Sophia @princesinhamt
Mundo

Óvnis — Na geopolítica e na imaginação

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Enquanto os Estados Unidos — e o mundo — testemunhavam uma esquisita crise diplomática entre a América e a China por conta de objetos no céu que ninguém sabia identificar, o Pentágono se viu obrigado a fazer uma incomum declaração no domingo 12, à noite, enquanto os norte-americanos assistiam ao segundo quarto do Super Bowl. Uma pergunta feita ao general da Força Aérea que vigiava os céus causou um rebuliço ainda maior: seria possível que os objetos que viraram alvos militares fossem enviados por extraterrestres? O general Glen VanHerck apenas respondeu que “nada está descartado”.

A declaração foi a sobejidão para que a mídia — e, por conseguinte, as redes sociais e as conversas de bar pelo planeta — passassem a a sério sobre óvnis, e o que parecia um reconhecimento pela maior potência militar e intelectual do planeta do risco de estarmos sendo invadidos por aliens. Enquanto alguns já cogitavam perguntar aos chefes se o home office voltaria caso se confirmasse que os extraterrestres estavam mesmo atacando, o governo Biden se viu obrigado a dizer que os “objetos voadores não identificados” não provinham de vida alienígena. , Karine Jean-Pierre, chegou a brincar dizendo que “ama E. T. [o Extraterrestre], o filme, mas vai deixar isso para lá”.

A ideia de travar contato com vida extraterrestre mexe há muito tempo com o imaginário — o que parecem desenhos de naves e alienígenas são encontrados em cavernas da Antiguidade em diversos sítios arqueológicos —, o que aumentou muito após a secularização intelectual no século 19: até hoje, acredita-se que a descoberta de vida alienígena afetaria as estruturas religiosas, principalmente do Ocidente, por ser uma suposta “negação” de um papel privilegiado da humanidade diante do Cosmo. Mas os acontecimentos desta semana envolvem antes uma questão diplomática muito mais terrena, ainda que não pedestre: como lidar com as novas tecnologias de vigilância espacial, que podem coletar sabe-se lá que informações, e dá-las a inimigos? Pior: em um cenário em que Estados Unidos e China caminham cada vez mais certamente para um conflito armado que pode desembocar em uma Terceira Guerra Mundial?

Os Estados Unidos nunca haviam abatido um objeto voador em seu espaço aéreo até derrubar um misterioso balão “espião” na Carolina do Sul neste mês. De repente, virou rotina. Por uma semana, parecia que se tornaria uma ocorrência diária. Incidentes parecidos foram relatados no Canadá e até mesmo na região de Paysandú, no Uruguai. Os EUA chegaram a derrubar .

O que sabemos sobre os objetos voadores derrubados? Quase nada. Se merecemos um “quase”. Talvez, saber que ainda não é dessa vez se saberemos se os ETs se parecerão mais com Alf, Alien ou o Predador.

Todo o imaginário foi atiçado por um termo técnico: objeto voador não identificado (óvni, ou UFO, na sigla em inglês). Um termo técnico da aviação que foi tomado como sinônimo garantido de “nave espacial tripulada por alienígenas” nos filmes. “Não vou chamá-los de balões. Nós os chamamos de ‘objetos’ por uma razão”, ainda disse VanHerck. Na verdade, apesar da frase chocante fora de contexto, o general explicava que era trabalho da comunidade de inteligência e contrainteligência explicar o que ele era — do contrário, um militar poderia acabar acusando uma potência inimiga de maneira irresponsável.

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Balão Espião Chinês Sobre A Carolina Do Norte, Em 4 De Fevereiro De 2023, Foto: Ed Weiner/Shutterstock

O balão da Carolina do Norte, o incidente mais grave até o momento, voava mais alto do que os outros objetos — cerca de 60 mil pés, ou 18 mil metros. O que mais assustou pilotos de combate experientes foram três coisas. Em primeiro lugar, o formato octogonal, incomum para drones. Em segundo lugar, a altitude — seriam esperados cerca de 20 mil pés, ou 6 mil metros, para tais objetos —, como foram os outros “objetos”. Mas, principalmente, o tamanho. Um deles tinha o tamanho de três ônibus. Não é algo com o qual os pilotos estão acostumados a lidar, apesar de ocorrências com drones serem obviamente comuns. Randy Reep, um experiente piloto de F-15, declarou que os militares não poderiam derrubar o objeto até ter certeza de que era “um veículo sem homens”. “Eles precisarão esperar ter os dados para poder fornecer um bom relatório sobre a exata situação”, afirmou Reep.

O primeiro “balão” havia sido confirmado na quinta-feira da semana passada (9), e parecia que vinha sendo “monitorado” havia dias. A administração Biden apenas o abateu no domingo, mesmo já tendo avisado que seria um balão de espionagem de inteligência chinês — embora a ditadura chinesa alegue ser apenas de “meteorologia”. Por que a demora e o que o balão foi capaz de monitorar são tão incertos quanto vida alienígena — ainda mais por Biden permitir que sobrevoasse vários Estados, ao invés de derrubá-lo tão logo chegasse ao Alasca.

Nada de alienígenas — apenas as terrestres ogivas nucleares

Como se não bastasse o clima pouco agradável, a Rússia “aproveitou” para fazer exercícios aéreos na região próxima ao Alasca nos dias seguintes. A Rússia é aliada da China, e poderia trazer um pouco de clareza para os ânimos atiçados: não seriam alienígenas. Tratar-se-iam apenas de preparações para o lançamento de ogivas nucleares capazes de varrer a vida humana do planeta. O programa de monitoramento chinês do espaço já envolve mais de 40 países — embora, mais uma vez, o totalitarismo chinês negue.

A China também imediatamente acusou os EUA de “exagero” ao derrubar o balão — que alega ser de pura meteorologia —, mas também acusou os EUA de lançarem objetos contra seu território. Logo após o incidente, afirmou que seu espaço aéreo foi violado pelos norte-americanos ao menos 30 vezes nos últimos meses, e que avisou pescadores perto da Base Naval de Jianggezhuang que iria derrubar um objeto norte-americano. A base fica a 15 milhas de Qingdao, que possui submarinos com mísseis balísticos e nucleares, além do primeiro porta-aviões chinês, o Liaoning. É o quartel-general da Esquadra do Mar do Norte. Já o Mar do Sul da China é apontado por analistas de geopolítica como a região potencial para o início da Terceira Guerra Mundial.

Presidente chinês Xi Jinping
Presidente Chinês Xi Jinping | Foto: Shutterstock

VenHerck declarou que os EUA preferiram tentar usar as metralhadoras dos aviões para derrubar os objetos, para tentar mantê-los preservados — o mais que se possa. Na prática, foi impossível.

Todos os objetos voadores foram derrubados pelo mesmo tipo de míssil: o AIM-9X Sidewinder. O míssil foi escolhido por permitir ao piloto ficar o mais longe possível do alvo. Iain Boyd, diretor do Centro de Iniciativas de Segurança Nacional da Universidade do Colorado, afirmou que seria necessário “chegar muito mais perto do alvo para usar um canhão, e houve relatos de interferência nos sensores da aeronave”. O míssil não foi desenvolvido para o abate de objetos como balões — mas são mais baratos e evitariam destruir completamente objetos que se quer recuperar, ao contrário de uma arma guiada por radar, como o míssil de alcance médio AIM-120 AMRAAM, afirmou o coronel aposentado da Força Aérea Michael Pietrucha.

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Glen Vanherck | Foto: Divulgação/Força Aérea Norte-Americana

Suas habilidades de busca de calor também podem torná-los mais adequados para isso, afirmou Pietrucha. “Você tem duas condições. Durante o dia, você tem o sol aquecendo o balão — você está atirando de cima, porque ele vê esse reflexo gigante da luz do sol e absolutamente orientará sobre isso. E à noite o balão é mais quente, comparado ao céu noturno”, disse o -oficial de operações de guerra irregular e instrutor de guerra eletrônica, que realizou 156 missões de combate em jatos F-4G e F-15E.

Mesmo que o objeto voador não gere calor, o míssil ainda será capaz de encontrá-lo, pois “é a relação com o fundo que importa mais”, acrescentou Pietrucha. “A maneira como você derrubava balões antigamente era munição incendiária contra um balão de hidrogênio. Mas isso foi há mais de cem anos.”

A operação sai a um custo de US$ 439 mil cada míssil — cerca de R$ 2,292 milhões. O primeiro míssil não conseguiu atingir o balão e caiu “inofensivamente” no Lago Huron.

 

“Você pode entupir um balão de buracos de bala, e ele permanecerá em altitude”, disse David Deptula, tenente-general aposentado da Força Aérea e piloto de caça, ao Washington Post. A pressão do ar tão alta não permite que o hélio escape livremente por pequenos orifícios. Em 1998, pilotos de CF-18 do Canadá tentaram derrubar um balão com mais de mil tiros. O balão continuou impávido, gerando risos da imprensa inglesa. Ao chegar às Ilhas Britânicas, a poderosa Força Aérea Real também foi infeliz em derrubá-lo. O balão acabou caindo sozinho na Finlândia.

Gastar tanta munição é caro. E o que fazer quando os incidentes se tornam frequentes? E ainda com balões que estavam “indo embora”? Mas e no caso de uma nova “guerra nas estrelas” com um segundo round, bem mais violento, da Guerra Fria?

Os países possuem regulamentações internas para o espaço aéreo até 60 mil pés. Mas não há acordos e regras para o que está acima disso — uma altura elevada demais para a aviação civil, rara e perigosa para a militar, mas ainda muito mais baixa do que os satélites, que ficam a cerca de 330 mil pés. O uso desta área permitiria escapar da vigilância dos países — o que seria um ingrediente completamente novo para as questões de inteligência, segurança e monitoramento.

O tema será debatido em um encontro, no próximo mês, do Comitê de Usos Pacíficos do Espaço das Nações Unidas, que quer criar marcos regulatórios. Quem controla o espaço sideral se torna uma questão premente pelos usos de inteligência — e os EUA e a Rússia não estão mais sozinhos na disputa.

O potencial de exploração da estratosfera ganha contornos nebulosos — pun intended — com as invenções do cientista chinês Wu Zhe, que criou diversos “cloud chasers” — caçadores de nuvens, objetos que podem voar pela maior parte do globo — justamente em uma área não demarcada do espaço. Ele alega que estuda desastres ambientais, mas suas empresas foram colocadas na lista de proibições dos EUA recentemente — e seus sites foram retirados do ar. Em 2019, Wu Zhe orgulhava-se de ter enviado “um cara grande”, com mais de 100 metros, para a estratosfera. Depois, alegou conseguir o primeiro sinal capturado daquela região. Uma de suas empresas, a Emast, alegou que um balão chinês fez uma circum-navegação completa do globo em 2020 e foi recuperado com segurança pela primeira vez.

Os objetos voadores no nosso imaginário

Além das questões militares, há ainda o trabalho no imaginário. Os óvnis povoam filmes, séries e livros há gerações. E incidentes com luzes ou objetos, afinal, não identificados parecem estar se tornando rotina cada vez maior, num mundo que acelera o marcial nos céus.

Não foi o suíço Erich von Däniken, com seu clássico Eram os Deuses Astronautas? (Erinnerungen an die Zukunft, no original alemão; Chariots of the Gods, em inglês), o primeiro a propor a ideia de que as religiões e a metafísica conhecida na Terra deveriam ser substituídas pela visão de que haveria civilizações mais poderosas do que a nossa — os “deuses”, portanto, seriam apenas vida alienígena mais “evoluída”, que nos controlaria à distância. O movimento “nova era”, que busca acabar com as religiões e criar um espiritualismo sem ritos, sincrético e indistinto no lugar, bebeu muito da fonte do livro —, mesmo que tenha sido refutado de ponta a ponta e tratado como uma piada por acadêmicos desde que foi lançado, principalmente por seus erros, muitos irrisórios e primitivos, ao descrever civilizações.

livro eram os deuses astronautas?
Foto: Divulgação/Melhoramentos

A crença comum da sociedade secular atual é que a prova de vidas alienígenas afetaria a religião cristã, destacando a materialidade do espaço — um papel que vem ao lado da inteligência artificial no exame da consciência. Mas clássicos da literatura mais “sérios” já haviam tratado do tema. A passagem do século 19 para o século 20 foi pródiga em obras que destacam a materialidade do homem — como Viktor Frankenstein criando vida em laboratório, logo após a publicação de A Origem das Espécies, de Darwin.

Entre os destaques, fica-se com H. P. Lovecraft, que cria uma nova metafísica materialista — apesar de conservadora, e racialista —, de formas poderosas de vida alienígena acessível por cultos secretos. Toda a nossa cosmologia seria devorada pelo reino da loucura da descoberta de vidas violentas e absolutamente monstruosas. Lovecraft, que se preocupa muito mais com o clima do que com o enredo — é a influência mais descarada da série Stranger Things, que nem se dá ao trabalho de trocar o formato dos monstros —, mostra a loucura da nossa vida cotidiana. O escritor Michel Houellebecq, que tem um livro dedicado a Lovecraft, também exibe a monstruosidade de nossa normalidade constantemente. Outro foi H. G. Wells e seu Guerra dos Mundos. A política mundial parecia estar apontando para um impasse que só seria “resolvido” unindo-se a humanidade contra uma força externa.

E até sátiras foram feitas, como alienígenas que precisam chegar mais rapidamente ao planeta Terra, no auge da Guerra Fria, para conseguir escravizar a humanidade a tempo, antes que ela própria se destruísse com armas nucleares. O enredo de Watchmen, de 1984, termina exatamente assim: o homem mais rico e inteligente do mundo forja um ataque alienígena fake para finalmente unir comunistas e ocidentais. A ideia de que alienígenas sejam necessários à Nova Ordem Mundial — um governo totalitário, único e global — parece necessitar de inimigos comuns, poderosos, mundiais — que exijam uma ditadura total e de poder irrestrito para se justificar.

Alienígenas, existindo ou não, continuam a ser uma ameaça. Principalmente não existindo.

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Ilustração: Shutterstock

Fonte: revistaoeste

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