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Desafinado de Propósito? Descubra por que Todo Instrumento Musical Tem uma Pitada de Rebeldia!

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Pitágoras foi um cara engraçado, a começar pelo fato de que ninguém sabe se ele foi mesmo um cara: não existem evidências incontestáveis de sua existência, “não há um único detalhe em sua vida em torno do qual não há contradição” diz o alemão Walter Burkert, um dos maiores pesquisadores da fé e dos cultos da Grécia Antiga. 

Sim: fé e cultos. Se existiu e o mais provável é que tenha existido , Pitágoras não era bem um professor universitário respeitável, e sim o guru acadêmico-religioso de uma seita hermética fundada em Croton, no sul da Itália, que impunha a seus seguidores regras peculiares como proibir o consumo de feijões.

Não há como distinguir o que é criação de Pitágoras, o que é obra de seus alunos e o que eram conhecimentos de uma Antiguidade ainda mais antiga: sabe-se que sua descoberta mais famosa, o teorema dos triângulos retângulos, já era conhecida na mais de mil anos antes.

Hipotenusas e catetos à parte, outra sacada fundamental que os livros-texto atribuem a Pitágoras é sua maneira particular de afinar a escala musical de sete notas – a escala diatônica, em torno da qual se constituiu toda a música que se ouve no Ocidente, de Bach a Olivia Rodrigo.

De acordo com a lenda, tudo começou quando Pitágoras estava passando na porta de um ferreiro e percebeu que, quanto mais espesso fosse o pedaço de ferro que ele martelava, mais grave era o som do impacto. (A história é boa demais para ser , e não há indício de que seja verdade, mas vamos contá-la pelo didatismo.)

Foi uma observação sagaz: até hoje existe um tipo de piano elétrico chamado Wurlitzer em que os martelos impactam linguetas de metal em vez de cordas. Quando mais grossa a lingueta, mais grave a nota.

Para investigar o fenômeno, Pitágoras teria saído inventando traquitanas parecidas: começou a brincar com garrafas d’água, tubos ocos e uma porção de outros objetos que emitem som e têm tamanho variável. Um livro publicado em Milão em 1492 contém uma série de quatro ilustrações mostrando esses experimentos.

A afinação pitagórica

Pitágoras percebeu que se você esticar duas cordas, uma com o dobro do comprimento da outra, e fazê-las vibrar ao mesmo tempo, elas vão emitir dois sons que combinam um bocado entre si. Um é mais grave, o outro, mais agudo, mas eles são tão parecidos que se mesclam imperceptivelmente.

Essa é uma distância entre dois sons que hoje nós chamamos de oitava. Duas notas separadas por uma oitava –  ou seja, notas que tem metade ou o dobro da de uma outra nota de referência soam tão parecidas que sequer as percebemos como notas diferentes.

A nota Lá que fica no meio do piano tem frequência de 440 Hz, o que significa que as notas com 880 Hz (o dobro da frequência) e 220 Hz (a metade da frequência) também são reconhecidas como Lás, em versões mais graves ou agudas.

Todo instrumento tem essa arquitetura cíclica: quando termina um ciclo de Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si, ele recomeça no próximo Dó, mais agudo. Quando se diz que um teclado tem “cinco oitavas” ou “sete oitavas”, isso significa que o teclado contêm cinco ou sete repetições dessas notas, distribuídas em um degradê grave-agudo.

Pitágoras logo percebeu que 1/2 não era a única combinação mágica. Outras cordas cujos comprimentos formavam frações pequenas entre si, como 3/2 ou 5/4, também produziam combinações agradáveis de sons, enquanto cordas em frações mais quebradas, como 21/13, geravam combinações dissonantes, abrasivas.

Pulando quintas

O intervalo de 3/2, por exemplo, é chamado de quinta. É a distância entre o Dó e o Sol (que é a quinta nota da sequência, daí o nome). Considera-se que essa é a segunda combinação de sons que soa melhor, depois da oitava.

Toda nota tem sua quinta, é claro. Basta contar cinco notas a partir dela. A quinta do Sol é o Ré. E a quinta do Ré é o Lá.

Se você for saltando de quinta em quinta, logo vai obter todas as notas do teclado (as sete que você conhece, que correspondem às teclas brancas, mais as cinco teclas pretas, que não vamos explicar para não complicar a vida, mas que são notas como todas as outras).

E foi isso que Pitágoras fez, de maneira muito simplificada. Ou, para ser mais realista, que alguém fez, provavelmente na Mesopotâmia, ou ainda no Neolítico, antes da da escrita, de maneira intuitiva. Há evidências de flautas de osso pré-históricas cujos buracos já correspondem às distâncias entre as notas que temos hoje.

Subindo essa escadinha de frações de 3/2, os seres humanos de vários povos e culturas obtiveram a escala pentatônica (de cinco notas) e a já mencionada diatônica (sete notas), que são duas paletas de cores importantíssimas paras as músicas de diversas tradições.

Foi então que surgiu uma pedra no meio do caminho matemático.

O fim do arco-íris

Teoricamente, se você pular doze quintas, uma você chega de volta na nota Dó onde tudo começou. E assim, você obtêm as doze notas de um teclado moderno – sete brancas, cinco pretas em cada oitava. Acontece que, quando você pula essas frações de 3/2 e chega lá na outra ponta, não é bem um Dó que você encontra.

Trata-se de um Dó meio desafinado, em uma frequência um pouco mais aguda do que deveria ser. Isso acontece porque os saltos de cinco em cinco notas (as quintas) e os saltos de oito em oito notas (as oitavas) não terminam alinhados.

É como enfileirar a tabuada do 3 e a tabuada do 7: não existe nenhum número que corresponde entre as duas; elas não se encontram: 3, 6, 9, 12, 15, 18, 21… vs. 7, 14, 21, 28, 35, 42… Tentar forçar essa correspondência seria obrigar a natureza a seguir um ideal de perfeição matemática falso, esotérico, que Pitágoras cultivava.

Quando você toca um teclado afinado da maneira pitagórica, todas as combinações de notas separadas por uma quinta soam muito puras e claras (Dó e Sol, Sol e Ré e por aí vai). Porém, todos os outros intervalos soam desafinados. Vide o intervalo de três notas, a terça. Uma terça, idealmente, segue a fração 5/4. Uma terça pitagórica, porém, fica em 81/64. E por isso soa feiosa, dissonante.

A solução

Com o passar dos séculos e o desenvolvimento da música europeia, a afinação pitagória foi sendo adaptada e modificada em vários outros sistemas que buscavam sacrificar certos intervalos em detrimento de outros.

Uma solução comum era adicionar mais notas na oitava além das doze que conhecemos hoje, de modo que sempre estivesse disponível uma nota com uma frequência adequada para montar um certo intervalo. Veja só um teclado de 19 notas no tweet abaixo:

Os instrumentos musicais usados hoje no Ocidente ficam em cima do muro em termos de afinação. Eles deixam todos os intervalos só um pouquinho desafinados em relação às frações ideais, de modo que todos soem bem o suficiente, ainda que nenhum soe perfeito.

Essa solução é parte de algo chamado temperamento igual de doze tons, que permite algo comum na música pop do século 20 em diante (e que já havia se estabelecido na música de escritura de Bach em diante): mudanças de tonalidade.

As doze notas de cada oitava do teclado estão separadas pela mesma distância no espectro grave-agudo. Isso é ruim porque deixa tudo um pouquinho desafinado, mas gera uma propriedade mágica: não importa em qual nota você comece uma música, ele soará sempre idêntica.

Tal propriedade permite, por exemplo, que um cantor diga “A música em Sol está muito grave para minha voz, vamos tocar em Dó”. O que é muito prático no dia-a-dia dos músicos.

Em um instrumento atual, tanto faz tocar uma música qualquer começando em Dó, em Sol ou em Ré: ela soará igual, apenas mais grave ou mais aguda, de acordo com a nota em que foi mais conveniente começá-la.

O temperamento de 12 tons iguais, portanto, é um pouco como a vida: um caso de “feito é melhor do que perfeito”. Não se pode ter terças ou quintas pitagóricas, que soam como frações angelicais aos ouvidos. Mas existem terças e quintas razoavelmente afinadas, capazes de conviver em paz.

Fonte: abril

Sobre o autor

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Fábio Neves

Jornalista DRT 0003133/MT - O universo de cada um, se resume no tamanho do seu saber. Vamos ser a mudança que, queremos ver no Mundo