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Turismo de guerra: entenda por que cada vez mais pessoas se interessam por esse tipo de viagem e suas implicações históricas

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No dia 21 de julho de 1861, nos arredores da cidade de Manassas, no estado da Virgínia, ocorreu a Primeira de Bull Run, combate que inaugurou a Guerra Civil dos Estados Unidos. De curta duração e sangrento, o conflito terminou com 4 878 mortos, sendo 2 896 soldados da União e 1 982 dos Estados Confederados. Para além do marco histórico, o embate ganhou fama porque foi um dos primeiros a atrair a curiosidade mórbida de turistas, que acompanharam as tropas locais desde Washington até o descampado onde enfrentariam os rebeldes sulistas. Diferentemente do que a ficção imprimiu, a maior parte das testemunhas acompanhou tudo com segurança das Colinas de Centreville, a cerca de 8 quilômetros dali. Ao atravessar o século XX, essa ganhou nome — turismo de guerra ou turismo sombrio. Ganhou destinos ainda mais castigados pela violência, como a Síria e, agora, a Ucrânia, invadida há mais de um ano pela Rússia, que ataca o país vizinho de fronteira sem dó nem piedade.

Do século XIX nos Estados Unidos — quando a brincadeira tenebrosa começou — para cá, muita coisa mudou. Até mesmo a estrutura da guerra e o modo como se combate são diferentes: as lutas corpo a corpo deram lugar aos ataques de drones, só para ficar em um aspecto. O que parece não ter solução é a natureza belicosa do ser humano. De acordo com a Academia de Genebra, há mais de 110 conflitos armados em curso no mundo. Alguns deles começaram recentemente, enquanto outros duram mais de cinquenta anos. A lista de países conflagrados que têm recebido visitantes compreende ainda Iêmen, Afeganistão, Somália, Sudão do Sul, Líbia, Etiópia e Mali. É difícil estimar o fluxo exato de pessoas que buscam por esse tipo de “entretenimento”, já que os números e estatísticas divulgados não são confiáveis em situações de convulsão social. Há um outro complicador: em muitos casos, as visitas ocorrem em regiões em que os conflitos nascem e morrem em círculo vicioso sem fim, e é quase impossível distinguir tiros e trégua. Há quase dez anos, turistas visitam as Colinas de Golã, na fronteira entre Israel e Síria, para observar colunas de fumaça se levantando no horizonte.

AO AR LIVRE - Nas ruas de Kiev: marcas da guerra formam museu a céu aberto
AO AR LIVRE - Nas ruas de Kiev: marcas da guerra formam museu a céu aberto (Dimitar Dilkoff/AFP)

O que move esse tipo de interesse? Pesquisas mostram que os visitantes, em sua maioria, são . Eles compõem as fileiras de voluntários, combatentes ou não combatentes, que se alistam para colaborar com um dos lados em conflito. Outros, lamentavelmente, buscam testemunhar a guerra em primeira mão, fascinados por assuntos obscuros, incluindo mortes e desastres. Apesar de tudo, há quem defenda a importância do turismo de guerra, argumentando que ele incentiva o voluntariado humanitário. Mais ainda: ajudaria os países a dar alguma sobrevida ao setor de serviços, que é enormemente afetado pela guerra. Mas há óbvios desafios envolvendo esse tipo de empreendimento, a começar pela ausência de controle. “As pessoas ainda podem entrar na Ucrânia com relativa facilidade e realmente não sabemos o que elas fazem lá”, disse a VEJA Philipp Wassler, professor da Universidade de Bérgamo, na Itália. “Essa falta de estrutura legal é problemática. No entanto, existem operadores que oferecem viagens ‘responsáveis’.”

Uma simples busca por hospedagem no país invadido mostra que só a empresa francesa Accor, dona da Ibis, cadeia global de hotéis de categoria econômica, tem nove estabelecimentos operando entre Kiev e Lviv, com reservas abertas. O hotel Leopolis, em Lviv, fechou por dois meses em 2020, por causa da pandemia, mas seguiu sem interrupções desde o início do conflito. Muitas empresas tiveram de fazer adaptações, como transformar garagens em abrigos antibombas, mas seguem tentando operar com algum grau de normalidade. “Faço o que faço porque ajudo a preencher a lacuna entre o que lemos na imprensa e a realidade local”, diz Rowan Beard, gerente de turismo na Young Pioneer Tours, agência especializada em destinos pouco usuais, como Coreia do Norte, Somália, Afeganistão e Síria.

PIONEIRISMO - Batalha de Bull Run, nos EUA, em 1861: primeiros curiosos
PIONEIRISMO - Batalha de Bull Run, nos EUA, em 1861: primeiros curiosos (Hulton Archive/Getty Images)

Há, evidentemente, ideias fora do lugar. Visitar locais onde brotam conflitos armados para testemunhar uma violência abjeta não se compara a conhecer museus que relembram, de forma didática e profilática, os impactos de conflitos passados. Melhorar as relações humanas, sem bombas, é que deixaria essas memórias onde elas merecem estar: no passado.

Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837

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Fonte: Veja

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