Marco Zero: por um sistema alimentar que regenere Gaia.
Esse foi o tema mais do que necessário do Mesa São Paulo, um dos maiores congressos de gastronomia do mundo, que acontece na cidade de São Paulo, organizado pelo Mundo Mesa, revista Prazeres da Mesa.
Bom demais ver, durante tantos anos, a cidade de São Paulo, sendo palco de discussões sobre tendências da gastronomia no Brasil e no Mundo. #ficaadica Leia a matéria completa, que vou te contar tudo!
O Mesa São Paulo reúne uma série de atividades:
Mesa Tendências (congresso com palestras de profissionais do mundo todo),
Mesa ao Vivo (aulas show de chefs de cozinha e especialistas na área de alimentos e bebidas),
Empório Mesa (exposição de produtores artesanais com degustação e venda de produtos).
Bem como, Jantares Magnos (jantares especiais onde vários chefs cozinham juntos, criando menu a partir de um tema).
Estive lá entre os dias 18 e 20 de novembro e quero compartilhar com você aprendizados fundamentais.
Assisti palestras de muitos seres humanos incríveis que subiram ao palco para compartilharem suas experiências.
Antes de mais nada, chegamos num ponto em que a sustentabilidade já não é um diferencial, é uma necessidade. Ser sustentável é uma obrigação coletiva.
Enfim, a questão é que passamos do ponto! Então, agora o caminho é permanecer sustentável e investir na regeneração de Gaia.
Gaia, Geia ou Gé
Na mitologia grega, é a Deusa da Terra, Mãe geradora de todos os deuses e criadora do planeta.
Nascida do Caos, foi a ordenadora do Cosmos, acabando assim com a desordem e a destruição em que aquele se encontrava, criando a harmonia.
“Marco Zero: por um sistema alimentar que regenere Gaia”
Em primeiro lugar, ao longo dessa matéria você lerá sobre muitos temas que foram debatidos e especialistas que apresentaram suas ideias.
Porém, resolvi começar por um grande debate que, para mim, foi o principal evento do Mesa Tendências. Pois, além de reunir as maiores autoridades em pesquisas sobre a alimentação no Brasil, resumiu a essência de todo o evento.
Que lição de vida eu aprendi! Você tem fome de quê?
Sim, num dos maiores congressos de gastronomia do mundo falamos da fome e da regeneração.
Afinal a insegurança alimentar já atinge quase 60% da população brasileira e qualquer cozinheiro do mundo só consegue ficar feliz se todos à sua volta estiverem bem alimentados.
Curioso é que as pessoas não precisariam passar fome. O mundo tem capacidade de produzir alimentos suficientes pra 11 bilhões de pessoas e somos 7 bilhões. Alimentos existem ou podem ser produzidos!
O que falta é uma decisão da sociedade que a fome é inaceitável, que o desperdício é inaceitável, que governos que compactuem com a pobreza e a miséria são inaceitáveis.
É uma questão humana mesmo! É uma questão de como enxergamos o outro além do nosso próprio umbigo.
Precisamos repensar tudo, inclusive a forma que produzimos e consumimos os alimentos. A mesa de quem come também está pobre de variedades .
As espécies estão desaparecendo (já acabamos com 75% delas). A biodiversidade sumindo. O planeta vai sendo devorado.
A natureza já sabe que, sozinha, ela sobrevive e renasce. Os seres humanos estão pagando pra ver.
A boa notícia é que, por hora, temos soluções!
Painel Marco Zero, por um sistema alimentar que regenere Gaia
Debatedores:
Frei Betto ( Fome Zero),
Carlos Monteiro (Guia Alimentar da População Brasileira),
Carlos Nobre (cientista brasileiro especialista em estudos de mudanças climáticas e impactos na produção de alimentos),
Alex Atala (chef e grande defensor dos produtores artesanais e locais),
Alessandra Luglio (nutricionista e pesquisadora dos impactos da produção de alimentos no planeta).
Frei Betto (idealizador do Fome Zero)
“Quando a gente celebra alguma alegria na vida tem que ter comida e bebida.
Nós seres humanos não encontramos outra maneira de celebrar a vida
senão através da alimentação.
Porque a alimentação é que nos assegura a vida biológica.
Depois do respirar, a alimentação é um direito humano fundamental”.
Dessa forma, abriu Frei Betto sua apresentação, acrescentando que nós não temos educação nutricional e desconhecemos o que cada alimento provoca no nosso organismo.
Bem como, mal sabemos sobre nossas bocas e para que servem a língua, a saliva e os dentes.
Pensando em tudo isso nisso, ele propõe diversos exercícios em suas oficinas na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) .
Apresentando dados, afirmou que hoje no mundo nós temos quase 900 milhões de pessoas em fome crônica mas, por outro lado, já são 2 bilhões e 300 milhões em obesidade mórbida.
No Brasil a mesma coisa: 60% das crianças de 5 a 14 anos estão com obesidade por falta de educação nutricional.
Enfim, concluiu sua participação dizendo:
“Nós temos que criar um sistema em que todas as pessoas independentemente
de cor, etnia, religião ou condição social,
tenham assegurados os três direitos fundamentais:
alimentação, saúde e educação.
Sem isso a nossa humanidade não terá futuro.
Eu acredito que teremos futuro.
Vamos guardar o pessimismo para dias melhores!”
Carlos Nobre (cientista brasileiro especialista em estudos de mudanças climáticas e impactos na produção de alimentos).
“Não é um exagero dizer que nós estamos agora no século XXI enfrentando o maior desafio que a humanidade já enfrentou, pelo menos desde a época das civilizações”.
O cientista brasileiro, que acabou de chegar da COP26, conseguiu explicar de forma bem prática e objetiva, como você lerá a seguir, por quais motivos e como as mudanças climáticas afetarão a produção de alimentos.
Nós só avançamos por estarmos há 11 mil anos numa época geológica chamada Holoceno, que foi a mais estável desde que existem Homo Sapiens – em 250 mil anos na história climática do planeta.
Essa estabilidade com uma pequena variação de temperatura foi o que permitiu o surgimento da agricultura. E, com o cultivo dos alimentos, a criação das civilizações, principalmente nos últimos 6 mil anos. Antes só haviam grupos de caçadores, pescadores e coletores, que não se fixavam numa terra.
Revolução Industrial
Porém, as nossas atividades pós revolução industrial com a queima dos combustíveis fósseis, começando no final do século XVIII mas, principalmente a partir de 1850, iniciaram um processo de transformação de enorme impacto no planeta.
O famoso cientista Arrhenius (1859 – 1927) da tabela periódica, já dizia que se dobrássemos a concentração do gás carbônico na atmosfera, a temperatura subiria 5 graus.
Em agosto de 2021, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) lançou seu último relatório mostrando que as anomalias e extremos climáticos que estamos vivendo hoje são advindos das mudanças que fizemos no clima do planeta.
Dessa forma, já aumentamos em 50% a concentração do gás carbônico, em 150% do metano e vários outros gases do efeito estufa, em comparação ao período pré-industrial.
Enfim, temos aquecido o planeta numa velocidade que não acontece há 30 milhões de anos e precisamos fugir dessa trajetória de eco suicídio planetário.
Limites Absolutos
“Existem limites absolutos!
Por mais que seja muito importante também desenvolver uma agricultura mais resiliente
e há inúmeros esforços mundiais de pesquisa e de ciência pra desenvolver,
aplicar e implementar uma agricultura mais resiliente a essas mudanças,
que já se tornaram irreversíveis.
Há limites absolutos!”.
Uma folha não faz fotossíntese quando a temperatura passa de 43 graus.
Então, se o planeta continuar aquecendo nesse ritmo vai desaparecer a produção e o funcionamento da biosfera nos trópicos, nos lugares muito quentes e, no verão, mesmo em latitudes médias, porque a maior parte do tempo a temperatura estará acima de 43 graus.
Esse limite também existe para inúmeros produtos da agricultura: 42 graus temperatura máxima para o milho e o arroz, 40 graus girassol e algodão, 35 para batata, feijão, soja e cana-de-açúcar, 34 café e 30 trigo.
Enfim, temos que lembrar que, o Brasil, que é o quarto maior produtor de alimentos do mundo, é um país tropical.
Historicamente somos, da mesma forma, o quarto maior emissor dos gases do efeito estufa, atrás de China, Estados Unidos e Índia.
Porém, 80% dessas emissões históricas do Brasil, desde 1850, são desmatamento da Mata Atlântica, da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal e da Caatinga.
Então esse é o grande desafio e o Brasil deveria ter o desejo político e o desejo da sociedade de vencermos esse desafio. De sermos um país liderando essa agricultura regenerativa em termos mundiais.
Carlos Monteiro (Guia Alimentar da População Brasileira)
O criador do Guia Alimentar da População Brasileira começou sua apresentação com duas explicações.
O que é um sistema alimentar?
Envolve os agentes que produzem os alimentos, processam, distribuem e as práticas desses agentes. Bem como, os consumidores, o ambiente econômico, cultural e natural onde essas ações ocorrem.
Pra que serve um sistema alimentar?
A função primordial é nutrir os seres humanos. Não só nos aspectos biológicos com os nutrientes necessários, mas também nos nutrir nos aspectos mais simbólicos e culturais da alimentação.
Tudo isso precisa ser feito sem destruir a natureza. Sem destruir o próprio sistema que vai nos entregar os alimentos. Então, o sistema tem que ser sustentável.
Evidências da falha do sistema:
- Bilhões de pessoas no planeta que ainda não tem acesso aos alimentos, às 3 refeições por dia.
- Pandemia (epidemia mundial) de obesidade e das consequências como diabetes e doenças do coração. Várias doenças crônicas relacionadas à má alimentação.
- Prejuízos irreversíveis para a natureza e o próprio sistema.
Qual a relação do sistema alimentar e a pandemia de obesidade e outras doenças crônicas?
“A relação é fortíssima e esse é o tema que nosso grupo de pesquisa na USP tem trabalhado nos últimos 10 a 15 anos”.
Há várias causas. Mas, a causa decisiva segundo os estudos é uma mudança substancial na natureza do processamento de alimentos.
O processamento de alimentos é absolutamente essencial. As sociedades humanas processam os alimentos há milênios. Sem isso não teríamos as civilizações.
Mas qual era o papel desse processamento de alimentos na época? Porque se processavam alimentos?
Essencialmente para aumentar a duração, algo fundamental para a segurança alimentar. Os alimentos precisam ser conservados para não se deteriorarem e, igualmente, precisamos consumí-los na sua integralidade.
O segundo papel importante da indústria foi tornar mais simples, prática e diversificada a preparação culinária de alimentos.
Como é que a indústria faz isso?
Secando grãos de cereal, transformando-os em farinhas e, então em massas e pães. Pasteurizando o leite, fermentando-o para virar queijo, iogurte, extraindo a manteiga. Bem como, extraindo azeites e óleos de sementes, por exemplo.
Como a indústria começou a produzir substitutos dos alimentos e das preparações culinárias.
Numa escala muito grande a partir da década de 80, a indústria percebeu que se combinasse amido, açúcar, óleos, gorduras e isolados proteicos extraídos de três ou quatro variedades de alta produtividade na agricultura como a soja, o milho e a cana-de-açúcar, ela conseguiria criar muitos produtos.
Começaram a pensar que: se conseguissem fazer o processamento utilizando ingredientes de muito baixo custo e se dessem a esses produtos uma aparência sensorial interessante, extremamente conveniente, prontos para consumo, sem precisar de preparação culinária nenhuma, alcançariam seu propósito.
Adicionando quaisquer dos mais de 6 mil aditivos alimentares autorizados pelas agências oficiais em todo o mundo, incluindo aí os mais de 2 mil aromatizantes, esses “alimentos” ficariam igualmente ainda mais atrativos.
Dessa forma, utilizando maçicamente ingredientes de baixo custo, bem como equipamentos, processos tecnológicos e embalagens muito sofisticadas, a indústria conseguiu atingir os resultados esperados.
O termo ultraprocessados
“Esses produtos nós chamamos em 2009 de alimentos ultraprocessados. Nosso grupo na USP criou essa classificação que divide os alimentos não mais se eles tem proteína ou carboidrato ou gordura, mas como eles foram processados. E qual o propósito do processamento”.
Os alimentos ultraprocessados são formulações industriais que tem o principal papel de substituir os alimentos nas preparações culinárias, gerando lucros enormes.
Então, foi assim que a indústria chegou a cereais matinais e barras de cereal que não tem cereal, sucos de frutas que não tem frutas, macarrão que não é macarrão, hambúrguer que não é hambúrguer, sorvete que não é sorvete, chocolate que não é chocolate.
Mas são muito parecidos e tem custos de produção muito baratos. Dessa forma, a indústria pode comercializar a preço reduzido e com isso tem tido muito sucesso em substituir os alimentos de verdade e preparações culinárias.
Até aí parece então que é uma grande descoberta, mas não é bem assim!
A ciência e a epidemologia descobriram que, além de trazer muitos lucros para a indústria e tornar esse setor de ultraprocessados tão lucrativo como a indústria de tabaco, por exemplo.
Além disso, houveram prejuízos incalculáveis para as sociedades humanas e esses prejuízos na área de saúde são enormes, sem falar nos prejuízos ambientais.
Basicamente, o que as evidências tem mostrado, primeiro no Brasil porque essa proposta da criação da categoria de alimentos ultraprocessados foi feita por nós, depois em vários países do mundo (França, Estados Unidos, Espanha, Reino Unido, Austrália, entre outros) é o seguinte:
Quanto mais uma pessoa consome alimentos ultraprocessados, pior a qualidade da dieta, menos proteína, menos fibra, mais açúcar, menos vitaminas e sais minerais e maior risco de obesidade, de diabetes e dislipidemia (níveis elevados de lipídios, ou seja, gorduras no sangue), inclusive em crianças.
“Hoje na ciência, na relação entre alimentação e saúde,
é consensual que esses alimentos são venenos,
porque não tem o que a gente precisa
e tem uma série de outros compostos químicos que não tem nada a ver com os alimentos.
São colocados ali apenas para viabilizar aquele produto”.
O que fazer com relação a isso?
Antes de mais nada, esclarecer a população sobre esse problema.
O marketing dos produtos ultraprocessados é extremamente sofisticado e viável pela lucratividade. Nas campanhas eles tentam passar a ideia que aqueles produtos são tão bons ou até melhores do que os alimentos de verdade, pois são fortificados, tem vitaminas, fibras,…
“Então, é muito importante advertir a população que a ciência não endossa essa opinião.
Ao contrário, esses alimentos são causa de problemas.
Você tem não só obesidade e diabete, mas doenças do coração,
vários tipos de câncer, doenças dos rins, do fígado
e a própria expectativa de vida dos consumidores de alimentos ultraprocessados é menor”.
Esclarecer a população
É preciso esclarecer à população o que é uma alimentação saudável no século XXI e os malefícios dos ultraprocessados, mas só isso não basta. Você precisa tornar exequível essa recomendação criando políticas públicas.
“Os refrigerantes, que são ícones dos alimentos ultraprocessados no Brasil, eles são subsidiados. As engarrafadoras de refrigerantes na Zona Franca de Manaus não pagam impostos e recebem de volta impostos que elas não pagaram em função de estarem na Zona Franca de Manaus. Só pra dar um exemplo de como a política fiscal no Brasil precisa ser repensada completamente”.
Os produtores de alimentos naturais é que deveriam ser protegidos e terem mais subsídios.
“Teríamos que regular o marketing dos alimentos ultraprocessados.
Os alimentos ultraprocessados são muito parecidos com o tabaco.
Eles viciam e provocam dependência. Eles só causam doenças.
Qual é a razão de você ter propaganda de um alimento que é um veneno?
Vários países estão caminhando nesse sentido.
Na América Latina nós temos o Chile e o México.
Na França, no Canadá, no Reino Unido você já tem restrições
quanto à propaganda de alimentos ultraprocessados.
A gente não vê isso aqui no Brasil.
Vai custar um tempo, mas a gente vai ter a regulação do marketing dos ultraprocessados”.
“Mas tem um outro aspecto que o Brasil caminhou bem. Além do Guia Alimentar, o Programa Nacional de Alimentação Escolar no Brasil é um espetáculo!
Graças a um grupo de nutricionistas extremamente comprometidos, foi construído um programa, regulamentado na Constituição de 1988, que é um modelo mundial, porque compra alimentos da agricultura familiar e regula a presença de alimentos processados e ultraprocessados na alimentação escolar. Então, o programa é uma grande fonte de demanda para alimentos saudáveis”.
Alessandra Luglio (nutricionista e pesquisadora da alimentação)
“Não é difícil entender que caminhos devemos seguir daqui pra frente.
E daqui pra frente tem que ser hoje, não pode ser amanhã.
O sistema sabe do problema, os dados estão claros,
porém a gente vai mexer numa engrenagem,
numa máquina que é movida para o lucro.
Enquanto a gente colocar o lucro acima de pessoas, ambiente e todos os seres,
a gente não muda o sistema e nós sofreremos as grandes consequências dos nossos próprios atos”.
Enfim, a escolha de poucos deixa muitos vulneráveis.
Nutricionista há 25 anos, Ale Luglio resolveu deixar o consultório e foi pro mundo estudar e pesquisar como poderia trabalhar a comida de uma forma mais transformadora.
“Eu chamo todo mundo que trabalha com gastronomia pra entender a produção dos alimentos. Eu fui trabalhar na indústria pra entender o que a indústria fazia. Hoje eu entendo perfeitamente. Fui estudar sobre agroecologia, fiz cursos de agricultura sintrópica com Ernst Götsch e outros pra entender como se produz alimentos e procurar formas alternativas”.
Papel Fundamental da Agricultura
A agricultura tem um papel crucial no que estamos vivendo em questões ambientais. Esse sistema que criamos para produzir comida não está funcionando, então temos que fazer de outra forma.
“Lá atrás alguém inventou que o transgênico era bom para melhorar a soberania alimentar, pra produzir mais alimentos de uma forma mais segura. Que segurança é essa! A gente esquece que tudo aquilo que a gente produziu no laboratório, as substâncias sintéticas, elas tem um poder de se acumular no ambiente, porque não entram na cadeia natural da vida, onde nada se cria e tudo ser transforma. Aquilo não se transforma em nada se acumula”.
Pensando na questão do consumo excessivo de proteínas animais, ela que é vegana, explica que gastamos áreas colossais de terra para plantar comida que, basicamente, vai alimentar os animais, que depois vão nos alimentar.
“A gente pega essas calorias vegetais prontas pra consumo e entrega para o bicho porque a gente tem a cultura alimentar baseada em proteínas animais”.
Proteínas
Se você ficar numa ilha deserta e tiver que escolher entre feijão e carne, o que vai te nutrir melhor é o feijão, alimento muito mais completo. Porque a gente não pode usar isso contra a fome? Hoje 1 kg de feijão cozido vira 3 kg de feijão no prato e 1kg de carne vira 600g porque perde água.
“Então, a gente consegue criar um novo país tirando das mãos dos gigantes das commodities da pecuária e investindo na alimentação à base de vegetais, conseguindo alimentar muito mais pessoas com mais eficiência energética. O que a gente tem de terra pra agricultura já é mais que suficiente e aí vai sobrar espaço e podemos fazer um grande mutirão de regeneração, plantar florestas onde a gente não precisa mais de terras descampadas para produzir comida. Utilizando os alimentos da floresta para comer”.
Vivemos uma monotonia alimentar: arroz, feijão e olhe lá, bife e batata frita no prato. E quando tem verdura é o monopólio do alface americano com a rodela de tomate e se o cara já se sente o ás de comer vegetal, ele põe cenoura ralada.
Alex Atala
“Eu fico super preocupado em falar de futuro porque tenho filhos
e como é que eu vou engajar esse jovem
se eu só passar notícias tristes pra ele?
É preciso acender a chama da esperança, da crença, da fé,
do prazer de estar vivo, do prazer de estar no planeta Terra,
do prazer de fazer parte da natureza
e saber que a natureza tem potencial de se regenerar”.
O chef fechou o painel, esperançoso que a gastronomia pode mudar a realidade atual.
“Convido vocês a pensar que comprar, comer, cozinhar, servir é um ato político, é um ato ambiental, é seu exercício da cidadania. É fundamental que a atitude de cada um de nós seja refletida”.
Viajamos e voltamos pra casa com moedinhas, moedinhas que talvez nunca mais voltemos àquele lugar, mas não jogamos fora essas moedinhas. Nós acreditamos que moedas tem valor, essa é uma crença humana.
O Valor do Alimento
Se nós não jogamos dinheiro fora, porque a gente joga alimento fora, que muitas vezes vale muito mais do que aquela moedinha?
Será que é porque a natureza me deu de graça? Ela é tão generosa que nunca nos fez falta?
O sobrevalor do dinheiro seria a subestimação extrema do valor do alimento?
A gente vive num mundo maluco de inversão de valores.
“Eu nasci numa cidade chamada São Paulo onde todos os domingos se comia pizza, um dos orgulhos dessa cidade sempre foi pizza. E hoje nós temos mais sushi bares do que pizzarias.
Em menos de 20 anos nós mudamos a cultura dessa cidade e em menos de 10 nós precisamos tornar a comida, o alimento, mais sexy, mais instagramável para ser publicado nas mídias sociais.
O valor está errado! A comida tem que ser mais solidária, mais sustentável e sobretudo mais humana”.
+ Estudos, Ideias e Planos de Ação
Fora o painel, muitos especialistas passaram pelo palco do Mesa Tendências apresentando seus estudos, ideias e planos de ação.
Lei dos Produtos Artesanais de Origem Animal do Estado de São Paulo
Logo na abertura do evento, o Governador João Dória sancionou a lei aprovada em 27 de novembro de 2021 na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo.
O Projeto de Lei 607 / 2021 estabelece normas para a manipulação e o beneficiamento de produtos comestíveis de origem animal, sob a forma artesanal, bem como sobre sua inspeção e fiscalização sanitária no Estado.
Essa lei, marca uma nova etapa de desenvolvimento na cadeia alimentar do Estado, desburocratizando e destravando negócios que podem movimentar R$4 bilhões e beneficiar milhares de famílias.
Foi criada da mesma forma que todas as outras leis deveriam ser criadas, com a participação da sociedade civil, com o envolvimento de toda a cadeia de pequenos produtores, chefs, especialistas na área e pessoas engajadas na causa.
Pequenos produtores são fundamentais na construção da gastronomia em qualquer grande país do mundo. Aqui no Cuecas na Cozinha desde o início, há mais de 15 anos eu falo da importância de valorizar o artesanal.
Como a natureza regenerou um homem do campo.
O chef Jefferson Rueda contou como a pandemia mexeu com sua cabeça e levou-o à depressão e à reclusão no mato.
E, por outro lado, como o Sítio Rueda, comprado por sua esposa Janaína, também chef, fez com que ele começasse a superar essa fase, reconectando-se com suas origens, voltando a plantar e a produzir alimentação orgânica, que agora é servida em pratos da A Casa do Porco Bar, um dos restaurantes mais premiados do mundo.
Uma tragédia que mudou muitas vidas.
Depois do assassinato do seu irmão, Thiago Vinícius decidiu que sua mãe (conhecida como Tia Nice) nunca mais choraria de tristeza.
Ao lado de outros colegas que queriam mudar a realidade no bairro do Campo Limpo, onde mora, montou a Agência Solano Trindade. Que trabalha em três pilares:
Inovação Social – estimular o afroempreendedorismo;
Cultura Popular – promover atividades culturais diversas e valorizar os artistas locais;
Sistemas Alimentares – fortalecer a rede de distribuição de alimentos saudáveis, criando pontes para os desertos alimentares das periferias.
Organicamente Rango
Hoje, um dos braços de Sistemas Alimentares é o restaurante Organicamente Rango, onde Tia Nice, sua mãe, tem a felicidade de utilizar em seus pratos, ingredientes orgânicos. Dia desses ela recebeu pra cozinhar em uma ação social, o chef Alex Atala.
Thiago Vinícius entrou em 2021 na lista 50 Next. Foi um dos 50 jovens de 34 países do mundo destacado como empreendedor de enorme contribuição para o mundo da gastronomia.
O 50 Next é uma lista criada pela revista britânica Restaurant, que também publica o 50 Best, destacando os melhores restaurantes do mundo.
Olhar o passado, enxergar o futuro
Num Brasil de muito mar são vários os pescadores que dependem dos peixes para sustentarem suas famílias.
Não é diferente na praia do Bonete em Ilhabela (litoral Norte de São Paulo). Acontece que por lá, até pouco tempo, não havia energia elétrica, a pesca artesanal vinha decaindo, junto com o preço pago pela cooperativa aos pescadores.
Se o único método de conservação era o gelo e não havia energia elétrica, ficava impossível conservar os peixes.
Nesse cenário surge o projeto social A.Mar criado pelo empresário Rodolfo Vilar e um grupo de amigos frequentadores do Bonete.
Sabemos que a energia elétrica é algo recente na história da humanidade, mas o homem sempre pescou desde o início da sua existência. Pergunta: como ele conservava seus peixes?
Fishlab
O Fishlab, laboratório criado para pesquisas que podem ser replicadas pelo Brasil e ao redor do mundo, traz muitas respostas. Resgata técnicas antigas de conservação: defumação, conserva, fermentação, dryaged, entre outras.
E isso tem revolucionado não só o preparo dos peixes, agora utilizados por chefs brasileiros e à disposição para compra na internet, como também valorizado o produto, trazendo renda para a comunidade.
Tais métodos se alinham ao desenvolvimento de uma pesca sustentável.
Os cogumelos podem salvar o planeta
Antes de mais nada, eu amo cogumelos! E você?
A gente não faz ideia, por exemplo, de quantos cogumelos podemos encontrar na natureza. Da mesma forma, fazemos menos ideia ainda de que os poucos cogumelos que hoje consumimos não são espécies brasileiras.
A boa notícia é que especialistas em fungicultura como o cientista Daniel Gomes, da Associação Nacional dos Produtores de Cogumelos (ANPC) já mapearam + de 70 espécies de cogumelos brasileiros comestíveis.
Espécies silvestres que começam a abastecer chefs de cozinha e que, se fizermos um esforço coletivo, chegarão também às nossas casas.
Além de seu papel incrível na regeneração, afinal são fungos que se alimentam da decomposição de matéria orgânica, os cogumelos são um dos alimentos mais nutritivos e eficientes na relação investimento de produção e retorno alimentar.
Dê só uma olhada nessa tabela comparativa de consumo de recursos x resultados.
Seja PANC!
Irany Arteche se intitula como nutricionista não convencional. Mestre em fitotecnia, ela criou em 2008 junto com Valdely Kinupp o termo PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais).
À princípio, muita coisa que a gente encontra andando por aí e pensa que é mato, na verdade é alimento, bom e nutritivo.
O trabalho da Irany jogou luz sobre um potencial alimentar gigante no Brasil, de ingredientes que crescem naturalmente, em qualquer pedacinho de terra, de qualquer cidade. A praça do seu bairro, por exemplo, pode ter um monte desses alimentos.
Hoje chefs de cozinha e consumidores finais tem a possibilidade de colocar diversas PANCs em seu cardápio diário.
Agora, Irany quer estender o seu conceito PANC, quer que todas as pessoas tenham um Pensamento Alimentar Não Convencional.
“A cozinha precisa economizar dinheiro, ambiente e tempo. Menos é Menos!”
Protagonismo Alimentar com Base Vegetal
A nutricionista vegana e grande pesquisadora da alimentação, Alessandra Luglio, destacou a necessidade de voltarmos o Protagonismo Alimentar para a Base Vegetal.
Atenta a realidade, ela não impõe o veganismo à audiência, mas alerta sobre a necessidade da redução drástica do consumo de carne, especialmente a de boi.
Então, o raciocínio é bem simples: temos gastado muitos recursos naturais para a produção de proteína animal, que fica cada dia mais insustentável.
Os animais têm consumido, basicamente, soja e milho transgênicos, monoculturas degradantes e poluidoras. No caso dos bois a situação se agrava ainda mais pela derrubada de matas em larga escala para pastagem.
Se boa parte desse esforço se voltasse para a produção de ampla variedade de proteínas vegetais, não transgênicas e nem carregadas de agrotóxicos, diga-se de passagem, teríamos muito mais alimentos com muito menos gasto de recursos naturais.
“Monotonia no prato é monocultura (e agrotóxicos) no campo” diz ela.
Big Food – o Poder das Indústrias de Ultraprocessados
Antes de projetar o recém-estreado documentário brasileiro Big Food, Georges Schnyder, engenheiro de produção, diretor executivo do Mundo MESA (organizador do evento), presidente do Slow Food Brasil e grande articulador da proteção e desenvolvimento sustentável das cadeias de produção de alimentos; contextualizou, de forma prática e objetiva, a realidade que a indústria de alimentos ultraprocessados nos impõe.
A partir de 1950 apenas 5 grandes empresas multinacionais, hoje são 10 que controlam 75% do mercado mundial de sementes, começaram a dominar a forma mais essencial da alimentação humana. Afinal, tudo começa com a semente!
Essas empresas, com gigantesco patrimônio econômico, agem sobre governos, políticas governamentais, institutos de pesquisas, profissionais de saúde, políticos de todas as esferas e se utilizam de um multimilionário investimento em marketing para continuar expandindo o seu domínio sobre o destino da alimentação humana.
O destino da alimentação humana
Cabe lembrar que, hoje a alimentação mundial é feita basicamente com soja, milho e trigo; a grande maioria transgênicos. Sementes desenvolvidas em laboratório que trazem alta produtividade e lucros estrondosos.
O domínio dessas empresas de sementes se expandiu num acordo de interesses com outras 10 indústrias mundiais gigantes de ultraprocessados, que dominam a maior parte das marcas que existem no mundo.
Detalhe, se você ler os rótulos dos produtos dessas empresas haverá milho, soja, trigo e açúcar. Fora conservantes, aromatizantes, espessantes, etc.
Nesse contexto foi apresentado o documentário Big Food – o Poder das Indústrias de Ultraprocessados, dirigido por Anderson dos Santos e Chica dos Santos, com diversas premiações internacionais em festivais independentes e que pode ser assistido no site .
Big Food – Sinopse
No Brasil, enquanto milhares de pessoas sofrem de doenças relacionadas à má alimentação, as indústrias de alimentos e bebidas ultraprocessados, que têm como produtos salgadinhos, lasanhas congeladas e refrigerantes, vêm se tornando uma das maiores barreiras para a implementação de políticas públicas que poderiam facilitar o acesso à alimentação saudável. Os prejuízos bilionários estão sendo pagos com nossas próprias vidas.
No documentário, diferentes especialistas analisam o poder que essas corporações do ramo de alimentos e bebidas ultraprocessados concentram, em nível nacional e internacional, e alertam sobre as suas perigosas relações com o poder público.
O mapa da fome
A historiadora Adriana Salay, é uma das maiores pesquisadoras e autoridades no Brasil quando o assunto é fome.
Fundadora, ao lado de seu marido Rodrigo Oliveira (Mocotó), do projeto Quebrada Alimentada, premiado internacionalmente.
Seus estudos tem como referência o trabalho Geografia da Fome, publicado em 1946 por Josué de Castro. Onde então, surge pela primeira vez a classificação de fome endêmica e epidêmica, adotadas até os dias de hoje.
A fome endêmica é a cotidiana, de não-crise, causada pela estrutura social, resultado da nossa desigualdade social, uma das maiores do mundo.
A fome epidêmica, a epidemia de fome, em um contexto de crise, coloca numa situação de fome uma parcela muito maior da população.
Epidemia de Fome
É o que estamos vivendo hoje no Brasil: uma epidemia de fome. Cabe esclarecer que a fome não é causada pela pandemia, foi agravada por ela.
Chegamos a um ponto tão grave, um modelo social tão deturpado, que hoje 59,4% dos brasileiros, ou seja, mais da metade da população sofre algum tipo de insegurança alimentar. Pessoas que não sabem se terão condições de fazer todas as suas refeições diárias.
Por outro lado, sofremos, igualmente, uma epidemia de obesidade porque, cada dia mais o preço dos ultraprocessados se barateia, cada dia mais os ingredientes in natura se distanciam do consumo da maioria da população e cada dia mais as pessoas se alimentam com calorias vazias e prejudiciais à saúde.
Jantar Magno
Sobre um jantar especial preparado por mulheres incríveis, que eu tive a oportunidade de participar. A chef Telma Shiraishi recebeu em seu restaurante Aizomê as chefs Bel Coelho, Helena Rizzo, Janaína Rueda e Kafe Bassi.
O evento “Explorando o Mundo Vegetal” aconteceu na Japan House dentro da programação de jantares magnos promovidos pela Mesa São Paulo, que teve como tema principal desse ano, a regeneração.
Foi emocionante ver tantas mulheres juntas cozinhando, montando pratos, servindo, retirando… recomeçando tudo de novo.
Foi um dia pra dizer obrigado por ter sobrevivido nessa pandemia! Para sentir, mais uma vez, o coração de uma cozinha pulsando.
Saímos todos regenerados, esperançosos de novos dias e cientes do nosso papel para que esses novos dias aconteçam.
Afirmo: Não só é possível fazer alta gastronomia com vegetais, como também ela é mais criativa, colorida, diversa, saudável e regenerativa. As chefs provaram isso em todos os seus pratos!
Petiscos (todas as chefs): Dragée de cupuaçu e cogumelo porcino, Embutido de berinjela, Bolinho de batata-doce roxa e trigo sarraceno, Coco com ponzu de melancia e Kanten de algas.
Principais
Helena Rizzo – Tomate, jabuticaba, tagete e consommé frio de tomate fermentado.
Bel Coelho – Gnocchi de banana da terra, quiabo grelhado e molho de castanha do Pará e cogumelo Ianomâmi.
Janaína Rueda – Couves e flores com caldo de cogumelos titãs.
Telma Shiraishi – Tirashizushi e tempurá de vegetais do mar e da terra.
Kafe Bassi – Jasmin Manga (tagliatelle de manga verde, chá verde, coco, sorbet de manga e calda de jasmin)
Foto da Chefs: Dangelo Fotos para Prazeres da Mesa.
Resumo
Repense, regenere! Cada um de nós é agente fundamental dessa mudança!
Por aqui gostamos, desde sempre, de cozinhar ideias!
Fonte: cuecasnacozinha