É claro que não existe comparação entre o líder de uma democracia, com todos os mecanismos de checagem e controle do poder, e um pretendente a czar de um novo império russo.
Mas não deixa de dar medo a convergência de fatos: enquanto Vladimir Putin mudava da sólida concretude do poder total para um estado de alta instabilidade depois do levante de seu protegido, Ievgueni Prigozhin, Joe Biden parecia cada vez mais distanciado da realidade. Em 24 horas, disse duas vezes que Putin “está perdendo a guerra no Iraque”. Ontem, no fim de uma entrevista para a televisão, ainda ao vivo, levantou-se e saiu perdido pelo cenário.
Pode ser apenas um tropeço, coisa de pessoa idosa que passou anos falando de um assunto – o Iraque – e derrapa de volta para ele volta e meia. Pode ser também um sinal de stress, com a história de suposta corrupção em associação com o filho, Hunter, ficando cada vez mais complicada.
Mas quem quer ver um presidente americano, a superpotência hegemônica, se confundir tão repetidamente? Não dá para ficar tranquilo, ainda mais num momento como esse, mesmo considerando-se que os Estados Unidos já tiveram outros presidentes sem o controle total de suas funções cognitivas: Woodrow Wilson, que sofreu um AVC em 1919 e e se tornou gravemente incapacitado, com sua mulher, Edith, assumindo nos bastidores o papel de “presidente secreta”, e provavelmente Ronald Reagan, já com os primeiros sintomas de Alzheimer no fim de seu segundo mandato.
Grandes líderes da história recente governaram até idade avançada. O titânico Winston Churchill assumiu o último governo aos 77 anos – e não foi nada bem. Teve uma série de AVCs e relutou um ano até apresentar a renúncia. Charles de Gaulle tinha a mesma idade, 78 anos, quando deixou o governo, vencido por um plebiscito sobre um assunto banal que perdeu. Um ano antes, o eleitorado francês o havia apoiado maciçamente nas urnas, assustado com o quebra-quebra geral de Maio de 1968. De Gaulle morreu um ano depois da renúncia.
Aos 80 anos, Joe Biden bate ambos.
Os novos tropeços de Biden coincidem com a situação escaldante na Rússia, de uma gravidade infinitamente maior.
Misturando suspeitas com base em fatos estranhos e informações plantadas pela inteligência ucraniana para aumentar a sensação de instabilidade no país invasor, corre a boataria de que o verdadeiro Putin não apareceu ao vivo desde o dia do levante de Prigozhin.
“A viagem de Putin ao Daguestão foi definitivamente feita por um dublê”, garantiu Andri Yusov, da inteligência militar ucraniana, invocando a do uso de sósias, para confundir assassinos em potencial, que remonta ao tempo de Stálin.
A viagem feita na quarta-feira realmente contraria tudo o que se vê sobre Putin desde a pandemia de covid: ele circulou junto ao público que o esperava em Derbent, capital da república caucasiana, apertou mãos e beijou as fãs mais próximas.
Ninguém pode ignorar a distância que Putin põe com interlocutores, usando a famosa mesa que parece uma ponte de tão grande ou salões do Kremlin que permitem um distanciamento de dezenas de metros. No auge da pandemia, só era possível chegar perto de Putin com teste de covid negativo e quarentena de duas semanas.
Não só os ucranianos plantaram dúvidas. O mais conhecido blogueiro militar, Igor Gilkin, um ultranacionalista que, como Prigozhin, acha Putin fraco demais na condução da guerra e agora o critica abertamente, escreveu o seguinte: “Uma pessoa remotamente parecida com o presidente (e sem exigir a quarentena de duas semanas para aparecer na presença do presidente) circulou em Derbent”.
Putin desenhando uma carinha sorridente na tela de uma feira de tecnologia em Moscou levantou a hipótese de que ele – ou seu sósia – perdeu a mão completamente.
Nada que esteja fazendo segura a boataria. A última: não só o general Serguei Surovikin, vice-comandante das operações de guerra na Ucrânia, está preso em Lefortovo, como também o seu segundo no comando, general Andri Yudin. Simpático ou não aos insurgentes, Surovikin, o General Armagedon que não correspondeu à reputação, era sempre elogiado por Prigozhin.
Mais espetacularmente, a CNN viu documentos de um grupo russo de oposição mostrando que Surovikin tinha um número de registro secreto no Wagner, como uma espécie de membro VIP. Atenção: mais trinta oficiais estavam na lista VIP. Seria uma conspiração de tirar o fôlego.
Os “desaparecidos”, segundo a mídia ucraniana, incluem ainda o chefe do estado-maior das Forças Armadas, general Valeri Gerasasimov, um dos inimigos cuja cabeça Prigozhin pedia. O nome de Gerasimov, colocado no comando direto da guerra, não aparece nos meios de comunicação controlados pelo Kremlin desde o último dia 9.
Imaginem o que significaria se realmente os dois principais comandantes da “operação militar especial”, Gerasimov e Surovikin, tivessem sido expurgados.
“Uma atmosfera de suspeição envolve o estado-maior”, disse uma fonte russa ao Kyiv Post, acrescentando que assessores de Gerasimov, tal como próprio general, estão sendo acusados de vacilar e errar quando Prigozhin chegou tão perto de ameaçar Moscou diretamente.
Nesse mundo de boatos, segredos e informações manipuladas, corre até a mãe de todas as teorias conspiratórias: Putin e Prigozhin estavam combinados e armaram tudo para abrir caminho ao expurgo que virá. Ou “mostrar aos governos ocidentais que a alternativa a Putin é muito pior do que ele”, segundo Rebekah Koffler, que trabalhou em órgãos da inteligência americana e faz sucesso em canais da direita americana como especialista em assuntos russos.
O conspiracionismo grassa quando faltam informações concretas e um acontecimento transcendental como uma rebelião interna termina de maneira suspeita, com o principal responsável solto, embora talvez não tão leve, na vizinha Belarus.
Como Putin poderia punir militares russos por negligência enquanto o autor do golpe foi, na prática, castigado com um leve tapinha na mão, tendo saído de Rostov, a cidade que ocupou, aos aplausos e gritos de “Wagner, Wagner”?
Como diria Joe Biden, a situação lá pelos lados do Iraque continua bem complicada.
Fonte: Veja