Contrariando o que Jesus Cristo nos ensinou lá nos primórdios quando nem éramos nascidos, adoramos atirar a primeira pedra. As redes sociais e os aplicativos de mensagens amplificaram isso de forma ilimitada.
Nos grupos de WhatsApp, massacramos o jogador de futebol que aparenta fazer corpo mole ou o técnico que se mostra teimoso por não aplicar aquilo que os torcedores acreditam ser o melhor para o clube que amam. Dos realities shows, então, saem alvos deliciosos. Afinal expõem sua vida para deleite de milhões de línguas afiadas e puritanas sem pecado algum para olhar para o próprio umbigo.
Tivemos ensinamentos terríveis para pararmos com esse comportamento.
O pior deles, sem dúvida, é da Bruxa do Guarujá, quando a falsa notícia de que uma mulher estava sequestrando crianças na Baixada Santista levou à morte, por linchamento, de uma moradora que teve o azar de se parecer com um retrato falado inventado por alguém que não tinha a menor noção do mal que causaria a uma família.
Outro grande exemplo foi da Netflix.
Um Pesadelo Americano usa três episódios para narrar a história real de Denise Huskins e Aaron Quinn.
Numa manhã de 2015, Aaron liga para a polícia com uma voz extremamente calma, dizendo que sua namorada tinha sido sequestrada durante à noite.
Ele disse que homens invadiram o quarto, vestidos com roupas de mergulho. Ele foi drogado, teve as mãos amarradas e os olhos vendados com óculos de natação com lentes escuras.
Antes disso, ele viu um clarão e miras laser de um suposto revólver riscando o quarto de medo.
Foi obrigado a tomar uma substância sedativa e, enquanto adormecia, antes de ter um fone de ouvido colocado sobre as orelhas, ouviu a namorada passar pela mesma situação.
Enquanto era levada da casa, sonolento, ele ouvia uma música que parecia sons de sinos de vento.
O comunicado a polícia demorou muitas horas para ser feito. Tempo de colocar Aaron como suspeito.
Ainda mais quando disse que não comunicou a ocorrência antes porque o invasor avisou que ele estaria sendo monitorado e que, se avisasse a polícia, Denise seria morta.
Ele pretendia cumprir a determinação do bandido, mas o resgate exigido, de US$ 15 mil era muito mais que os US$ 3.500 que ele tinha na conta.
O documentário é contado através de entrevistas atuais e áudios e imagens de câmeras de segurança da época da denúncia.
Os produtores construíram uma obra fantástica e viciante.
Não consegui largar a minissérie até chegar ao fim.
Maratonei e vivi todas as emoções que eles queriam que eu vivesse.
Eu suspeitei da história de Aaron. Eu acreditei na história de Aaron. Eu me surpreendi.
Eu assisti incrédulo a tudo o que os realizadores arremessavam em minha mente atônita.
A história é real. Então, se não conhece nada sobre ela, fique assim até terminar o documentário. Não sei se haveria tanto prazer em assisti-lo com spoilers.
A cada ato você é levado como uma marionete a ter conclusões que elas querem que você tenha.
A polícia não acredita no rapaz.
E, quando ele parecia já estar sendo levado a uma confissão por assassinato, surge uma prova de vida de Denise.
Um áudio com a voz dela que, apesar de estar num cativeiro, estava bem. (!!!!!??)
A voz calma, a exemplo da que Aaron apresentou quando denunciou o crime na manhã seguinte a suposto sequestro, joga mais uma pitada de dúvida.
Seria ela a vilã, uma tentativa de incriminar o namorado?
O rapaz tentava voltar com a ex-namorada e Denise flagrou as mensagens do celular dele bem na noite em que teria acontecido a invasão.
Um Pesadelo Americano e Garota Exemplar
Um ano antes dos fatos, os norte-americanos tinham sido brindados com o filme “Gone Girl”, aqui, exibido como “Garota Exemplar”, com Bem Affleck e Rosamund Pike.
Na obra, inspirada no romance homônimo de Gillian Flynn, a mulher simula o sequestro para incriminar o marido traidor.
Pronto.
A loira Denise é tão linda quanto Rosamund Pike. E Aaron foi, desde sempre um aproveitador da boa forma e da fama de capitão da equipe de futebol do colégio para passar o rodo geral. Um Bem Affleck total.
A semelhança com a ficção fica ainda maior quando a imagem da mulher surge em câmeras de segurança, andando, aparentemente sem nenhum tipo de lesão, para a casa do pai a mais de 600 km de onde teria sido levada.
Isso foi 48 horas após o rapto e ela disse que foi libertada pelo sequestrador.
Toda a imprensa comprou a ideia da polícia. Ela e o namorado passaram a ser, oficialmente, investigados por fraude processual.
Preciso parar por aqui.
Tudo o que eu disser a partir de agora pode estragar o prazer imenso que tive em assistir a Um Pesadelo Americano.
Uma história real que tem heróis improváveis, bandidos em papéis distorcidos e muita, mas muita informação para digerir e para nos fazer pensar sobre o quanto o ser humano ainda precisa de aperfeiçoamento.
Um Pesadelo Americano é o sonho de todos.
Vários alvos desfilam pela tela testando nossa perspicácia e nosso poder de resignação.
Por isso, enquanto assiste, segure a pedra antes de atirá-la em qualquer que seja o personagem mostrado.
O alvo certo pode não ser aquele em que você vai mirar.
Assista e aprenda.
Todo mundo é sujeito a errar.
Na ficção, nossos julgamentos não alcançam os sentimentos dos personagens.
Eles não vão sofrer com isso.
Na vida, sim.
Pessoas são feridas por palavras.
E condenadas sem qualquer direito à defesa.
Tenham elas agido corretamente ou não.
Somos os juízes e os carrascos.
Coitado de quem entrar na nossa mira.
Não há mais Jesus vivo entre nós para impedir o apedrejamento.
Que Deus nos perdoe!
Fonte: primeirapagina