Em discurso de boas-vindas a presidentes da América do Sul presentes em cúpula nesta terça-feira, 30, em Brasília, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfatizou a necessidade de integração e união regional, sobretudo através de instrumentos como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), para deixar de lado a polarização que dominou o continente nos últimos anos.
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Participam os líderes Alberto Fernández (Argentina), Luís Arce (Bolívia), Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Guillermo Lasso (Equador), Irfaan Ali (Guiana), Mário Abdo Benítez (Paraguai), Chan Santokhi (Suriname), Luís Lacalle Pou (Uruguai) e Nicolás Maduro (Venezuela). O Peru será representado pelo presidente do chefe do Conselho de Ministros, Alberto Otárola, uma vez que a presidente Dina Boluarte está legalmente impedida de deixar o país.
Leia o discurso completo:
“É com grande alegria que recebo meus amigos presidentes sul-americanos.
Agradeço muito que tenham atendido a este chamado e o esforço que fizeram para estar aqui.
O que nos reúne hoje em Brasília é o sentimento de urgência de voltar a olhar coletivamente para a nossa região.
É a determinação de redefinir uma visão comum e relançar ações concretas para o desenvolvimento sustentável, a paz e o bem-estar de nossas populações.
No Brasil, a integração é resultado da redemocratização. A Constituição de 1988 estipula em seu parágrafo 4, inciso único:
“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.
Entendemos que a integração sul-americana é essencial para o fortalecimento da unidade da América Latina e do Caribe.
Uma América do Sul forte, confiante e politicamente organizada amplia as possibilidades de afirmar, no plano internacional, uma verdadeira identidade latino-americana e caribenha.
O final do século XX viu surgir uma série de iniciativas voltadas a articular ações em âmbito sub-regional.
A Comunidade Andina de Nações, o Tratado de Cooperação Amazônica e o MERCOSUL ilustram esse regionalismo de abrangência e propósitos diversos.
Registro, em especial, a atuação dos presidentes Sarney e Alfonsín que entenderam a importância da integração para a consolidação das nossas democracias.
Foi só no limiar do século XXI que decidimos unir toda a região sul-americana.
Apesar de dividirmos o mesmo continente, foi necessário esperar quase 200 anos de vida política independente até abandonarmos a indiferença e o isolamento recíprocos.
Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso convocou, no ano 2000, a primeira Cúpula de Presidentes, as distintas posições políticas e ideológicas daquele momento não impediram que nossos países encampassem a ideia de futuro compartilhado e de construção de confiança mútua.
Iniciamos, ali, um longo percurso, lançado com a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, ou simplesmente IIRSA, e a convergência entre o Mercosul e a Comunidade Andina. Chile, Guiana e Suriname também se engajaram nesse esforço.
Novo e decisivo impulso foi dado com a formação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), resultado da reunião de líderes em Cusco, Peru, em 2004.
Seguiram-se várias reuniões anuais de chefes de Estado, que teve, entre outros marcos, as de Brasília (2005) e Cochabamba (2006).
Mas a CASA era apenas um foro, sem estrutura permanente. Após nova Cúpula, em Isla Marguerita, na Venezuela, decidimos finalmente criar uma organização dotada de personalidade jurídica, sede e secretariado próprios.
Em 23 de maio de 2008, quando constituímos a UNASUL (há exatos 15 anos), aqui nesse mesmo Palácio do Itamaraty, avançamos na institucionalização da nossa relação com instâncias como a Cúpula de Presidentes, o Conselho de Chanceleres, o Parlamento Sul-americano e 12 conselhos setoriais para enfrentar nossos desafios.
Por mais de dez anos, a UNASUL permitiu que nos conhecêssemos melhor. Consolidamos nossos laços por meio de amplo diálogo político que acomodava diferenças e permitia identificar denominadores comuns. Implementamos iniciativas de cooperação em áreas como saúde, infraestrutura e defesa.
Essa integração também contribuiu para ganhos comerciais importantes. Formamos uma robusta área de livre-comércio, cujas cifras alcançaram valor recorde de 124 bilhões de dólares em 2011.
O perfil do nosso intercâmbio é mais diversificado se comparados ao nosso comércio extrarregional. Inclui produtos e serviços de maior valor agregado e intensivos em tecnologia.
Também conjugamos crescimento econômico com distribuição de renda. Reduzimos nossas históricas desigualdades e logramos avanços palpáveis no combate à pobreza. Segundo a FAO, a América do Sul reduziu, em duas décadas, de 15% para 5% de sua população vitimada pela fome.
A UNASUL foi efetiva como foro de solução de controvérsias entre países da região, notadamente na crise entre Colômbia e Equador e no conflito separatista boliviano.
Obtivemos resultados expressivos na redução do desmatamento e dos ilícitos transnacionais.
Estimulamos o diálogo e a cooperação para fazer chegar a milhões de sul-americanos, de forma efetiva, os benefícios da cidadania.
As reuniões de cúpula com os países árabes e com os países africanos ajudaram a definir um perfil de relacionamento externo da América do Sul.
Foram feitos formidáveis para uma região herdeira do colonialismo e marcada por graves formas de violência, discriminação de gênero e racismo.
Não resolvemos todos os nossos problemas, mas nos dispusemos a enfrentá-los, em vez de ignorá-los. E decidimos fazer isso cooperando entre nós.
Nossa América do Sul deixou de ser apenas uma referência geográfica e se tornou uma realidade política.
Infelizmente esses avanços foram interrompidos nos últimos anos.
No Brasil, um governo negacionista atentou contra os direitos da sua própria população, rompeu com os princípios que regem a nossa política externa e fechou nossas portas a parceiros históricos.
Nosso país optou pelo isolamento do mundo e do seu entorno.
Essa postura foi decisiva para o descolamento do país dos grandes temas que marcaram o cotidiano dos nossos vizinhos.
Na região, deixamos que as ideologias nos dividissem e interrompessem o esforço da integração. Abandonamos canais de diálogo e mecanismos de cooperação e, com isso, todos perdemos.
Senhoras e senhores,
Tenho a firme convicção de que precisamos reavivar nosso compromisso com a integração sul-americana.
Quando assumi a Presidência, em primeiro de janeiro deste ano, a América do Sul voltou ao centro da atuação diplomática brasileira.
Por essa razão convidei a todos para a reunião de hoje, que será seguida, em agosto, da Cúpula dos Países Amazônicos.
Os elementos que nos unem estão acima de divergências de ordem ideológica.
Da Patagônia e do Atacama à Amazônia, do Cerrado e dos Andes ao Caribe, somos um vasto continente banhados por dois oceanos.
Somos uma entidade humana, histórica, cultural, econômica e comercial, com necessidades e esperanças comuns.
As recentes eleições na Colômbia, Chile, Bolívia, Brasil e Paraguai demonstraram o vigor da democracia em nossa região, em escrutínios marcados pela expressiva participação popular e ampla liberdade de expressão.
A integração da América do Sul depende desse sentimento de pertencer a uma mesma comunidade.
Temos uma história de resistência, forjada nas lutas de independência e no combate às ditaduras.
Compartilhamos uma cultura vibrante e expressões artísticas que vão da música à literatura.
Até no futebol, esporte que aprendemos a amar ainda crianças, é possível ver o recuo das rivalidades. Vivenciamos algo impensável no ano passado: brasileiros torcendo para a Argentina na final do Mundial do Catar.
A candidatura conjunta de Uruguai, Paraguai, Chile e Argentina para sediar a Copa do Mundo de 2030 talvez seja a expressão mais acabada dessa identidade sul-americana em construção, e de nossa capacidade de cooperar para além do campo de futebol e de nossas próprias fronteiras.
Caros presidentes,
Se hoje damos os primeiros passos para retomar o diálogo enquanto região, o contexto que enfrentamos é ainda mais desafiador do que foi no passado.
Os foros de governança globais enfrentam severas dificuldades em oferecer respostas justas e eficazes aos problemas da atualidade.
Nossos países foram alguns dos mais afetados pela pandemia de Covid-19. As mortes, o sofrimento humano e o custo econômico deixaram marcas profundas. A crise sanitária escancarou antigas desigualdades e gerou novas injustiças.
As evidências científicas confirmam que o ritmo atual de emissões nos levará a uma crise climática sem precedentes e o planeta todo já sente seus impactos.
A falta de ação coletiva afeta nossa capacidade de conter o aumento da temperatura global.
Sabemos que o que ocorre na Amazônia tem efeito sobre a Bacia do Prata.
Com o esvaziamento da Organização Mundial do Comércio, o multilateralismo retrocede e crescem as posturas protecionistas nos países ricos, limitando nossas opções.
Todos sofremos as consequências da guerra. O conflito na Ucrânia desestabilizou o mercado de energia e de fertilizantes e provocou a volatilidade dos preços dos alimentos, deteriorando nossas condições de vida.
Quando as cadeias de suprimento globais foram afetadas por esse conjunto de fatores, nossas carências em infraestrutura e nossas vulnerabilidades externas foram expostas.
A região parou de crescer, o desemprego aumentou e a inflação subiu. Alguns dos principais avanços sociais logrados na década passada foram perdidos em pouco tempo.
No Brasil e em outros países, recentes ataques a instituições democráticas, inclusive às sedes dos poderes constitucionais, nos ofereceram uma trágica síntese da violência de grupos extremistas, que se valem de plataformas digitais para promover campanhas de desinformação e discursos de ódio.
Face a tantas mudanças e desafios, que papel queremos para a América do Sul?
Nenhum país poderá enfrentar isoladamente as ameaças sistêmicas da atualidade. É apenas atuando unidos que conseguiremos superá-las.
Nossa região possui trunfos sólidos para fazer face a esse mundo em transição.
O PIB somado de nossos países neste ano deverá chegar a 4 trilhões de dólares. Juntos somos a quinta economia global.
Com uma população de quase 450 milhões de habitantes, constituímos importante mercado de consumo.
Possuímos o maior e mais variado potencial energético do mundo, se levarmos em conta as reservas de petróleo e gás, hidroeletricidade, biocombustíveis, energia nuclear, eólica e solar e o hidrogênio verde.
Somos grandes e diversificados provedores de alimentos.
Contamos com mais de um 1/3 das reservas de água doce do mundo e uma biodiversidade riquíssima, pouco conhecida.
Em nosso solo se encontra rico e variado conjunto de minérios, incluídos aqueles que, como o nióbio, lítio e cobalto, são essenciais para projetos industriais de última geração.
Somos uma região de paz, sem armas de destruição em massa, e na qual os litígios são resolvidos pela via diplomática.
Nos próximos anos, vamos sediar eventos dos principais foros de governança global, como a reunião do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, no Peru, a Cúpula do G20, a reunião dos BRICS e a COP 30, do clima, no Brasil.
Precisamos chegar a esses espaços unidos, como interlocutores confiáveis e buscados por todos.
Caros amigos e amigas,
Entre as muitas coisas que aprendi na política é que o mandato presidencial é muito mais curto do que aparenta. Não temos tempo a perder.
A América do Sul tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade de trilhar o caminho da união.
E não é preciso recomeçar do zero.
A UNASUL é um patrimônio coletivo. Lembremos que ela está em vigor. Sete países ainda são membros plenos. É importante retomar seu processo de construção.
Mas ao fazê-lo, é essencial avaliar criticamente o que não funcionou e levar em conta essas lições.
Precisamos de mecanismos de coordenação flexíveis, que confiram agilidade e eficácia na execução de iniciativas.
Nossas decisões só terão legitimidade se tomadas e implementadas democraticamente.
Mas a regra do consenso poderia estar restrita a temas substantivos, evitando que impasses nas esferas administrativas paralisem nossas atividades.
Seria um erro restringir as atividades às esferas de governo. Envolver a sociedade civil, sindicatos, empresários, acadêmicos e parlamentares dará consistência ao nosso esforço.
Ou os processos são construídos de baixo para cima ou não são viáveis e estarão fadados ao fracasso.
Nesse sentido, e sem prejuízo de outras propostas que discutiremos ao longo do dia de hoje, sugiro à consideração de vocês as seguintes iniciativas:
- colocar a poupança regional a serviço do desenvolvimento econômico e social, mobilizando os bancos de desenvolvimento como a CAF, o Fonplata, o Banco do Sul e o BNDES;
- aprofundar nossa identidade sul-americana também na área monetária, mediante mecanismo de compensação mais eficientes e a criação de uma unidade de referência comum para o comércio, reduzindo a dependência de moedas extrarregionais;
- implementar iniciativas de convergência regulatória, facilitando trâmites e desburocratizando procedimentos de exportação e importação de bens;
- ampliar os mecanismos de cooperação de última geração, que envolva serviços, investimentos, comércio eletrônico e política de concorrência;
- atualizar a carteira de projetos do Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN), reforçando a multimodalidade e priorizando os de alto impacto para a integração física e digital, especialmente nas regiões de fronteira;
- desenvolver ações coordenadas para o enfrentamento da mudança do clima;
- reativar o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, que nos permitirá adotar medidas para ampliar a cobertura vacinal, fortalecer nosso complexo industrial da saúde e expandir o atendimento a populações carentes e povos indígenas;
- lançar a discussão sobre a constituição de um mercado sul-americano de energia, que assegure o suprimento, a eficiência do uso de nossos recursos, a estabilidade jurídica, preços justos e a sustentabilidade social e ambiental;
- criar programa de mobilidade regional para estudantes, pesquisadores e professores no ensino superior, algo que foi tão importante na consolidação da União Europeia; e
- retomar a cooperação na área de defesa com vistas a dotar a região de maior capacidade de formação e treinamento, intercâmbio de experiências e conhecimentos em matéria de indústria miliar, de doutrina e políticas de defesa.
Por fim, não temos ideias pré-concebidas sobre o desenho institucional futuro que poderíamos adotar.
Queremos dialogar e conhecer a opinião de todos.
Estou, no entanto, pessoalmente convencido da necessidade de um foro que nos permita discutir com fluidez e regularidade e orientar a atuação de nossos países para o fortalecimento da integração em várias de suas dimensões.
Julgo essencial a criação de um Grupo de Alto Nível, a ser integrado por representantes pessoais de cada Presidente, para dar seguimento ao trabalho de reflexão. Com base no que decidamos hoje, esse Grupo terá 120 dias para apresentar um mapa do caminho para a integração da América do Sul.
Senhoras e senhores,
Enquanto estivermos desunidos, não faremos da América do Sul um continente desenvolvido em todo o seu potencial.
A integração deve ser objetivo permanente de todos nós. Precisamos deixar raízes fortes para as próximas gerações.
Permitir que as divergências se imponham teria um custo elevado, além de desperdiçar o muito que já construímos conjuntamente.
Quero encerrar fazendo menção a dois companheiros que trabalharam de forma incansável pela nossa região.
Aprendemos com o querido Marco Aurélio Garcia, intelectual e dirigente do Partido dos Trabalhadores, falecido em 2017, que:
“A política não é destino, mas construção humana sobre condições históricas dadas. A integração será feita no respeito à diferença, porque não há mais espaço para a homogeneidade da submissão”.
E, concluo parafraseando o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que foi secretário-geral do Itamaraty: precisamos nos recusar a passar mais quinhentos anos na periferia.
As condições humanas e materiais para o nosso desenvolvimento soberano estão em nossas mãos.
Muito obrigado.”
Fonte: Veja