Via @revistaforum | A Meta, controladora de redes sociais como Facebook, Instagram e WhatsApp, pode estar afrontando diretamente a Constituição Federal de 1988 ao não implementar medidas robustas contra o discurso de ódio racial e religioso em suas plataformas. É o que afirma o advogado constitucionalista Hédio Silva Jr., mestre em Direito Processual Penal e doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordenador-executivo do Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (IDAFRO) e fundador do JusRacial, Hédio explicou em entrevista à Revista Fórum como essas práticas da Meta ferem normas constitucionais e tratados internacionais.
Constituição e tratados: bases jurídicas claras
Questionado sobre como as normas da Constituição dialogam com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, Hédio afirmou:
“Trata-se de obrigações jurídicas que independem de regulamentação por parte do Congresso Nacional porque derivam diretamente de tratado internacional em vigor. Aqui temos duas espécies de tratados com status hierárquico distinto. A Convenção Interamericana, com força normativa de regra constitucional, e os demais tratados aplicáveis, considerados pelo STF como norma supralegal, isto é, hierarquicamente inferior à Constituição, mas superior à lei federal.”
O jurista destacou ainda que, por se tratar de uma emenda constitucional referente a direitos fundamentais, as normas da Convenção Interamericana têm aplicação imediata:
“Essas normas têm aplicação imediata, eficácia plena e independem de regulamentação legislativa.”
Além disso, em artigo recente no JusBrasil, Hédio elencou quais artigos da Constituição a mudança nas políticas da Meta estariam afrontando:
1. Artigo 4º – Combate ao racismo
Estabelece o repúdio ao racismo como princípio fundamental do Brasil. Ao permitir conteúdos racistas, a Meta viola este princípio essencial à dignidade humana.
2. Artigo 5º – Direitos fundamentais
Garante igualdade, dignidade e liberdade para todos. A propagação de discursos de ódio na plataforma afronta diretamente esses direitos constitucionais.
3. Artigo 220 – Liberdade de expressão com limites
Embora assegure liberdade de expressão, a Constituição proíbe que ela colida com a dignidade humana. “Liberdade de expressão não é liberdade de agressão”, destacou Hédio.
4. Artigo 227 – Proteção a crianças e adolescentes
Determina a prioridade na proteção de jovens contra conteúdos prejudiciais. A inação da Meta expõe crianças e adolescentes a discursos de ódio, violando este dever constitucional.
A responsabilidade corporativa da Meta
Sobre as implicações jurídicas para a Meta em caso de não cumprimento das obrigações de prevenção e combate ao discurso de ódio no Brasil, Hédio explicou:
“O desafio passa sobretudo pelas organizações da sociedade civil, as quais podem manejar ações coletivas para assegurar a efetividade da Convenção conjugada com a lei da ação civil pública, extensivo ao Ministério Público e às Defensorias Públicas; mas envolve também um esforço dos indivíduos na proposição de ações individuais. Ademais, a Lei federal n. 1.802/1953 não foi revogada expressamente, sendo aconselhável lembrar que seu art. 11 pune a difusão de ódio racial, religioso ou de classe com pena de reclusão de 1 a 3 anos, eventualmente aplicável, portanto, aos dirigentes da Meta no Brasil.”
Questionado sobre a tentativa da Meta de argumentar que sua sede está localizada em outro país para evitar responsabilização, ele foi enfático:
“Do ponto de vista da jurisdição internacional ou da justiça civil, é indiferente se a matriz da Meta localiza-se nos EUA ou no Tibet. Na esfera criminal, a responsabilidade dos diretores e representantes deve ser considerada ainda à luz do instituto da extraterritorialidade, que admite circunstâncias nas quais determinados crimes, mesmo cometidos fora do território físico, sejam punidos pela Justiça brasileira.”
Intervenção preventiva e os desafios do ambiente digital
Hédio destacou os três níveis de prevenção — primária, secundária e terciária — como fundamentais para combater o discurso de ódio nas plataformas digitais. Ele explicou que a Meta deve adotar uma postura proativa:
“Estamos falando da obrigatoriedade de uma postura proativa, propositiva em termos de checagem, de detecção prévia de conteúdos violadores de direitos, o que é muito diferente da postura passiva, reativa no sentido de aguardar que haja reclamação para somente depois tomar alguma providência.”
Sobre o volume de conteúdos digitais e como adaptar as medidas preventivas ao ambiente online, ele ressaltou que a prática de checagem já é consolidada:
“Lembremos que os protocolos e os programas de ‘fact-cheking’, checagem prévia, acompanham a história das big techs, havendo inclusive uma Rede Internacional de Fact-Checking, a qual estabelece princípios e modelos de checagem. A novidade, portanto, não está no volume de informações a serem checadas, mas no retrocesso representado pela ameaça de abandono de experiências de checagem.”
Liberdade de expressão e seus limites constitucionais
Sobre o equilíbrio entre liberdade de expressão e proteção contra discursos de ódio, Hédio explicou:
“O princípio adotado pelo STF é o da ponderação, que em linguagem popular pode ser traduzido como ‘o seu direito vai até onde começa o do outro’. Nesse momento, por exemplo, estou acompanhando o Inquérito Civil instaurado pelo MP-BA a nosso pedido para que seja investigada a substituição de Iemanjá por Yeshua em uma música interpretada por Cláudia Leitte. A perguntinha básica é a seguinte: os cristãos ficariam felizes com a substituição de Jesus por Exu na famosa canção do Robertão ‘Jesus Cristo, Jesus Cristo, Jesus Cristo eu estou aqui’???”
Em relação à acusação de censura, ele destacou:
“Em certas circunstâncias, a própria Constituição Federal admite expressamente a censura, a exemplo da classificação indicativa, por meio da qual as famílias são informadas sobre conteúdos e limites de idade recomendáveis para programação de entretenimento. O que a Convenção Interamericana preconiza, o que estamos dizendo (parafraseando o Ministro Alexandre de Moraes), é que liberdade de expressão não pode servir de álibi para a prática de crimes; liberdade de expressão não se confunde com liberdade de agressão.”
Impactos sociais e a necessidade de ação
Hédio destacou como a violência verbal encoraja a violência física, citando exemplos históricos:
“A violência verbal, simbólica, fertiliza, encoraja, induz e incita a violência sanguinária, física. Lembremos que o nazismo equiparava judeus a ratos. Quando trato seres humanos como animais (macacos) ou demônios (no caso das religiões afro), estou autorizando tratamento adequado para animais ou demônios, não tratamento reservado a humanos.”
Ele também sugeriu que padrões internacionais de checagem podem ser úteis para reforçar o combate ao racismo online, desde que haja participação ativa de movimentos sociais organizados.
As declarações de Hédio Silva Jr. deixam claro que a Meta está em rota de colisão com a Constituição Federal e tratados internacionais ao adotar uma postura passiva frente ao discurso de ódio. Com base em normas claras e obrigações preventivas, a empresa tem o dever legal de agir de forma proativa, garantindo o respeito aos direitos fundamentais no Brasil.
“A internet não é terra sem lei. Não podemos admitir que uma empresa lucre com a produção de conteúdos alheios, difunda esses conteúdos em escala planetária e reivindique imunidade por tudo quanto leva sua assinatura”, concluiu Hédio.
Por Cleber Lourenço
Fonte: @revistaforum