Em 2 de junho de 1953, 27 milhões de pessoas assistiram pela televisão, no Reino Unido, à cerimônia de coroação da rainha Elizabeth II — havia dezessete pessoas por aparelho, na infância das transmissões ao vivo, ainda em preto e branco, sem cores. Neste sábado, 6 de maio, é certo que bilhões de pessoas, em todo o mundo, acompanharão de suas casas a investidura do rei Charles III, exatos setenta anos depois da celebração materna. A medir pela quantidade de gente que seguiu (à distância) o féretro de Elizabeth, em setembro do ano passado — um contingente de 4 bilhões de terráqueos —, não seria exagero dizer que, a não ser que se esteja em Marte, será impossível escapar das imagens enviadas a partir das ruas lotadas de Londres. Sem levar em conta, é claro, o infinito universo das postagens em redes sociais, entre o mero registro, a piada e orgulho de testemunhar um capítulo histórico. Por todas as razões, trata-se, de fato, de um momento ímpar que exerce profundo fascínio em todo o planeta.
No trono, o futuro de Charles III, contudo, parece caminhar em direção oposta à popularidade da casa dos Windsor, fenômeno que atravessa os séculos. Haverá em sua trajetória um extenso tapete vermelho de dificuldades. No aspecto pessoal, o menino de 4 anos que esperou sete décadas para virar monarca chega ao ápice de sua carreira encoberto por duas sombras simultâneas: a da própria mãe e a do filho William, o próximo na linha sucessória. Pesquisas de opinião pública reveladas recentemente mostram que, entre os membros do castelo, Charles tem 20% de aprovação ante 34% de William. Há ainda, de olho no que virá, um evidente nó geracional: 78% dos britânicos com mais de 65 anos apoiam a monarquia, mas entre os jovens de 18 a 24 anos o índice cai para escassos 32%. Some-se ao enfraquecimento da imagem da Casa Real (que já não faz sentido no século XXI, a não ser em seu aspecto simbólico) a figura um tanto insossa da nova majestade. Entre inconfidências e maledicências, ele viveu as últimas décadas sempre aos sobressaltos. Uma imagem desgastada pelo divórcio com a princesa Diana, cuja reputação ficou ainda mais reluzente depois da trágica morte em um acidente de carro, em agosto de 1997.
Reportagem especial na edição da semana esmiúça os desafios de Charles III a partir de agora. Como príncipe, entre uma viagem e outra, ele chegou a se posicionar a respeito de temas relevantes, como os cuidados com o meio ambiente, o zelo pelos indígenas e o respeito aos refugiados (no Brasil, em 1978, ensaiou uns desajeitados, mas simpáticos, passos de samba). Naquele tempo, podia emitir palpites, até porque não lhe restava muito mais a fazer, esmagado pelos protocolos e pela figura luminosa de Elizabeth. Coroado, será forçado em diversas situações ao silêncio obsequioso e a uma postura fleumática. Não cabe aos reis e rainhas interferir, ao menos publicamente, nas questões políticas do Reino Unido e da Comunidade de Nações, a Commonwealth, grupo de países que faziam parte do Império Britânico e ainda estão debaixo do guarda-chuva real. Mas qualquer passo em falso (leia-se um novo escândalo ou uma fala fora de lugar) pode acelerar a desintegração do bloco. Diante da nova condição, descortina-se para Charles III o drama pessoal revelado por ele próprio em um discurso na prestigiosa Universidade de Cambridge, quando tinha 30 anos. “O grande problema da minha vida é que realmente não sei qual é o meu papel. De alguma forma, preciso encontrar um propósito.” Encontrou finalmente, aos 74 anos. Se será bem-sucedido, só o tempo dirá.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840
Fonte: Veja