Todos os dias somos bombardeados com notícias de pessoas que ficaram deformadas após procedimentos de estética. Programas televisivos trazem realities de médicos consertando desastres cirúrgicos. Uma roda que não para nunca de girar.
A busca por estar dentro de padrões de beleza impostos pela sociedade é infinita e despreza quaisquer tipos de riscos. Até mesmo procedimentos experimentais.
Com esse mote, a diretora francesa Coralie Fargeat, também roteirista, nos trouxe o melhor filme de terror do ano.
Uma crítica inteligentíssima que usa e abusa das imagens para transmitir mensagens diretas. Na cena inicial – uma das melhores que já vi – a diretora usa um único cenário, um pedaço de chão, para estabelecer a conexão emocional do público com a personagem.
Mãos masculinas preparam um pedaço da calçada da fama de Hollywood. Aos poucos, a estrela e o nome da atriz Elizabeth Sparkle são cimentado na história do entretenimento.
Seguem o glamour das fotos da inauguração, a paixão com as selfies dos fãs e o esquecimento. Com o passar do tempo, rachaduras e sujeira mostram como a adoração das pessoas tem prazo de validade.
Imagino o quanto deve ser difícil lidar com essa queda. Aos 50 anos, o trabalho de Elizabeth (Demi Moore, de Ghost) se resume a um programa televisivo de ginástica.
Ela e figurantes suam em roupas de academia para ajudar as pessoas a perderem peso em casa. Mas, para o executivo da emissora, vivido por um Dennis Quaid desprezível, Elizabeth já não atrai mais tantos olhares.
A cena em que ele vomita essa frase sexista e etarista em direção à sua ex-estrela é filmada de forma nojenta para que o público tenha a representação visual do que essas palavras representam.
Demitida e sem saber lidar com a ausência da fama, ela vê, em seu caminho pra casa, um outdoor com seu rosto sendo rasgado. Mais uma mensagem visual. Você será substituída porque está velha para o show business aos 50 anos.
Desesperada para recuperar seus status, Elizabeth conhece um enfermeiro que pode mudar a situação. Ele oferece à atriz um novo tratamento de rejuvenescimento, totalmente experimenta.
Compra-lo exige uma operação secreta. Qualquer pessoa em sã consciência correria do produto depois de ver o local onde ele é estocado. Mas ela está cegam refém do que as pessoas querem dela.
A partir daí passamos a entender o porquê esse filme não entra na categoria de drama e sim, de terror.
Mais especificamente, um body horror ou horror corporal, subgênero que explora mutilações e deformações do corpo humano com o objetivo de chocar. E você vai se chocar!
Ao ver o que está sendo mostrado na tela, vai ser capaz de sentir o mesmo em seu corpo. Após tomar a substância do título do filme, Elisabeth tem as suas costas rasgadas para dar à luz uma espécie de clone: Sue (Margaret Qualley), uma versão de si 30 anos mais jovem.
Enquanto Sue se admira no espelho, Elizabeth permanece desacordada no chão do banheiro. Ambas estão nuas. E a nova personagem tem de costurar as costas de sua matriz. Afinal, vai precisar dela.
Cada furo na pele, cada passada de linha são mostrados. Pra gente pensar mesmo. Vale toda essa dor? Vale todo esse sacrifício? É isso que eu realmente quero pra ficar mais bonito, mais jovem?
Enquanto uma vive a vida, a outra entra numa espécie de hibernação. E o sofrimento não para aí. A substância tem um efeito temporário. E exige um revezamento. A cada sete dias, as mulheres precisam trocar de papéis.
Enquanto uma vive a vida, a outra entra numa espécie de hibernação, sendo alimentada por um produto fornecido pela empresa ou por um líquido retirado diretamente da espinha dorsal com uma agulha grossa e comprida.
Qualquer atraso no prazo da troca, traz consequências irreversíveis para as pacientes. Quer dizer, paciente. No singular mesmo. Porque a empresa responsável pelo produto deixa claro que não existem duas pessoas.
Elizabeth e Sue são a mesma. Só os corpos são diferentes. Na teoria. A prática é bem diferente. Como lidar com essa montanha-russa na vida?
Numa semana, você amarga a solidão e o desprezo, inclusive do jovem com que fez amor na semana anterior que estava com um corpo diferente, e na outra, você é quem sempre seria se o tempo não existisse.
A Substância ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes deste ano. E só não vai agradar a todos os públicos porque, ao final, a diretora usa o exagero para marcar as mensagens que quer passar.
O banho de sangue desses procedimentos estéticos desnecessários entra literalmente na história. E um monstro surge implorando para que as pessoas o vejam como um ser humano e não como uma aberração.
Quantas celebridades vítimas de procedimentos errados não se sentem assim? Quantas pessoas não se sentem assim por envelhecer? Gosto demais e sou defensor do cinema de entretenimento.
Não acho que todo filme precisa deixar uma mensagem de autoajuda para mudar a vida de alguém. Mas quando há uma obra capaz de me fazer sair do cinema com a cabeça cheia de pensamentos, valorizo demais. E essa Substância não sai da minha cabeça.
Tomara que possa ser injetada em outras, principalmente, as que pensam que beleza se constrói na sala de cirurgia.
Assista abaixo o trailer de A Substância:
Fonte: primeirapagina