A cidade de Paris foi escolhida como sede da Olimpíada de 2024 durante sessão do Comitê Olímpico Internacional (COI), em setembro de 2017. Emmanuel Macron havia sido eleito presidente da em maio daquele ano. Os vão de 26 de julho a 11 de agosto. E de 28 de agosto a 8 de setembro ocorrerá a Paralimpíada.
O retorno dos Jogos Olímpicos à capital francesa depois de 100 anos se tornou o principal projeto de Macron naquele início de mandato. Era a chance de o espírito olímpico ressurgir e recolocar o país como protagonista no cenário internacional. Além de 1924, Paris também recebeu os Jogos em 1900.
O primeiro a defender publicamente esta causa foi Pierre de Coubertin (1863-1937), francês que, como presidente do COI, reorganizou a Olimpíada no fim do século 19.
“Os valores olímpicos são os nossos valores”, disse Macron, ao defender a candidatura de Paris. “Eles estão ameaçados, sendo questionados por muitos hoje, então é o melhor momento para defendê-los.”
Passados sete anos, a situação, que já indicava um recrudescimento das tensões em vários pontos do mundo, só piorou. A guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022 pela Rússia, se tornou a maior ação em território europeu desde a Segunda Guerra.
Em outubro de 2023, o ataque do grupo terrorista Hamas a Israel deixou cerca de 1,2 mil mortos e mais de 230 pessoas foram feitas reféns. A guerra iniciada na Faixa de Gaza, a partir desta ação, também fez emergir uma tensão até então reprimida. Nações como o Irã, junto de aliados como o Iêmen e o grupo terrorista Hezbollah, se envolveram no conflito.
A discórdia se espalhou. Alguns governos de esquerda aproveitaram para alimentar o antissemitismo e romperam relações com Israel. Entre eles está o Brasil que, se não rompeu formalmente, ordenou a retirada do embaixador em Tel-Aviv.
Para Shlomi Daniely, da TV Sport1, um dos principais comentaristas de Israel, a Olimpíada de 1972 foi um marco negativo neste sentido. Durante aqueles Jogos de Munique, terroristas do Setembro Negro invadiram a Vila Olímpica e assassinaram 11 membros da delegação israelense.
“O espírito olímpico não existe realmente para Israel desde o massacre de atletas nas Olimpíadas de Munique”, afirma Shlomi. “É um slogan vazio e hipócrita.”
Em 2016, o egípcio Islam El Shehaby se deixou contaminar pelos conflitos locais e, depois de perder no judô para o israelense Or Sasson, se recusou a apertar a mão do adversário.
“Atletas de países muçulmanos recusam-se a competir contra atletas israelitas e até apertarem as suas mãos em esportes individuais”, lembra o comentarista. “Há ainda esportistas, de países como Egito, Irã, Iraque e Síria, que nem comparecem para lutas ou competições contra atletas israelenses.”
Sonho da trégua
A expectativa do COI e de Macron era de que esta Olimpíada abrisse caminho para uma trégua mundial. O líder francês, porém, nos últimos anos, só gerou descontentamento interno, com o país fragmentado, e externo. Ele não conseguiu contribuir para o entendimento. Enquanto a tocha olímpica passeou pelas ruas centenárias de Paris, hostilidades e conflitos se multiplicaram.
Além das animosidades no Leste Europeu e no Oriente Médio, há o aumento de testes nucleares na Coreia do Norte, em parceria com a Rússia. As ameaças de Pequim em relação à anexação de Taiwan se tornam cada vez mais fortes. Cresce o número de manobras militares chinesas na região.
A África continua tomada por golpes de Estado. O conflito no Azerbaijão, pelo enclave separatista de Nagorno-Karabakh, e disputas entre Venezuela e Guiana, na América do Sul, servem para espalhar a tensão pelos quatro cantos do mundo.
Em 1924, na França, as competições também almejavam fortalecer a paz, depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Para Coubertin, aquele momento seria a grande chance dele, finalmente, ver, em sua cidade natal, as nações celebrarem a integração por meio do esporte. Mas a realidade dos conflitos voltou com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Em 1992, o Comitê Olímpico Internacional (COI) agiu para defender o legado de Coubertin, ao renovar a tradição da trégua, vinculada às antigas edições das Olimpíadas. A trégua olímpica busca interromper hostilidades durante os Jogos e impulsionar o fim delas depois do evento.
No momento, tal objetivo pode ser considerado uma utopia, na visão do articulista Jung Woo Lee, do portal The Conversation.
“A Olimpíada de 2024 ocorrerá em meio a turbulências geopolíticas”, afirma Lee. “Estes conflitos afetarão os Jogos Olímpicos e colocarão em causa a capacidade do desporto para reduzir a tensão entre as nações.”
O estudo anual do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS) mostra que, em 2023, houve recorde em gastos mundiais no setor de Defesa. Os valores, entre todos os países, chegaram a US$ 2,2 bilhões (cerca de R$ 10,9 bilhões). O aumento, em relação a 2022, foi de 9% e, de acordo com o instituto, a tendência é de que aumente ainda mais em 2024.
A trégua, com isso, está descartada. Atletas ucranianos, por exemplo, estão proibidos de trocar palavras com competidores russos, mesmo que, por determinação do COI, em função da guerra, a Rússia e sua aliada Bielorrússia ficaram proibidas de ter representantes nos Jogos. Os atletas destas nações atuarão como neutros, sem bandeiras, emblemas ou hinos.
Até mesmo o COI foi alvo do tom belicoso do presidente da Rússia, Vladimir Putin. Ele disse que a medida de proibição contra seu país era uma “discriminação étnica” e que “os atletas treinam durante anos para estarem nos maiores eventos”.
O alemão Thomas Bach, presidente do órgão, deixou de lado o discurso conciliador. Ele acusou o governo russo de utilizar um “tom agressivo” e admitiu que “a participação nos Jogos não é um direito humano intrínseco.”
Macron rebateu aqueles que criticam a presença de Israel. Segundo ele, eventuais discordâncias em relação à forma com que as forças israelenses responderam aos ataques não tiram o direito de defesa do país. “É claro que eles não são os atacantes”, ressalta o presidente francês.
A Palestina, que ainda não é um Estado formalmente reconhecido, participa das Olimpíadas desde 1996. E terá representantes nos Jogos em Paris. Cerca de 170 atletas que fariam parte da delegação, porém, teriam morrido durante o conflito em Gaza, segundo o diretor do comitê palestino, Nader Jayousi.
Guerras em contexto: boicotes anteriores
Interferências políticas, no entanto, já ocorreram anteriormente, fossem elas justas ou não. Em várias outras Olimpíadas, a competição entre o ideal olímpico e os conflitos no mundo esteve presente.
Nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, poucos meses depois de a Alemanha nazista atacar a Renânia, interesses do governo de Adolf Hitler mancharam o evento. Serviram de ferramenta para a Alemanha provocar a Segunda Guerra Mundial.
Nos Jogos de Montreal, em 1976, representantes de 22 nações africanas deixaram a Vila Olímpica em protesto contra a Nova Zelândia. Isso ocorreu porque o país havia enviado sua seleção de rugby para atuar na África do Sul, país que promovia o apartheid.
Nas Olimpíadas de Moscou, em 1980, e de Los Angeles, em 1984, a guerra fria entrou em cena. Os EUA não enviaram atletas para a União Soviética, em protesto contra a invasão do Afeganistão. Quatro anos depois, foi a vez de os soviéticos comandarem um boicote ao evento norte-americano.
Todos esses movimentos, no entanto, se mostraram ineficientes, segundo Alberto Murray Neto, advogado, palestrante sobre temas olímpicos e árbitro da Corte Arbitral do Esporte, instância máxima da jurisdição desportiva mundial. Além de não conseguirem resolver os conflitos, foram prejudiciais ao esporte.
“Em casos de conflitos e de boicotes, quem sofre são os atletas”, observa Murray. “Isso é desesperador para um atleta que se prepara duramente para o certame olímpico e se vê impedido de competir em razão de uma decisão estabanada de um político. Está definitivamente comprovado que fracassaram todas as tentativas de governos usarem boicotes olímpicos e ameaças de punição como instrumentos de pressão geopolítica.”
Mas, se a Olimpíada não consegue encerrar conflitos, ela não deixa de ser uma oportunidade para desarmar espíritos. E alimentar, porém, o sonho de que um dia, a paz ganhe a medalha de ouro na disputa com a guerra.
“Apesar de todos os problemas no mundo, Israel vê os Jogos Olímpicos como uma grande oportunidade para mostrar que a vida continua e que o país consegue manter uma rotina, mesmo com a guerra”, ressalta Shlomi.
“Israel quer mostrar sua bela face e lembrar que somos o único país democrático da região. Hastear a bandeira no desfile e no pódio é algo muito importante também para elevar o moral do povo, para que um dia a paz prevaleça.” Para Shlomi e os envolvidos em guerras, manter a esperança a cada quatro anos certamente é o mais difícil dos exercícios.
Fonte: revistaoeste