Por terem vivenciado ou lido a respeito, muitos brasileiros talvez se recordem do que virou um clássico da insanidade governamental: policiais federais tentando laçar bois que pecuaristas “escondiam” nos pastos, para não vender a preços tabelados na época da nossa híper, no governo Sarney.
A mesma insanidade, que seria ridícula caso não envolvesse o trágico empobrecimento que políticas econômicas surreais estão provocando na Argentina, está sendo repetida pelos nossos vizinhos.
Fiscais da AFIP, equivalente à Receita Federal, foram ao Mercado Central de Buenos Aires controlar os preços de produtos importados como suculentas mangas brasileiras, bananas, abacaxis e outros perigosos agentes infiltrados.
“Está sendo controlada a traçabilidade dos alimentos importados e de produção local com distorções de preço”, disse o órgão, sem atentar para a triste ironia de que, nas condições atuais, esfarela-se ao vento o próprio conceito de formação de preços.
É impossível desativar a bomba, pelos parâmetros do arremedo de governo atual. Assim, o ministro da Economia, Sergio Massa, tenta criminalizar as mangas, um dos pontos do novo pacote econômico, mais um de uma sequência que, inevitavelmente, produz efeito zero, quando não resultado oposto ao desejado.
Por exemplo, um dos pontos do pacote é o aumento das taxas de juro para 97% (estava em 91%), uma tentativa de afogado de convencer os investidores a colocar seus recursos em pesos e não escapar para o dólar, como todo mundo faz num barco já rachado pelo iceberg. Massa e sua equipe consideram uma vitória que o dólar no paralelo – um dos quinze tipos de câmbio existentes na Argentina – não tenha chegado a 500 pesos. Apenas chegou perto.
Como não há mais reservas, Massa, que acaba de levar uma típica rasteira de Cristina Kirchner em suas ambições presidenciais, tem poucas alternativas para segurar a explosão do dólar e o aumento de preços. No Infobae, um integrante do governo resumiu o espírito da coisa: “Não tem mais muito o que se possa fazer. Esperar que o FMI adiante desembolsos, insistir com o swap chinês, são todas ações marginais”.
Muitos, realisticamente, já desistiram de esperar que o governo brasileiro convença o FMI a “tirar a faca do pescoço” da Argentina, nas palavras equivocadas do presidente Lula da Silva. Na verdade, é a Argentina quem encosta a faca no próprio pescoço e assusta o FMI: o tamanho de sua desgraça ameaça uma derrocada daquelas, com o risco de contaminação para outros endividados.
A nova e aterradora perspectiva é que a taxa de inflação atinja dois dígitos agora em maio.
“Existe consciência de tudo que está em jogo nesse 2023/24, do desafio que temos pela frente?”, perguntou o consultor econômico Esteban Domecq, ao fazer um resumo da derrocada argentina.
“Em cinco décadas, o PIB por habitante da América Latina aumentou 110%. No mesmo período, o da Argentina subiu apenas 15%, produto de dezoito anos recessivos, quatro eventos disruptivos e dois períodos de paralisia estrutural”.
As crises mencionadas abarcam governos de diferentes tendências ideológicas, mas é preciso lembrar que o peronismo governa o país desde 2003, com um interregno dos quatro nada positivos anos de Mauricio Macri.
A tática dos peronistas no momento é insuflar confrontos com Javier Milei, o “anarcocapitalista” que está rachando a oposição com seu programa alucinado, mas efetivo para atrair a parte da população mais desiludida com “tudo isso que está aí”.
O presidente Alberto Fernández, que ainda se considera um ator político relevante (coro de risadas ao fundo), foi o último a atacar Milei, chamando-o de “energúmeno” e produto do “império mediático”. Se existia alguma coisa boa em Alberto era o discurso menos abrasivo do que o dos kirchneristas. Nem isso sobrou.
Milei, cada vez mais parecido com Bilbo Bolseiro, hobbit dos filmes do Senhor dos Anéis, só tem a ganhar com os ataques. Uma pesquisa mais recente mostra o seguinte quadro: a coalizão oposicionista, Juntos Pela Mudança, teria 32% na eleição presidencial; a Frente de Todos, com o peronismo no comando, ficaria com 25%; os libertários de Millei, 22%.
A oposição tem assim o total de 54% dos votos, mas, como tantas outras coisas na Argentina, isso é firme como andar sobre um mar de gelatina. Quem pode prever o que fará Milei depois do primeiro turno?
Escrevendo no Clarín, Gonzalo Abascal disse que “Frankenstein foi parido por anos de caos econômico. Milei é filho da inflação. Se o governo quer um ‘culpado’, deveria olhar a si mesmo”.
Caçar mangas no mercadão de Buenos Aires não muda 1 milímetro dessa realidade. A única utilidade é pedagógica, mas aqueles a quem o cataclismo argentino poderia beneficiar como mau exemplo acreditam firmemente que podem fazer a mesma coisa e conseguir resultados diferentes. Todo mundo sabe o que isso significa.
Fonte: Veja