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Você deve comer mais um pedaço de bolo?

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“É ó um pedaço a mais, é só mais um pouquinho, eu mereço, eu também sou filho de Deus, não é todo dia…” São frases como essas que espreitam – e tentam amenizar para a nossa consciência – o pecado da gula, do qual hoje em dia se zomba e se faz pouco caso, como se não fosse nada. Diferente da inveja e da avareza, ninguém se envergonha dele, ninguém o disfarça, e as lanchonetes e outras propagandas exploram abertamente o entregar-se à gula como uma coisa boa, um lícito e inconsequente deleite. Mas muito se engana quem o desdenha e menospreza, pois ele é a armadilha, um intruso da alma que enfraquece nossa vontade e nos vai acostumando, lentamente – a cada bocada, a cada colherada… –, a nada menos que a escravidão do corpo.

Continuemos, com zelo, nossa série de reflexões a respeito dos vícios capitais. Afinal, explorar essas inclinações humanas revela questões profundas que frequentemente afetam nossas decisões cotidianas, e o modo como organizamos nosso lar, e influenciam, certamente, o modo como ajudamos nossos filhos a se desenvolverem como pessoas. Por vezes, acreditamos que certas atitudes e preferências são simplesmente parte da personalidade dos pequenos, ou uma questão de “liberdade” individual. Entretanto, muitos comportamentos, se não são observados e orientados, podem levar a consequências graves e duradouras. Assim, ao identificar essas inclinações desde cedo, podemos ajudar nossos filhos a cultivarem bons hábitos que florescerão em virtudes, de forma que os futuros desafios, inclusive na adolescência, sejam enfrentados com equilíbrio e discernimento. Esse processo formativo não se dá em grandes decisões, mas nas pequenas escolhas do cotidiano. É no dia a dia que direcionamos os primeiros passos que, somados ao longo do tempo, podem fazer uma diferença imensa na vida das crianças. É o caso da gula.

Nunca podemos nos esquecer de que o ser humano é um composto de corpo e alma, e essa distinção é essencial para compreendermos como essas inclinações operam na nossa vida prática. Diferente dos animais, que agem puramente em resposta a impulsos sensoriais – comendo quando sentem fome, dormindo quando estão cansados –, o ser humano é dotado de inteligência e autocontrole. Nossa capacidade de raciocinar permite que regulemos nossas vontades e desejos; em outras palavras, podemos resistir a um impulso momentâneo em prol de um bem maior. E é justamente essa habilidade que nos confere a liberdade de agir conforme princípios mais elevados, em vez de nos deixarmos dominar pelas necessidades e apetites básicos.

Essa faculdade humana é central no papel dos pais. Nem tudo o que uma criança deseja necessariamente faz bem a ela, e é nossa responsabilidade guiá-la para que aprenda a diferenciar entre o desejo imediato e o verdadeiro bem. Crianças vivem intensamente cada impulso e, por isso, necessitam de uma referência externa para organizarem seus sentimentos e vontades. Como pais, somos nós que, inicialmente, fazemos esse papel de intérpretes da realidade, e ajudamos nossos filhos a estruturar suas prioridades e valores.

A maneira como tratamos a alimentação ensina muito mais do que a nutrição em si: é um primeiro exercício de domínio próprio

Quanto à gula, devemos reconhecer que o ato de comer é natural e necessário. A alimentação é, obviamente, essencial à vida, e o que sentimos ao comer é um mecanismo fisiológico que assegura nossa sobrevivência. Comer, em si, não tem uma conotação moral negativa; pelo contrário, é um bem necessário. No entanto, o problema surge quando se transforma em um fim em si mesmo, como se nossa felicidade estivesse condicionada à comida. É quando a alimentação passa a ser uma obsessão ou um alicerce do prazer que se aproxima da gula.

Vivemos em uma época em que a relação com a alimentação é, muitas vezes, desordenada. Preocupamo-nos com o valor nutricional dos alimentos, com modismos gastronômicos, com dietas restritivas, e frequentemente colocamos a comida em um pedestal. Mas, na essência, o alimento deve ser apenas um meio para nos manter vivos e nutridos, e não uma fonte de prazer constante ou um substituto para outros valores.

A comida é também associada à vida social. E de fato, para o ser humano, a alimentação é mais do que uma necessidade biológica: ela carrega um valor social e simbólico, representando momentos de encontro e de partilha. No entanto, mesmo neste contexto, devemos lembrar que a comida não é um fim, mas um meio que nos aproxima dos outros e que nos permite viver em comunidade.

Considerando tudo isso, precisamos ser cautelosos para que nossos filhos compreendam que a verdadeira felicidade não está no prazer imediato da comida. É natural que o ato de comer nos proporcione prazer, mas, se exagerado, esse prazer pode obscurecer a dimensão espiritual e intelectual do ser humano. Por isso, é importante que saibamos treinar a nós mesmos e aos nossos filhos para que dominem a relação com a alimentação, em vez de serem dominados por ela. Isso nos mantém firmes na vocação humana de moderar os próprios impulsos em benefício de uma vida mais equilibrada e significativa.

A alimentação, para o ser humano, reflete um aspecto profundo de nossa disposição interna: entre equilíbrio e excesso, entre a gratidão e a arrogância de nos acharmos autossuficientes. Precisamos, portanto, cultivar uma postura de moderação e generosidade em relação ao alimento, enxergando-o não como fonte de apego, mas como um bem que também pode – e deve – ser partilhado. Neste percurso de moderação e autodomínio, é essencial educar as crianças para que consigam dominar seus próprios impulsos alimentares e compreender a verdadeira finalidade dos alimentos. A prática da moderação é o que nos distingue dos animais e nos aproxima do ideal de uma vida ordenada e livre.

A relação que uma criança desenvolve com a comida começa como uma série de treinos e ajustes no dia a dia, mas as lições que passamos na infância moldam as atitudes que ela levará para a vida adulta. Ao conceder aos filhos tudo o que desejam à mesa, corremos o risco de criar futuros adolescentes e adultos que não conseguem pensar no outro, guiados apenas pelos próprios impulsos. Sem um treinamento para moderar essa vontade, a criança aprende a olhar para a comida, e para a satisfação de seu apetite, como um objetivo absoluto. Se, em cada pedido, respondemos imediatamente, uma criança pode crescer sem desenvolver a capacidade de compartilhar, de esperar, e até de se compadecer com o próximo em meio ao desconforto da fome, por menor que seja. A gula, nesse sentido, não se resume a uma relação exagerada com a comida; é um primeiro passo em direção ao hedonismo – a busca pelo prazer imediato, pela constante satisfação sensorial, sem qualquer moderação.

Esse vício leva a pessoa a enxergar a própria felicidade como algo dependente do prazer constante e do atendimento irrestrito dos desejos. Para quem sucumbe à gula, o prazer precisa ser saciado a todo instante, e qualquer desconforto se torna insuportável. E o mesmo padrão se repete em outras áreas: aquilo que é acessado facilmente em um contexto, como o prazer com a comida, pode se estender a outros campos, levando ao uso excessivo de jogos, bebidas, conteúdos sensoriais, ou até práticas como a pornografia. Assim, ao nos dedicarmos a educar a relação dos filhos com a comida, trabalhamos para que aprendam a reconhecer e moderar os próprios impulsos. A gula é o primeiro campo de batalha onde esse autocontrole é conquistado.

A maneira como tratamos a alimentação ensina muito mais do que a nutrição em si: é um primeiro exercício de domínio próprio. Se a criança, mesmo sem fome, come um alimento específico apenas porque lhe agrada, o mesmo mecanismo que governa essa relação tenderá a influenciar a forma como encara os demais prazeres. Sem o domínio da gula, outros vícios acabam por seguir o mesmo padrão. Ao educar com moderação, portanto, permitimos que nossos filhos cresçam com uma noção mais clara de limite e respeito pelos próprios impulsos.

O prazer não é algo problemático em si. Todos experimentamos a alegria de uma refeição saborosa, e sentir prazer em comer é natural e saudável. O prazer é um símbolo do bem. Entretanto, é crucial ensinar que há valores e recompensas muito maiores que a mera satisfação de um desejo imediato. Observamos nas crianças, por exemplo, que elas são capazes de esquecer a fome quando imersas em uma atividade que as cativa. O prazer imediato da alimentação é temporário, enquanto a alegria que advém de superar pequenos desconfortos e agir de forma generosa com o próximo gera uma satisfação duradoura. Orientar as crianças para que reconheçam e busquem recompensas mais elevadas ajuda a desenvolver nelas uma capacidade de lidar com frustrações, em vez de serem movidas exclusivamente pelo desejo de satisfação.

Ao ensinar que o desejo imediato nem sempre é uma prioridade, ajudamos a criança a reconhecer que é capaz de esperar e que existem situações mais importantes do que a satisfação instantânea

Esse treinamento vai além do simples ato de comer ou de negar um pedido. Ele exige atenção às dinâmicas familiares e à nossa postura frente aos próprios prazeres. Se uma criança chora porque quer um biscoito para compensar uma situação incômoda, a tendência é dar-lhe o alimento para acalmá-la. No entanto, essa prática cria uma associação errada entre conforto emocional e prazer físico, impedindo que desenvolva os recursos internos para lidar com frustrações.

O exercício da sobriedade com nossos filhos promove uma relação mais equilibrada com o prazer. Ao ensinar que o desejo imediato nem sempre é uma prioridade, ajudamos a criança a reconhecer que é capaz de esperar e que existem situações mais importantes do que a satisfação instantânea. Ensinamos a ela que há uma hierarquia de valores e que é possível suportar, mesmo que temporariamente, o desconforto em prol de algo maior.

Em algumas famílias, a comida é usada para resolver problemas emocionais. Uma criança que chora, que está frustrada ou aborrecida, recebe imediatamente um biscoito ou um doce, criando uma associação nociva entre conforto e alimentação. Essa prática pode parecer benigna, mas, ao longo do tempo, gera uma dependência que dificulta o desenvolvimento de recursos internos e a capacidade de lidar com emoções sem recorrer ao consumo físico. Isso vai na contramão da educação da temperança e da moderação. Também a prática de oferecer várias opções de refeições para atender a cada exigência de uma criança reforça o individualismo, pois ensina que seus desejos são prioritários em relação ao esforço alheio. Essa atitude, ainda que com boas intenções, pode levar a uma noção distorcida de que basta reclamar para receber um atendimento imediato. Educação para a moderação, portanto, requer paciência e consistência, mas seu impacto é duradouro, e seu valor está na formação de uma relação saudável com a alimentação e, por consequência, com a própria vida.

A relação que desenvolvemos com a comida deve basear-se em gratidão e moderação, em vez de alimentar um olhar que exige satisfação imediata. Agradecer o alimento e estar disposto a consumi-lo, mesmo que ele não seja de nosso gosto, é um exercício de autocontrole e respeito. Através dessas práticas, moldamos nos filhos a capacidade de se relacionar com a alimentação de forma saudável e equilibrada, ensinando que a comida é um meio para nutrir o corpo e não um fim em si mesma. Quando priorizamos a gratidão, evitamos a tendência de ver a comida como um objeto de adoração, algo que deve atender a nossos desejos constantemente.

Infelizmente, um padrão de “agrado a todo custo” – onde o apetite da criança é sempre saciado com o alimento de sua escolha – promove um foco excessivo no prazer sensorial, obscurecendo a capacidade de desenvolver uma relação saudável com o transcendente. Pode parecer exagero associar a gula com o embotamento espiritual, mas não é o que ensina a tradição; quando olhamos o alimento como um fim em si, sem moderação, estamos na verdade dificultando o cultivo das virtudes e enfraquecendo a relação com o que vai além do material. Essa é uma base necessária, pois é na alimentação que se iniciam os primeiros treinamentos para o domínio de si. A pessoa movida apenas pelo próprio prazer acaba priorizando a si mesma, sem disposição para atender às necessidades dos outros. É curioso notar como o excesso de comida pode realmente fazer o coração pesado, restringindo não só o corpo, mas também a mente e o espírito. Nesse sentido, o ato de comer excessivamente, ou de focar-se somente na comida, revela uma disposição interna voltada apenas para os próprios desejos.

A gula, parafraseando a expressão, é uma “porta para vícios mais pesados”. Ela nos propende, por exemplo, para a preguiça. Quando estamos constantemente focados em nossas satisfações imediatas, acabamos negligenciando os deveres mais básicos, como estudar, trabalhar ou ajudar os outros, em favor de prazeres mais fáceis. A gula nos torna propensos a uma vida centrada no ego, como se o mundo girasse ao redor dos nossos caprichos. E quando nos acostumamos a esse modo de viver, o menor obstáculo se transforma em motivo de grande sofrimento. Aqueles que crescem sem o exercício de moderação nos desejos, incluindo o desejo por comida, ficam menos preparados para enfrentar momentos de privação ou dificuldade. Quantas birras não surgem do desejo insistente por um determinado alimento ou por uma satisfação imediata? Crianças acostumadas a serem atendidas em cada pedido reagem com desespero ao menor “não”. Para muitas, o mínimo sinal de privação gera um colapso emocional. Dessa maneira, o excesso de foco em prazeres momentâneos impede o desenvolvimento de uma resiliência emocional para lidar com as frustrações e desafios da vida.

A relação entre gula e outros vícios – como o uso excessivo de tecnologia, os jogos e até mesmo a tendência ao isolamento nas redes sociais – é clara. Crianças e adolescentes que não são ensinados a conter seus desejos e impulsos na alimentação encontram as mesmas dificuldades em outras áreas da vida. O primeiro passo para evitar tais comportamentos é justamente o aprendizado de moderação com a alimentação. Não se trata apenas de uma regra prática, mas de uma formação moral que prepara para resistir a desejos compulsivos e a exercitar a paciência e o domínio de si.

Ademais, a gula nos conduz à tristeza. Ora, quando uma vida é estruturada em torno da busca incessante de prazer, qualquer privação se torna um motivo de frustração, e a tristeza surge como reação à falta de um bem desejado; mas, se os bens que buscamos são materiais e fugazes, nossa tristeza será frequente e desproporcional. O desafio, portanto, é ensinar os filhos a encontrarem a verdadeira alegria, isto é, a que advém de valores perenes, em vínculos profundos, em vez de se apegarem apenas aos prazeres efêmeros. Isso é essencial para que, quando confrontados com sofrimentos reais e inevitáveis, como a perda de entes queridos ou outras provações da vida, saibam enfrentar com serenidade, e não como quem sente que a própria vida perdeu sentido.

Crianças e adolescentes que não são ensinados a conter seus desejos e impulsos na alimentação encontram as mesmas dificuldades em outras áreas da vida

Para lidar com o vício da gula, algumas práticas concretas são essenciais. Uma delas é ensinar nossos filhos a não comerem fora de hora, a respeitarem horários de refeição. Essa disciplina lhes mostra que podem, sim, sentir fome e esperar, assim como aprender a suportar o calor ou o frio, sem desespero. Pequenas ações como essa são exercícios para desenvolver paciência e resiliência. Nas refeições – esse momento tão central para um lar –, é importante que ensinemos nossos filhos a apreciar o que é compartilhado à mesa, de maneira consciente e responsável. A começar pela oração antes das refeições, que nos lembra que o alimento é um presente e não apenas uma satisfação de necessidades.

Ao nos sentarmos para comer, devemos ensinar as crianças a aguardar que todos estejam prontos, demonstrando atenção aos outros antes de se servirem. A atitude que muitos adultos adquirem de apressar-se para pegar tudo o que desejam antes que acabe é, na verdade, um reflexo de uma visão egoísta e primitiva, um hábito que devemos evitar cultivar em nossos filhos. O respeito à ordem e ao próximo são elementos-chave de uma convivência saudável, e as refeições em família oferecem um momento ideal para praticá-los. Nunca devemos servir alimentos diante de telas. Quando permitimos que nossos filhos comam enquanto assistem algo, eles deixam de interagir verdadeiramente com o alimento e com os outros ao redor. A refeição deve ser um momento de atenção plena e de convivência. Na hora da sobremesa, por exemplo, é importante ensiná-los a dividir, a verificar se todos já se serviram, para evitar excessos egoístas. Permitir que exercitem a generosidade, como ao ceder uma parte para o irmão, desenvolve neles um senso de empatia e apreço pelo outro.

Ensinar as crianças a comer de tudo não é apenas uma questão nutricional, mas de respeito e gratidão. Ao comer o que nos é oferecido em casa ou na casa de outras pessoas, mostramos uma atitude de humildade e agradecimento pelo esforço de quem preparou aquela refeição. Esse exercício começa desde cedo: se na mesa de um amigo oferecem um prato que não é o nosso favorito, é mais sensato aceitar, demonstrando respeito e gratidão, do que recusá-lo. Esse treinamento torna as crianças menos exigentes e mais gratas, tanto em casa quanto em qualquer .

Essa educação do autocontrole, da moderação e da temperança – em outras palavras, essa luta contra o vício da gula – faz parte de uma educação sólida e consistente. Muitas vezes, os pais se preocupam com o comportamento dos filhos em questões mais complexas, como a obediência, o estudo e o relacionamento com os irmãos, e esquecem que virtudes elevadas precisam ser cultivadas a partir dos fundamentos mais básicos. Não negligenciemos este ponto. Não é “só mais um pedaço” nem “só mais um pouquinho”: é no pedaço dado ao irmão que está a generosidade, e é no tempo em que se espera o alimento que está a paciência, e é no excesso que se nega que estão a fortaleza e a temperança, pois “quem é fiel no pouco será também fiel no muito”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos

Fonte: gazetadopovo

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