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Estamos no ano 166 d.C. O exército romano, sob liderança do senador Avídio Cássio, cerca a rica cidade de Selêucia (na região da atual Bagdá, no Iraque). Selêucia rapidamente se rende ante o poderio de Roma, mas os homens de Cássio iniciam um saque de grandes proporções mesmo assim.
Um dos soldados invade o templo do deus Apolo e abre uma antiga arca. Reza a lenda que esse ato de sacrilégio fez com que saísse do baú um vapor pestilento, o qual “poluía tudo com contágio e morte, desde as fronteiras da Pérsia até o rio Reno e a Gália [França]”, segundo cronistas da época.
Assim teria começado a Peste Antonina – provavelmente uma pandemia de varíola, que correu o mundo antigo e teria exterminado 7 milhões de pessoas, ou 10% da população do Império Romano, na época o Estado mais populoso e poderoso do planeta.
Jogar a culpa da tragédia no desrespeito a Apolo casava bem com a cultura greco-romana. Uma epidemia devastadora, causada por um sacrilégio contra esse mesmo deus, é justamente a cena de abertura do mais famoso “best-seller” dessa cultura, a Ilíada, poema épico atribuído ao grego Homero.
Mas essa associação não é inteiramente fictícia; ela pode ter base concreta. Novos estudos sobre os micróbios e o clima do passado têm revelado que os romanos tiveram de enfrentar forças ainda mais insidiosas e destrutivas que os deuses do Olimpo.
Além dessa primeira pandemia, que realmente ocorreu, o Império Romano sofreu com mudanças climáticas e, ironicamente, foi vítima de seu próprio sucesso, que o levara às regiões mais distantes da Ásia e da África – mas acabou tornando Roma vulnerável a uma sucessão de golpes do destino, que levaram seu poderio à fragmentação e ao desaparecimento.
Essa nova visão sobre o declínio e a queda do Império Romano não descarta, é claro, a relevância dos inimigos externos (principalmente os chamados bárbaros, em geral tribos guerreiras que falavam línguas germânicas, como as ancestrais do alemão e do inglês de hoje).
Também não ignora as picuinhas e os duelos mortais que devastavam a elite romana de vez em quando, enfraquecendo ainda mais o domínio dos Césares. Esses fatores foram importantes – e podem ter sido alimentados pelos demais, criando uma espiral de desastres.
Mas a nova abordagem histórica de Roma admite a profunda dependência que as civilizações antigas, mesmo as mais sofisticadas, tinham em relação ao seu ambiente natural – algo que, num mundo de emergência climática e pandemias como o nosso, se torna cada vez mais familiar.
Do ótimo ao terrível
Os desastres ocorridos a partir de 166 d.C. talvez tenham sido ainda mais dolorosos porque vieram na esteira de alguns séculos de bonança, durante os quais as divindades pareciam ter abençoado as vastas terras regidas por Roma.
De fato, de acordo com vários estudos paleoclimatológicos (que reconstroem o clima do passado), os romanos expandiram e consolidaram seu domínio numa época extremamente favorável para a agricultura.
Esse período foi tão bom que recebeu a designação oficial de “ótimo”. Para ser mais exato, o de Ótimo Climático Romano (a palavra, nesse contexto, tem o sentido de “condições ideais”).
Embora a Itália e as regiões vizinhas da bacia do mar Mediterrâneo, que sempre foram o núcleo mais importante da civilização romana, sejam notórias pela relativa instabilidade climática, com presença intermitente de grandes secas e invernos severos, essa fase “ótima” se caracterizou pela constância de chuvas relativamente abundantes, e temperaturas um pouco mais altas que a média dos milênios anteriores.
Um estudo recente, assinado pela geóloga Karin Zonneveld, da Universidade de Bremen, e pelo historiador Kyle Harper, da Universidade de Oklahoma, reconstruiu as condições climáticas desse período e dos séculos que o seguiram. Os pesquisadores conseguiram fazer isso com alta precisão: sua margem de erro é de apenas três anos.
Eles analisaram sedimentos do fundo do Mediterrâneo, obtidos na região de Tarento, no sul da Itália. Os sedimentos contêm restos de dinoflagelados, um grupo de organismos unicelulares com grande diversidade de espécies, cada uma adaptada a diferentes condições de temperatura e nutrientes na água do mar.
Bastou datar as camadas de sedimentos e combinar a datação com as idas e vindas das diferentes espécies de dinoflagelados para saber o que estava acontecendo com o clima italiano ao longo dos séculos.
O estudo concluiu que o Ótimo Climático Romano manteve o tempo relativamente úmido e quente na região entre mais ou menos 200 a.C. e 130 d.C. É justamente a fase em que os exércitos romanos foram conquistando cada vez mais territórios Mediterrâneo afora, da Espanha à Ásia Menor (atual Turquia). A supremacia deles se tornou tão incontestável que eles passaram a chamar a bacia de Mare Nostrum: “nosso mar”.
Esse processo começou quando Roma ainda era uma república, com eleições e algumas formas modestas de participação popular no governo, e chegou perto do auge quando o sobrinho-neto e herdeiro do general Júlio César tomou para si o poder supremo, assumindo o título de Augusto (algo como “majestoso”).
A dinastia iniciada por Augusto, o primeiro imperador romano propriamente dito, não durou muito: acabou apenas cinco décadas depois da morte dele em 14 d.C. (quando Jesus de Nazaré ainda era apenas um jovem carpinteiro). Mas iniciou uma tradição autocrática forte, que se mantinha incontestável quando o baú zicado de Apolo supostamente foi aberto em Selêucia.
Na época os domínios de Roma, que iam da fronteira entre a Inglaterra e a Escócia até a Síria, eram governados conjuntamente por uma dupla de imperadores, Lúcio Vero e Marco Aurélio, ambos filhos adotivos do chefão anterior, Antonino Pio (daí o nome “Peste Antonina”). A vida dentro dessas fronteiras costumava ser próspera e pacífica. Raramente algum inimigo ousava desafiar o imperador para valer.
E até camponeses livres de províncias distantes, como a Bretanha (basicamente o território inglês e galês de hoje), conseguiam ter acesso a bens de consumo, como um jogo de jantar italiano feito com cerâmica de primeira, relata o arqueólogo britânico Bryan Ward-Perkins, da Universidade de Oxford. É um indício de que esse era um mundo “globalizado”, conectado pelo comércio de longa distância.
Para alcançar esse sucesso, é claro que Roma podia contar com exércitos profissionais muito bem organizados, estradas planejadas com esmero e uma engenharia civil de dar inveja a muitas prefeituras por aí. Mas a verdadeira base do mundo romano, assim como a de quase qualquer outra civilização antiga, era a produtividade agrícola.
E as condições climáticas ideais até 130 d.C., junto com o crescimento de uma espécie de “agronegócio” (turbinado por trabalho escravo em grandes fazendas), favoreceram uma explosão do cultivo de cereais, em especial o trigo e a cevada.
Era o suficiente para abastecer com regularidade centenas de milhares de soldados estacionados nas fronteiras do Império, ou para oferecer de graça trigo (mais tarde, pão, azeite e até carne de porco) a cerca de 200 mil moradores da “região metropolitana” de Roma.
Um feito realmente impressionante. Mas as lavouras da Antiguidade eram muito mais frágeis, com menos recursos tecnológicos, do que a agricultura do século 21.
Além disso, os romanos se transformaram numa superpotência dos cereais incorporando terras cada vez mais marginais (como encostas de morros na Itália, ou a beirada do deserto no Oriente Médio) em suas zonas cultivadas. “Dia a dia eles empurram as florestas, fazendo-as recuar montanha acima e ceder seu lugar à terra cultivada”, escreveu o poeta Lucrécio, que morreu por volta do ano 55 a.C.
O problema é que essas são justamente as áreas mais vulneráveis a alterações no clima. Bastava esfriar alguns graus ou deixar de chover alguns dias por ano – e, no caso do clima do Mediterrâneo, não é incomum que essas coisas venham juntas – para que as plantações “de fronteira” se tornassem inviáveis, e até as áreas mais propícias para o cultivo passassem a produzir bem menos. Em suma, o lado agrícola do império tinha bases frágeis.
Essa é a primeira parte do problema. A segunda, relata o historiador americano Kyle Harper (o mesmo do estudo citado no começo deste texto) em seu livro The Fate of Rome (“A Sina de Roma”, não lançado no Brasil), foi consequência do próprio sucesso romano.
Com a enorme expansão do império, e sua inserção em rotas comerciais de longa distância, o povo de Roma passou a estar em contato direto ou indireto com quase todas as regiões do Velho Mundo.
Os navios de mercadores romanos desembarcavam na Índia e na Etiópia todos os anos, por exemplo. Em ambos os lugares, arqueólogos já encontraram muitas moedas cunhadas pelos Césares. Na época de Marco Aurélio, a corte imperial da China recebeu emissários de Roma (os textos chineses apelidaram o imperador ocidental de “An Tun”, adaptando a última parte de seu nome completo em latim, Marcus Aurelius Antoninus).
E aquela mania de botar gladiadores para brigar com leões, girafas e rinocerontes no Coliseu era alimentada por contatos comerciais com a África subsaarariana, que eram intermediados pela Núbia (mais ou menos o atual Sudão) e pelos funcionários provinciais do Egito – dominado por Roma desde os tempos de Augusto.
Tudo isso significava um intenso e constante deslocamento de bens, pessoas – e micróbios. Doenças infecciosas de três continentes passaram a ter imensa facilidade para seguir todos os caminhos que levavam a Roma.
Do ponto de vista epidemiológico, o Império Romano era uma bomba-relógio. Ela explodiu pela primeira vez com a Peste Antonina.
E isso aconteceu no pior momento possível. A Peste Antonina estourou poucas décadas após o final do Ótimo Climático Romano, numa fase que, segundo o estudo paleoclimático de Harper, foi caracterizada por diversos pulsos de resfriamento e diminuição da chuva.
A sociedade romana já enfrentava uma crise na produção e distribuição de alimentos quando o vírus da varíola, talvez vindo de mamíferos africanos, chegou ao império.
O estrago da pancada epidemiológica teria sido multiplicado pela dificuldade de levar recursos às populações afetadas, o que impulsionou a mortalidade. Era a primeira pandemia da época imperial. Mas não seria a última.
De Cipriano aos hunos
A Peste Antonina durou até o ano 180 d.C. Após uma década e meia de horror, seus efeitos mais graves começaram a se diluir, provavelmente porque quem sobreviveu ganhou imunidade à doença.
A dinastia de Marco Aurélio chegou ao fim, mas uma nova família de imperadores conseguiu se instalar no poder sem muitas mudanças na maneira como o império costumava ser governado. Não foi exatamente fácil, mas as instituições romanas aguentaram esse primeiro tranco.
A coisa mudou significativamente de figura, porém, no século seguinte. Mais uma vez, os sedimentos marinhos de Tarento registram uma queda abrupta da temperatura e da umidade, que começa por volta do ano 245 d.C. e se prolonga por pelo menos três décadas. Aí, no ano 249, surge outra pandemia que devasta a população imperial.
A doença ficou conhecida como Peste de Cipriano, por causa do santo de mesmo nome, então bispo da cidade de Cartago (atual Tunísia). Cipriano foi um dos responsáveis por registrar a chegada da moléstia.
Há grandes dúvidas sobre o causador da pandemia, mas uma possibilidade é que se tratasse de um parente do atual vírus Ebola, por causa da presença de sintomas hemorrágicos severos. “Um fogo que se origina na medula dos ossos fermenta até causar feridas na goela; os olhos, injetados de sangue, estão em chamas; em alguns casos, os pés ou outras partes dos membros são destruídos pelo contágio da doença putrefata”, descreve Cipriano em um de seus sermões.
A Peste de Cipriano durou até 262 d.C., e causou enorme destruição. Não há dados confiáveis sobre o número de vítimas, mas estima-se que, no pior momento da epidemia, ela tenha matado 5.000 pessoas por dia em Roma (teria superado, por exemplo, o pior momento da Covid-19 no Brasil, que chegou a 4.211 óbitos por dia).
A partir daí, o próprio corpo do Império Romano parecia estar se desfazendo. Iniciou-se a chamada Crise do Terceiro Século, na qual dezenas de imperadores se revezaram no trono em reinados de curta duração.
O território imperial se fragmentou em três partes: o Império Gálico, que englobava a Bretanha e a Gália; o Império Palmireno, que correspondia ao Oriente Médio romano, incluindo o Egito; e um resto dos domínios originais, ainda com sede na Itália.
Em mais uma correlação bastante sugestiva, a Crise do Terceiro Século só começa a se resolver mais ou menos na mesma época (a década de 270 d.C.) em que o clima vai ficando mais ameno – embora nem de longe tão favorável quanto no auge do império.
Generais oriundos de famílias modestas da atual Europa Oriental passam a tomar o poder e reunificam os territórios romanos. Considera-se que esse processo é concluído durante o governo de Diocleciano, nascido na atual Croácia, que se tornou imperador no ano 284.
O império de Diocleciano e seus sucessores, porém, era bem diferente do de Augusto ou de Marco Aurélio. Por um lado, ele expandiu maciçamente a burocracia e o exército, aumentando o tamanho do Estado romano – que antes era menos do que “mínimo” para os padrões contemporâneos.
Para se ter uma ideia, nem funcionários para lidar com coleta de impostos e obras públicas Roma tinha antes de Diocleciano. Era quase tudo terceirizado, para as cidades e províncias dominadas ou para o setor privado. Calcula-se que apenas cerca de 1.000 pessoas fossem “funcionários de carreira” civis do Império nos séculos I e II d.C. (Diocleciano e seus sucessores ampliam a burocracia civil para um total entre 50 mil e 100 mil funcionários).
Ao mesmo tempo, o imperador se tornou um governante ainda mais absoluto, com posição muito acima dos demais mortais. Todos tinham de se prostrar na presença dele.
A coisa parecia estar dando certo. De Diocleciano em diante, Roma passou por quase um século de relativa prosperidade. As mudanças ambientais, porém, já preparavam outra cilada para o império.
Há indícios de que, por volta de 350 d.C., condições climáticas desfavoráveis na Ásia Central empurraram um grupo de ferozes cavaleiros para o oeste. Conhecidos como hunos e descritos por Harper como “refugiados climáticos armados e a cavalo”, eles se lançaram contra os godos, grupos germânicos que moravam perto da fronteira romana do Danúbio. Os godos, por sua vez, para escapar dessa ameaça, pediam para ser acolhidos pelo império.
Diversas medidas desastradas de funcionários imperiais, inclusive maus-tratos e tentativas de escravizar os godos, acabaram levando a uma batalha entre eles e os romanos em Adrianópolis, na atual parte europeia da Turquia, no ano de 378.
Até 20 mil soldados de Roma teriam morrido nessa derrota para os germânicos, incluindo o imperador, Flávio Júlio Valente, que governava a metade oriental do império.
Para aceitar um tratado de paz, os godos ganharam o direito de se instalar dentro do território imperial de forma semi-independente, como se fossem donos de pequenos feudos.
Depois disso, a parte ocidental do território romano nunca mais conseguiu controlar totalmente a entrada de bárbaros germânicos. Do ano 400 em diante, cada vez mais tribos passaram a chegar sem ser convidadas, criando seus próprios domínios, ainda que, no papel, dissessem ser vassalas do imperador.
No fim das contas, os verdadeiros senhores da região passaram a ser os reis bárbaros, e o Império Romano do Ocidente deixou de existir em 476 d.C., quando um desses senhores da guerra depôs o último imperador, Rômulo Augústulo.
O contra-ataque
A metade oriental do império, com sede em Constantinopla (atual Istambul), resistiu melhor ao avanço dos bárbaros. Era mais rica, mais populosa e com uma capital fortemente defendida por novas e sofisticadas muralhas e pelo mar.
O Império Romano do Oriente conseguiu se recuperar tão bem que, no século seguinte, chegou perto de reconquistar boa parte do terreno perdido para os bárbaros no Mediterrâneo ocidental.
O arquiteto do contra-ataque atendia pelo nome de Justiniano e era mais um membro daquelas famílias militares da periferia imperial (ele nasceu na atual Macedônia do Norte).
A partir do ano 533, os generais de Justiniano reconquistaram boa parte dos antigos territórios romanos no norte da África (com exceção do Egito, que nunca chegou a sair das mãos do império). Derrotaram ainda os godos, que tinham transformado a Itália em seu reino, e chegaram até a estabelecer uma província no sul da Espanha.
Na esteira dos sucessos militares, porém, as últimas desgraças ambientais e epidemiológicas a afetar o império estavam chegando a galope. Primeiro foi o “ano sem verão” de 536, provavelmente causado por diversas erupções vulcânicas maciças simultâneas que escureceram os céus e ajudaram a resfriar a temperatura do planeta.
Esse processo deflagrou o que se costuma chamar de Pequena Idade do Gelo da Antiguidade Tardia, que durou até o fim do século, com duros efeitos sobre as colheitas e a alimentação na Eurásia.
Mas a maior pancada veio poucos anos depois. Tudo indica que o resfriamento afetou populações de roedores selvagens asiáticos que eram o reservatório natural da bactéria Yersinia pestis. Trata-se da causadora da peste bubônica, o mesmo micróbio que causaria a Peste Negra séculos mais tarde.
Mas antes ela provocou a Peste de Justiniano, que devastou boa parte do Velho Mundo entre os anos de 541 e 549. Calcula-se que metade dos cerca de 700 mil habitantes de Constantinopla morreram da doença, e o micróbio chegou até mesmo a vilarejos isolados do interior da Inglaterra (que, ocupada por invasores germânicos, já tinha deixado de ser “Bretanha”).
Essa devastação, e não a queda do Império Romano do Ocidente, talvez seja o melhor marco para o início do que costumamos chamar de Idade Média. Justiniano sobreviveu à peste, mas ele e seus sucessores tiveram de recuar, em grande parte, do projeto de retomada imperial, e Constantinopla nunca mais foi tão poderosa. Era o fim do sonho romano de dominação global.
Fonte: abril