Stephen Hicks é bolsista de pesquisa em sismologia computacional no University College de Londres (UCL); Kristian Svennevig é pesquisador sênior no departamento de mapeamento e recursos minerais do Serviço Geológico da Dinamarca e da Groenlândia. O texto abaixo saiu originalmente no site The Conversation, que publica artigos escritos por pesquisadores. Vale a visita.
Cientistas especialistas em terremotos detectaram um sinal incomum nas estações de monitoramento usadas para detectar atividade sísmica em setembro de 2023, entre eles nós. Vimos este sinal nos sensores em todos os lugares, do Ártico à Antártica.
Ficamos perplexos — o sinal era diferente de qualquer outro registrado anteriormente. No lugar do “estrondo” rico em frequências típico dos terremotos, tratava-se de um zumbido monótono, contendo apenas uma frequência de vibração. Ainda mais intrigante foi o fato de o sinal ter continuado por nove dias.
Inicialmente classificado como um “objeto sísmico não identificado” (USO, na sigla em inglês), a fonte do sinal acabou rastreada até um enorme deslizamento de terra no remoto Fiorde Dickson, na Groenlândia. Um volume impressionante de rocha e gelo, suficiente para encher 10 mil piscinas olímpicas, mergulhou no fiorde, desencadeando um megatsunami de 200 metros de altura e um fenômeno conhecido como seiche: uma onda no fiorde gelado que continuou a se deslocar para frente e para trás, cerca de 10 mil vezes em nove dias.
Para contextualizar o tsunami, essa onda de 200 metros tinha o dobro da altura da torre que abriga o Big Ben em Londres, e era muitas vezes maior do que qualquer coisa registrada após terremotos submarinos de grandes proporções na Indonésia em 2004 (o tsunami do Boxing Day) ou no Japão em 2011 (o tsunami que atingiu a usina nuclear de Fukushima). Talvez tenha sido a onda mais alta em qualquer lugar da Terra desde 1980.
Nossa descoberta, agora publicada na revista Science, contou com a colaboração de 66 outros cientistas de 40 instituições em 15 países. Assim como em uma investigação de acidente aéreo, a solução desse mistério exigiu a junção de diversas evidências, desde um grande número de dados sísmicos até imagens de satélite, monitores de nível de água em fiordes e simulações detalhadas da evolução da onda de tsunami.
Tudo isso evidenciou uma cadeia de eventos catastrófica e em cascata, de décadas a segundos antes do colapso. O deslizamento de terra desceu por uma geleira muito íngreme em uma ravina estreita antes de mergulhar em um fiorde estreito e confinado. No final das contas, foram décadas de aquecimento global que afinaram a geleira em várias dezenas de metros, o que significa que a montanha que se erguia acima dela não podia mais se manter de pé.
Águas desconhecidas
Mas além da estranheza dessa maravilha científica, esse evento ressalta uma verdade mais profunda e inquietante: as mudanças climáticas estão remodelando nosso planeta e nossos métodos científicos de maneiras que apenas estamos começando a entender.
É um lembrete claro de que estamos navegando em águas desconhecidas. Há apenas um ano, a ideia de que um maremoto poderia persistir por nove dias teria sido considerada absurda. Da mesma forma, há um século, a noção de que o aquecimento global poderia desestabilizar as encostas do Ártico, levando a deslizamentos de terra e tsunamis em grande escala quase todos os anos, teria sido considerada exagerada. No entanto, esses eventos antes impensáveis agora estão se tornando nossa nova realidade.
À medida que nos aprofundamos nesta nova era, podemos esperar testemunhar mais fenômenos que desafiam nossa compreensão anterior, simplesmente porque nossa experiência não abrange as condições extremas que estamos encontrando agora. Vimos uma onda de nove dias que antes ninguém poderia imaginar que pudesse existir.
Tradicionalmente, as discussões sobre as mudanças climáticas têm se concentrado em olharmos para cima e para fora, para a atmosfera e para os oceanos, com mudanças nos padrões climáticos e aumento do nível do mar. Mas o Fiorde Dickson nos obriga a olhar para baixo, para a própria crosta sob nossos pés.
Talvez pela primeira vez, as mudanças climáticas tenham desencadeado um evento sísmico com impactos globais. O deslizamento de terra na Groenlândia enviou vibrações através da Terra, chacoalhando o planeta e gerando ondas sísmicas que percorreram todo o globo, uma hora após o evento. Nenhuma parte do solo sob nossos pés ficou imune a essas vibrações, abrindo — metaforicamente — fissuras em nossa compreensão desses eventos.
Isso acontecerá novamente
Embora deslizamentos de terra e tsunamis já tenham sido registrados antes, o de setembro de 2023 foi o primeiro a ser visto no leste da Groenlândia, uma área que parecia imune a esses eventos catastróficos induzidos pelas mudanças climáticas.
E esse certamente não será o último megatsunami de deslizamento de terra. Como o permafrost (solo permanentemente congelado) em encostas íngremes continua a se aquecer e as geleiras continuam a derreter, podemos esperar que esses eventos ocorram com mais frequência e em escala ainda maior em todas as regiões polares e montanhosas do mundo. Os declives instáveis recentemente identificados no oeste da Groenlândia e no Alasca são exemplos claros de desastres iminentes.
À medida que enfrentamos esses eventos extremos e inesperados, está ficando claro que nossos métodos científicos e ferramentas existentes talvez precisem ser totalmente reformados para lidar com eles. Não tínhamos um fluxo de trabalho padrão para analisar o evento de 2023 na Groenlândia. Também precisamos adotar uma nova mentalidade, pois nosso entendimento atual é moldado por um clima quase extinto e anteriormente estável.
À medida que continuamos a alterar o clima do nosso planeta, precisamos estar preparados para fenômenos inesperados que desafiam nosso entendimento atual e exigem novas formas de pensar. O solo abaixo de nós está tremendo, tanto literal quanto figurativamente. Embora a comunidade científica deva se adaptar e preparar o caminho para decisões informadas, cabe aos tomadores de decisão agir.
Este texto foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o texto original.
Fonte: abril