também o diploma Juris Doctor, cursado em três anos, a partir da formação como bacharel em Direito.
Tal admissão assegura ao advogado prerrogativas para atuar na jurisdição estadual até o Tribunal de maior alçada, podendo fazer sustentação oral – mas nem todos os Estados admitem esse tipo de sustentação.
Não há um licenciamento ou habilitação específicas para sustentações orais, um attorney, counsel ou lawyer admitido no Bar é automaticamente habilitado para sustentações perante a Corte. Até porque a oralidade na jurisdição norte-americana tem proporções maiores que no Brasil.
Já no sistema Federal, em linhas gerais, a atuação perante cada District, Regional e Federal Circuit – algo remotamente similar aos TRFs e STJ, exige habilitação perante cada um dos órgãos.
As regras para essa habilitação também variam e o licenciamento para atuar em um deles não acarreta automática admissão para atuar em outro.
Em geral, os advogados devem ser licenciados perante um Bar estadual, pagar um emolumento e prestar juramento.
Já a atuação perante a Suprema Corte requer habilitação específica, com experiência de 3 anos.
A Suprema Corte dos EUA publica um “manual” para orientar os advogados em suas sustentações orais. Uma delas é que os advogados não “recitem” seus memoriais, mas que aduzam argumentos lógicos de modo útil e esclarecedor.
Segundo Paulo M. Calazans:
“[…] o ‘manual’ explica que a sustentação oral não é sinônimo de releitura das peças processuais, mas uma chance de destacar pontos argumentativos que possam auxiliar na persuasão da Corte: ‘a preparação da sustentação oral é como fazer malas para um cruzeiro de navio; deve-se separar todas as roupas de que você pensa que irá precisar, mas deve-se retornar metade delas ao armário’.”
França
Segundo Maria Isabel Neves Garcia Dos Santos Nivault, sócia e diretora do escritório GVA em Paris, até 2012 unicamente advogados habilitados – chamados avoués – podiam representar o litigante nos tribunais de segunda instância – Cours d’Appel.
Hoje, no entanto, qualquer advogado habilitado na Ordem pode representar seu cliente e fazer sustentação oral nesses Tribunais.
Ela explica que o exame da Ordem na França é dificílimo e requer dois anos de preparação, durante os quais os candidatos realizam duas provas, estágio obrigatório e frequentam seis meses de aulas. Eles só têm três chances de aprovação no exame, sendo a terceira reprovação definitiva.
Já nas Cours de Cassation ou no Conseil d’Etat, apenas advogados especialmente habilitados podem representar o litigante.
A habilitação decorre de aprovação em outra prova. Ela é realizada por banca composta por juízes da Suprema Corte, outros avocats aux Conseils e professores universitários. Para prestá-la os candidatos devem ter passado por formação especial ou trabalhado alguns anos com avocats aux Conseils.
Uma vez habilitados, eles são nomeados pelo ministro da Justiça e prestam juramento.
Alemanha
Na Alemanha, qualquer advogado pode atuar na Corte em matéria penal e no Tribunal Constitucional. Porém, para a atuação em casos cíveis no Bundesgerichtshof (BGH), a Corte equivalente ao STJ, é feito um credenciamento de advogados.
Existe uma comissão composta por juízes do BGH (os quais não são denominados Ministros) e por advogados. Ela escolhe os advogados credenciados para atuar perante o BGH, seguindo os critérios de no mínimo 35 anos de idade e 5 anos de advocacia ininterruptos.
Após a escolha, são nomeados pelo ministério da Justiça e passam a atuar nas causas de direito privado no BGH.
A ideia é que a parte seja assessorada por advogados altamente especializados na Corte, o que garantiria paridade de armas na reta final do processo. É também uma forma de atender a um interesse social, pois em razão de filtros processuais, só chegam ao BGH os casos mais relevantes.
Os próprios advogados credenciados têm a função de filtrar os recursos que sobem à Corte e, por isso, eles não interpõem recursos em qualquer caso, mas apenas quando os rígidos pressupostos de admissibilidade forem preenchidos.
Segundo a advogada e professora Karina Nunes Fritz:
“[…] a sociedade tem interesse em que o recorrente tenha uma assessoria jurídica de qualidade e seja representado por um advogado com profundo conhecimento do processo revisional e da jurisprudência da Corte.”
No momento, existem apenas 38 advogados credenciados no BGH, dos quais, seis são mulheres. Em razão da contenção, esse sistema tem sido criticado na Alemanha nos últimos anos e há propostas para permitir que qualquer advogado atue no BGH.
Karina Fritz acrescenta que outros países também só admitem advogados credenciados nas Cortes Superiores.
“A Holanda introduziu a exigência em 2012. A Bélgica segue o modelo francês, bem como a Itália, só que os italianos deturparam o modelo, possuindo milhares de advogados credenciados.”
Brasil
No Brasil, como dito, em respeito ao princípio constitucional da ampla defesa e ao art. 937 do CPC, não há restrições. De modo que qualquer advogado, cujo recurso tenha chegado à Corte Superior, poderá arguir oralmente durante as sessões. E, muito embora o regimento interno de cada tribunal tutele detalhes da arguição, o fato é que não há vedação legal para que qualquer advogado fale nos tribunais.
E, ao contrário do que ocorre nos EUA, não há uma cartilha que ensine os causídicos a atuarem nas Cortes, e nem vedação para que leiam as razões, como repetidamente se faz.
Seria o caso de o Brasil, que possui muito mais advogados do que os países acima citados, criar algum filtro de atuação?