Imagine que você está no meio de um processo jurídico complicado contra uma empresa. Você perdeu muito dinheiro por causa de um serviço mal prestado e quer indenização. O juiz não está muito convencido do seu caso, e o time de advogados de defesa está louco para lhe fazer arcar com as custas do processo.
Na hora do desespero, o jeito é apelar para mágica. Pelo menos era assim na Roma Antiga. Muitos cidadãos do Império tentavam pôr fim aos seus litígios usando objetos chamados tabuletas de maldição: placas de chumbo e outros materiais em que eles descreviam a situação e desejavam desgraças a seus oponentes.
Além das tabuletas iudiciariae (“judiciárias”), a turminha do Lácio também recorria às maldições para atrapalhar adversários nos esportes, usando tabuinhas do tipo agonisticae (soa familiar? Pois é: a palavra “agonia” vem de um termo grego antigo para “luta” ou “competição”).
Outra finalidade dessas inscrições era similar à das simpatias e amarrações de amor contemporâneas, comuns entre os supersticiosos. Eram as tabuletas amatoriae, que também serviam para desejar o mal a cafajestes, praticantes de ghosting e outros amores não correspondidos.
O nome das tabuletas em latim era defixionum tabellae. A primeira parte do nome vem do verbo defigere, que significa “atar, prender, tornar imóvel”. Esse era o objetivo da maldição: paralisar um inimigo e impedi-lo de agir na situação específica mencionada.
As tabuletas mais antigas já encontradas por arqueólogos datam de 500 a.C., e a prática persistiu até o século 5 d.C. Cerca de 600 inscrições desse tipo são conhecidas em latim. 450 delas são legíveis e podem ser encontradas em bases de dados voltadas a estudiosos de latim, como a Corpus Inscriptionum Latinarum (CIL).
Os romanos costumavam escondê-las ou enterrá-las em sepulturas, o que facilitou a preservação. Elas eram postas em túmulos porque se acreditava que, nas entranhas do cemitério, elas entrariam em contato com os espíritos dos mortos (nada como uma forcinha do além no tribunal).
Além das 600 tabuletas em latim já mencionadas, há mais de mil escritas em outras línguas antigas como etrusco, osco, céltico, púnico e grego, bem como algumas que misturam grego e latim. A brasileira Ana Letícia Wechsler analisou as contribuições dessas tabuinhas para os estudos da evolução das línguas românicas em um trabalho realizado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Descobrindo o latim vulgar
Essas tabuinhas são relíquias arqueológicas importantes para os historiadores porque são alguns dos únicos documentos que podem mostrar como os romanos comuns usavam o latim no dia a dia. Pessoas com vários níveis de letramento escreviam maldições.
A maior parte das fontes disponíveis para os estudiosos de Roma, afinal, são clássicos literários ou documentos que falam de nobres e aristocratas. Essas peças usam o latim formal, diferente da língua cotidiana, chamada de latim vulgar.
As tabuletas ajudam, por exemplo, a entender como as palavras eram realmente pronunciadas pela plebe. As pessoas escreviam de forma similar a que falavam, e acabavam cometendo erros de ortografia.
Um exemplo bom é uma tabuleta clamando por justiça à deusa sulis Minerva, escrita onde hoje é a Inglaterra. Este aqui é seu conteúdo:
Docimedis perdidi (=perdidit) manicilia dua qui illas (=illa) involavi (=involavit) ut mentes sua (=suas) perdat et óculos suos in fano ubi destina (=destinat).
Em parênteses estão as grafias corretas das palavras. A tradução seria: “Docimedis perdeu duas luvas. Que quem as roubou perca suas mentes e seus olhos no templo em que ele determina”.
A primeira oração está na ordem direta sujeito-verbo-objeto, não muito comum no latim clássico. Na literatura da elite, o verbo normalmente ficava no final da frase.
O pronome illas está no plural, mas devia ser singular. Enquanto isso, o pronome possessivo sua aparece no singular, quando devia ser plural. Algumas palavras aparecem em suas versões populares. Por exemplo: involavi(t) significa roubar. No latim clássico, se usa furatus sum para falar a mesma coisa.
Essas tabuletas começaram a ser estudadas no século 19, e nos ajudaram a entender como as pessoas comuns viviam naquela época. Afinal, a história não foi feita só de imperadores, e a arqueologia ajuda a resgatar as vidas de pessoas comuns, que foram tão essenciais para a Roma Antiga quanto os políticos.
Fonte: abril