A caixa chegou por Sedex num embrulho comum e sem graça cheio de informações postais. No entanto, assim que rompi a fita lacre que unia as abas marrons, comecei a ficar fascinado.
Uma caixa vermelha se mostrou. A cor do sangue sempre me chamou a atenção. Dentro dela, um pequeno ramo de flores secas com um odor característico do romance.
Uma carta convidava a adentrar no mundo de David Correia, um dono de cartório do interior de Mato Grosso, que estreia na literatura do horror. O livro Fascínio, de 427 páginas, deitado no fundo do embrulho, traz, na capa, uma modelo vestida de noiva.
O vestuário, apesar de remeter ao sonho de muitas mulheres, tem detalhes que mostram o contrário.
A obra conta a história de Guilherme, um escritor de livros de terror que é suspeito pelo desaparecimento da esposa.
Inocentado, ele usa os fatos para escrever um best seller. Quando está para se casar novamente, uma série de assassinatos acontecem ao seu redor. Ao mesmo tempo em que passa a ser assombrado por visões da mulher desaparecida.
“É uma história de superação”, disse o autor numa conversa por videoconferência comigo. “Uma mudança de vida necessária. E se a pessoa quer mudar, é porque o passado assusta. Então, coloquei esse elemento sobrenatural da mulher vestida de noiva para representar esse medo na vida do Guilherme”, completou David.
E ele não poupou sangue pra rechear as páginas:
“Teve até uma pessoa que leu o rascunho e me aconselhou a tirar uma parte por achar que estava muito violenta. Eu não aceitei porque, realmente, quis chocar para que as pessoas possam refletir sobre a maldade do ser humano”.
David Correia
Apesar do livro ser descrito no material de divulgação como um terror psicológico, subgênero que explora o pior do ser humano, é possível encontrar o gore e, também, o body horror na obra.
David chegou a comparar sua obra com o filme “A Substância”, com Demi Moore. Clique e leia a crítica aqui.
Mas enquanto a personagem principal do filme tinha a parte física como obsessão que levou às deformações corporais, no livro, são as condutas morais de Guilherme que fazem com que a noiva apareça mais ou menos deformada, pútrida. Algo que também acontece com ele.
E Guilherme não é nenhum herói. Ele é um ser humano como qualquer outro. Com virtudes e defeitos.
O maior deles, a vaidade. Ele é viciado em exposição de sua imagem. Ao ponto de sentir falta quando deixa de ser incomodado por um stalker. Este é só um elemento de vários que compõem o livro.
Uma homenagem velada Misery – Louca Obsessão. Obra de Stephen King que David mais admirada.
O mestre do terror coloca um escritor vítima de um acidente de carro aos cuidados domésticos de uma enfermeira. Parecia sorte ser salvo no meio da neve por uma profissional da saúde. Acontece que a mulher é fã número 1 da personagem que o acidentado quer matar em seu próximo livro. Não precisa nem dizer o quanto ela vai se esforçar para convencê-lo do contrário. Leia mais sobre Misery aqui – “A Louca Obsessão de Verity”.
Se a obra espetacular de King se encerrou num único livro, David Correia vai fazer de seu romance de estreia uma trilogia. A segunda parte deve ser lançada em abril do ano que vem e prometer ser ainda mais pesada que a primeira.
Estrear na literatura é um ato de coragem. No gênero terror, então, mais ainda. Na semana passada, a 6ª edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” concluiu que, pela primeira vez na história da enquete, a maioria dos brasileiros não leem livros. 53% dos entrevistados não leram nem mesmo parte de uma obra nos três meses anteriores à pesquisa.
Números que não desanimam o mato-grossense de 40 anos. Formado em direito, David Correia disse que sempre teve facilidade de escrever, mas precisava focar na carreira antes de realizar o sonho de escrever um livro.
Estudioso, com 17 pós-graduações concluídas, passou num concurso público e conseguiu a concessão do cartório de notas de Sapezal, a 498 km de Cuiabá, onde cresceu. Se passará de notário a notável, como André Vianco, Raphael Montes e César Bravo, expoentes da literatura do horror nacional, só o tempo dirá.
Mas, assim como Guilherme busca a superação em seu livro, David faz o mesmo. Sem pensar nas dificuldades como impedimentos.
“Temos de colocar a sementinha para que as pessoas voltem a ler. Além disso, temos de fazer o que temos vontade. Fazer o que nos faz bem”, conclui.
David Correia
David lançou o livro em setembro deste ano em grande estilo. Na Bienal do Livro em São Paulo, com direito a sessão de autógrafos no estande da Editora Inverso. No mês passado, fez o lançamento em Brasília.
E neste sábado, 30 de novembro de 2024, volta a Cuiabá para falar sobre o livro e atender os fãs do terror na livraria Leitura a partir das 19h. Pena que não conseguirei ir, mas fico torcendo à distância.
Como faz bem termos mais mentes diabólicas do bem libertando monstros fictícios enclausurados.
Sucesso, David! Que Fascínio cause nas pessoas o sentimento do título de sua primeira obra. E que sua nova carreira seja tão longa quanto a caminhada de uma noiva até o altar.
Fonte: primeirapagina