Em 1832, uma lei determinou a obrigatoriedade do curso superior para atuar na área da saúde. Só existiam duas faculdades de medicina no Brasil, uma no Rio de Janeiro e outra na Bahia. Todos os médicos precisariam passar por uma delas.
Foram criados três cursos: Medicina, farmácia e Partos. Quem se matriculava nesses cursos eram homens, já que uma mulher no ensino superior ainda era uma raridade (hoje, elas são a maioria, com 58% dos matriculados).
Pela lei, as mulheres podiam participar especificamente do curso de Partos, mas a pressão de uma sociedade machista era grande demais, impedindo quase todas de se matricular.
Quem quebrou esse tabu foi Marie Josephine Mathilde Durocher, a primeira mulher a receber o título de parteira no Brasil. Ela foi a primeira e única mulher matriculada do Curso de Partos em 1833, se formando em 1834.
Durocher nasceu na França em 1809, mas veio para o Brasil bem nova, com sete anos. Quando ela começou a estudar para virar parteira, numa turma cheia de homens, já era naturalizada brasileira e viúva.
Durocher foi a parteira mais conhecida da capital do Brasil durante o século 19, auxiliando indigentes, prostitutas e até cuidando do nascimento da princesa Leopoldina, filha do imperador D. Pedro II, em 1847.
Além da formação na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Durocher teve aulas particulares com Joaquim Cândido Soares de Meireles, homem negro que também desafiou os preconceitos da época, fez doutorado na Universidade de Paris e virou médico da Corte. Ele foi o fundador da Academia Nacional de Medicina, o equivalente da área da saúde para a Academia Brasileira de Letras.
A primeira mulher a fazer parte da instituição (que, na época, se chamava Academia Imperial) foi Durocher. Ela foi aceita em 1871. Para ter uma ideia do tamanho do machismo na época, a próxima mulher a entrar na instituição veio 55 anos depois, em 1926. Sabe quem foi? A cientista Marie Curie, quando foi homenageada numa visita ao Brasil.
Virou filme
A história da luta de Durocher contra o machismo para exercer sua profissão virou filme. Madame Durocher, dirigido por Dida Andrade e Andradina Azevedo, é uma produção franco-brasileira que estreou no Festival Varilux de Cinema Francês, que acontece até 20 de novembro em cidades de todo o Brasil. Confira o trailer:
No filme, Durocher é interpretada por duas atrizes: Jeanne Boudier, para os primeiros anos como parteira, e Sandra Corveloni, que já venceu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes e interpretou Durocher na segunda metade de sua vida.
Em entrevista à Super, Corveloni explicou as estratégias de Durocher para driblar o machismo no mundo da medicina: “Ela foi percebendo, a duras penas, que tirando as características femininas, ela poderia transitar mais livremente por esse mundo tão masculino.”
A parteira se vestia com gravata borboleta, saia longa, sobretudo e cartola. O cabelo, sempre curto. A própria Durocher dizia que usava essas roupa porque tinha uma profissão masculina. Por resistir contra o machismo, era chamada de “aberração”.
Os trajes masculinos também ajudavam em questões práticas. Durocher citava conforto e praticidade. Historiadores acham que não era só isso, mas também uma questão de proteção. Parteira não era a primeira coisa que passava pela mente das pessoas quando viam uma mulher andando pelas ruas de madrugada no Rio de Janeiro do século 19. O perigo de ser confundida com uma prostituta era grande.
Durocher foi nomeada parteira da Casa Imperial em 1866. Ela só podia atuar fazendo partos, mas tinha conhecimento médico suficiente para medicar as pessoas, mesmo sem autorização legal. Ela também fazia perícias médico-legais, examinando mulheres que haviam sido estupradas.
Madame Durocher acompanhou mais de 5.000 partos durante 60 anos de vida profissional, e foi a primeira mulher no Brasil a escrever textos científicos sobre medicina, como seu estudo “Considerações sobre a clínica obstétrica”.
Além de ser cientista, Durocher também escrevia artigos diversos para os jornais e se engajou na luta pela abolição da escravidão no Brasil. Ela atendia pedidos para ajudar nos partos tanto de mulheres livres quanto de escravizadas.
Durocher morreu no esquecimento, em 1893. Sua história e a história do doutor Joaquim não são provas de que o preconceito não existia no século 19. Pelo contrário: eles tiveram que ir muito além para alcançar a proeminência que tiveram.
Jonathan Raymundo, historiador e um dos pesquisadores que trabalhou no filme, explica que o racismo diminui o horizonte de imaginação, apagando a história de pessoas negras como o fundador da Academia Nacional de Medicina, ou mesmo escondendo a condição de gênios brasileiros como Machado de Assis. “A história de Joaquim foi possível mesmo num contexto terrível. Se foi possível lá, pode ser possível aqui.”
“Nossa vontade com esse filme é levar as pessoas a refletir sobre por que essas pessoas são sistematicamente esquecidas”, explica a roteirista e produtora Rita Buzzar.
Para João Segall, que também participou como produtor e roteirista do filme, Durocher é uma personagem que existiu “antes do seu tempo”, até agora sem ter o impacto que ela poderia ter tido. Quem sabe conhecer a história do Brasil não pode ajudar a ampliar nosso horizonte de imaginação, com novas figuras para servir de inspiração.
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Fonte: abril