É preciso definir o que é feio para aquele pedaço do bairro. A beira do rio era um deposito de restos de material de construção, móveis e partes de carros velhos abandonados. Naquelas ruas as moradias eram quase barracos, cachorros sujos, como seus donos, mancam e tem sarna, é um lugar onde a feiura se espalha.
Ali como era de se esperar o asfalto não chega, já as dificuldades sociais vão se esparramando pelas casinhas de um único cômodo que se erguem de um dia para o outro. Novidade recente são as tendas de acampar, instaladas imediatamente. E lá vão ficando… Já não causam mais repúdio, já não conseguem desvalorizar mais o seu entorno.
Branca
De alguma casa desta vizinhança uma garotinha “escapava”. Aquelas ruas faziam parte do meu caminho e eu a notava, por sempre ostentar aquele sorriso leve, típico de criança de que nada no mundo a afeta.
O tempo passa e eu acompanho a menina que cresce ano a ano, com todas as possibilidades, como acontece com todos nós e certa tristeza me acomete ao ver que aquele sorriso leve foi se perdendo, o rosto iluminado vai esmorecendo… Aqueles sorrisos que deveriam se multiplicar eram agora esboços de um traço arqueado num rosto que cada vez se via menos.
Um dia tinha 12, noutro 17 anos. Mas por que eu havia reparado nela? Eram tantas as crianças, que ímã seria este que me atraia? Era bonita a ponto de se destacar? Com toda sinceridade? Não, nem tanto.
Restos de madeira, restos de lixo
Não havia pensado que há restos de lixo, afinal, lixo é resto, mas havia. Um volume acomodado num saco que é jogado fora pela primeira vez, já passou por uma primeira avaliação e quando este volume ainda está lá, fechado, sem rasgos há quem o reviste novamente. Sempre é possível se encontrar vidro, papelão, alumínio… Ou seja, antes dele se tornar verdadeiramente um descarte passará por várias inspeções.
Foi na averiguação de um saco assim que alguém encontrou uma lona grande e antiga. Nesta situação era ouro, a sorte grande. No dia seguinte um barraco com partes de azul e amarelo se levantava. Era só mais um.
Branca, de novo
Era mais uma biqueira (ponto de venda de drogas) que se instalava. Era mais um lugar para se usar. Os novos vizinhos, garotos com bermuda encaixada muito abaixo da cintura, é uma deselegância que se acostuma ver. O frio e vento sacudia as paredes plásticas e a chuva invadia por cima e por baixo, ainda assim, parecia não incomodar os ocupantes, afinal, não são moradores só usam de passagem. Os dias, semanas e meses passam e o barraco se torna popular, são frequentadores quase todas iguais, na cor, na magreza e no desperdício da vida.
Por volta das 9 da manhã e a vi saindo de lá. Logo ela? Há 5, 6 anos era uma garotinha, como tantas por ali, mas aquela era diferente. Tinha a pele branca, branca demais que se ressaltava pelos cabelos muito lisos e muito negros.
O que os pais pensam sobre isso?
Desta vez era ela que estava no barraco. Acompanhada de uma amiga e dois garotos. Ela, em especial, era agora dona de um rosto maltratado e braços e pernas feridas… Será que ela teve fotos da infância ou alguém acompanhou seus trabalhos de escola?
Naquele lugar de abandono tudo parecia no lugar, bermudas de plástico arriadas, pele e cabelos descuidados, corpos que vão se deformando, estavam tudo no seu devido lugar. Menos ela. Ela era tudo que destoava.
A surpresa veio exatamente aí: em que momento o plural se tornou singular?
Todos aqueles personagens cresceram ali, caminhavam por ali, viviam ali. Mas meu olhar se destacou apena por ela. O sofrimento dos outros, a falta de atenção dos pais (se é que tinham) não importava. Ela importava, por quê?
Amigos pretos que cultivo há décadas com forte amizade me deixa numa posição confortável de “não preconceituoso”, talvez não se surpreendessem, é assim mesmo diriam, mas eu me surpreendi. Ela era a única fora do lugar por um único motivo: era branca, muito branca.
Detestei este pensamento ter me invadido. Eu não o pensei, fui tomado, ele era meu, pior, era eu.
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Fonte: fashionbubbles