No auge da colonização do Novo Mundo pelos europeus – quando todas as potências queriam latifúndios tropicais para plantar cana-de-açúcar –, Inglaterra, Holanda e França começaram a farejar oportunidades econômicas no extremo norte da América do Sul, uma região de planalto chamada pelos indígenas de Guiana (cujo significado, em uma das línguas nativas do pedaço, é “terra de muitas águas”).
Acontece que esse morro já era visado por duas facções: Portugal e Espanha, que haviam dividido o mundo ao meio no infame Tratado de Tordesilhas. Entre os séculos 17 e 19, em uma série de disputas diplomáticas – e não tão diplomáticas assim –, o mapa acabou se estabilizando com essa região dividida em cinco blocos.
No extremo oeste, um território que hoje corresponde a metade da Venezuela era a porção espanhola da Guiana. No extremo leste, ficava a Guiana Portuguesa, que hoje você chama de Amapá. E então, ensanduichados entre portugueses e espanhóis, ficaram três territórios menores: as Guianas Inglesa (hoje, só Guiana), Holandesa (o Suriname) e Francesa (que permanece com o mesmo nome). Veja o mapa.
O problema: Espanha e Inglaterra nunca concordaram sobre a fronteira entre as suas respectivas Guianas. Quando a Venezuela declarou sua independência da Espanha em 1810 – e Guiana, da Inglaterra, só em 1966 –, os dois países acabaram herdando essa disputa de suas ex-metrópoles. Disputa que voltou à tona com a manobra mais recente do ditador Nicolás Maduro.
De acordo com o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) venezuelano, 10,5 milhões de eleitores participaram de um plebiscito (ou referendo) sobre esse assunto no último dia 3 dezembro. 95,93% concordaram em anexar uma região chamada Essequibo, que hoje pertence à Guiana, ao território da Venezuela – e conceder cidadania e documento de identidade aos mais de 120 mil guianenses que vivem no território.
Vamos entender o caso. A Espanha criou a Capitania Geral da Venezuela, em 1777, como uma das subdivisões de seu amplo império colonial. E naquela época, ela delimitou que a capitania incluía o tal território de Essequibo. Um rio homônimo (ou seja, também chamado Essequibo) marcaria a fronteira entre as posses espanholas e as holandesas.
No final do século 18, os ingleses invadiram e conquistaram três pedaços da colônia holandesa: Essequibo, Demerara e Berbice. Para a Holanda, sobrou o pedacinho que hoje se chama Suriname. Nesse momento, passou a existir uma Guiana Inglesa entre a Espanhola e a Holandesa. Essa situação acabou oficializada em um tratado assinado em 1814.
O problema é que os britânicos determinam que o território dessa Guiana incluía a região de Essequibo – uma fronteira chamada de Linha Schomburgk, nome do explorador que a traçou. E os espanhóis, que na época estavam preocupados demais com o movimento de independência que se alastrava pela América Latina, não deram atenção ao problema básico de que, bem… aquela terra era deles, em tese.
A Venezuela recém-independente passou todo o século 19 contestando o domínio britânico de Essequibo. Em 1899, para pôr um ponto final à questão, organizou-se uma reunião diplomática na França. O resultado foi um documento chamado Laudo Arbitral de Paris, que dava razão aos britânicos e deixava só uma porcentagem minúscula do território disputado com os venezuelanos.
O comitê que redigiu o laudo consistia em dois representantes da Inglaterra e dois representantes dos EUA (supostamente encarregados de defender os interesses venezuelanos). As discussões eram presididas por um russo, já que a Rússia era uma nação neutra, no papel – sem motivo para dar pitaco em um problema sul-americano.
Com o passar dos anos, os historiadores foram levantando evidências de que a Inglaterra manipulou a composição do tribunal: nos bastidores, ela impediu que juízes venezuelanos defendessem o próprio país, por racismo contra os juristas mestiços sul-americanos, e escolheu um árbitro russo falsamente neutro – que, na verdade, era favorável a manter boas relações entre Inglaterra e Rússia. O tribunal tinha 90 dias para trabalhar, mas chegou a uma decisão unânime em apenas seis.
Não há muita dúvida, entre acadêmicos, de que essa foi uma decisão enviesada e injusta. A polêmica, claro, é saber se faz sentido ou não revertê-la agora. A Guiana de hoje é uma nação independente da Inglaterra, e a pequena população de Essequibo (cerca de 125 mil pessoas) se identifica como guianense. Ninguém quer um conflito armado – que seria catastrófico para a própria Venezuela, afundada num caos socioeconômico.
Culturalmente, por causa da colonização por países falantes de línguas germânicas, as Guianas não se entendem exatamente como latino-americanas, e têm costumes e culinária mais próximos dos das nações caribenhas que também foram colonizadas por França, Holanda e Inglaterra.
A questão havia permanecido adormecida por décadas até que, em 2015, a petroleira americana ExxonMobil descobriu grandes reservas de petróleo na região e anunciou sua intenção de explorá-las (há um mês, eles iniciaram as operações da terceira plataforma de petróleo na Guiana). A Venezuela, que tem uma rixa com EUA e se opõe fortemente à exploração de recursos naturais por empresas privadas, não gostou.
Fonte: abril