Era uma vez um bando de babuínos-verdes (Papio anubis) na savana do Quênia. Como costuma acontecer nos demais grupos da espécie, os do bando em questão viviam segundo a máxima “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Os machos maiores e mais fortes saíam no tapa ou costuravam alianças políticas para definir quem era o chefão do bando. Quem ficava por cima monopolizava sexualmente as fêmeas férteis.
Essa ditadura do patriarcado terminou por conta de uma armadilha involuntária. Os machos brutamontes também eram os únicos que conseguiam acesso aos lixões dos hotéis de safári que existiam na região. As latas de lixo continham uma iguaria cobiçada pelos grandalhões: restos de carne bovina. Só que venenosos, pois vinham de gado com tuberculose.
A doença se espalhou por boa parte do grupo de símios, mas os que mais morreram foram os babuínos “Macho Man” que comiam a carne contaminada. Com isso, macacos do sexo masculino menos agressivos passaram a ter uma relação mais igualitária com as fêmeas, e isso passou a ser uma característica aparentemente cultural do grupo – até os machos que saíam de outros bandos na adolescência e se juntavam aos babuínos “paz e amor” adquiriam esse tipo de comportamento.
Essa novela da vida animal foi narrada originalmente pelo primatólogo e neurocientista americano , que monitorou os babuínos do Quênia durante décadas. A história é só um dos exemplos de como as relações de poder entre machos e fêmeas de mamíferos, como nós, são muito mais complicadas e maleáveis do que parecem. Ok, é verdade que não faltam exemplos de machos déspotas – mas, mesmo nesses casos, dadas as condições certas, uma relação mais equilibrada pode acabar aparecendo, como nos mostram os babuínos de Sapolsky.
Fazendo as contas
Boa parte da visão tradicional sobre poder e sexo no mundo animal – com machos agressivos e fêmeas obrigadas a submeter-se – depende de uma espécie de teoria econômica da reprodução, estudada há décadas pelos biólogos. O resumo da ópera é que os óvulos das fêmeas são “caros”, enquanto os espermatozoides dos machos são “baratos”, o que acaba tendo uma série , especialmente para os mamíferos.
Em primeiro lugar, os óvulos são caros porque são raros. As fêmeas de mamíferos dependem de um ciclo menstrual que deixa seus óvulos “no ponto” para serem fecundados e gerarem filhotes com sucesso. Isso acontece com uma frequência relativamente baixa – uma vez por mês, mais ou menos, no caso das mulheres, e às vezes bem mais raramente em outras espécies. De quebra, no caso dos mamíferos, poucos óvulos ficam disponíveis para a fecundação a cada rodada do ciclo.
Por outro lado, espermatozoides são baratíssimos. Centenas de milhões deles são despejados para fora em cada ejaculação, e esse processo pode se repetir várias vezes por dia, deixando a maturação de óvulos e o ciclo menstrual para trás em termos de quantidade e velocidade.
Na prática, isso significa o seguinte: enquanto as fêmeas podem engravidar apenas uma vez a cada vários meses ou mesmo vários anos, os machos são tecnicamente capazes de emprenhar diversas fêmeas num único dia.
Em tese, essas diferenças básicas criariam incentivos “econômicos” muito diferentes para cada sexo na hora de produzir bebês. As moças acabam preferindo investir numa renda fixa segura, digamos: preferem poucos e bons parceiros, que aumentem a chance de que seus filhotes sejam saudáveis (seja porque o pai tem um DNA de excelente qualidade ou, muito mais raramente, porque a ajuda a cuidar das crias).
Já os rapazes, de qualquer espécie, tendem a procurar maior quantidade de parceiras e engajam-se pouco ou nada na criação dos rebentos. Se conseguirem formar um harém só deles,
melhor ainda.
Essa é uma lógica geral da “guerra dos sexos”, mas o contexto de cada espécie e dos ambientes em que cada uma vive faz uma tremenda diferença.
É o que explica um estudo publicado recentemente no periódico científico Trends in Ecology and Evolution, coordenado pelas biólogas francesas Eve Davidian e Elise Huchard.
Nessa pesquisa, elas examinaram os padrões que conectam sexo e poder numa ampla gama de mamíferos e verificaram que os machos costumam adotar caminhos semelhantes rumo ao domínio absoluto, enquanto os contra-ataques evolutivos das fêmeas adotam estratégias mais variadas. A chave, dos dois lados, é ser capaz de controlar quando e com quem fazer sexo, propõe a dupla.
Gorilas mal dotados, hienas com pseudopênis
O caminho mais óbvio e fácil de entender como isso funciona, para quem já está familiarizado com coisas semelhantes nas sociedades humanas, é a intensidade do que os biólogos chamam de dimorfismo sexual. Ou seja, a diferença de características entre machos e fêmeas, especialmente no que diz respeito ao tamanho e massa muscular.
Como a recompensa de ter várias parceiras é maior para os machos – na forma de mais filhotes que levem seus genes para a frente –, o incentivo para que eles sejam capazes de impor seu monopólio, se necessário pela força, também aumenta. Isso acaba favorecendo a prevalência de machos mais fortes.
Ao longo do tempo, a tendência se autorreforça. Vira uma bola de neve, até porque as fêmeas passam a preferir inconscientemente esse tipo de parceiro – são eles quem garantem que os genes delas próprias passem adiante de forma bem sucedida, afinal, já que produzem descendentes mais fortes.
Entre gorilas ou elefantes-marinhos, por exemplo, os machos dominantes costumam ser brutamontes com o dobro da massa corporal das fêmeas – 200 kg versus 100 kg no caso de um gorila adulto e das fêmeas de seu harém, por exemplo. As dimensões descomunais e o peito cheio de músculos servem para confrontar outros machos que queiram tomar seu poder, além de desencorajar aventuras extraconjugais das “esposas”.
E isso parece ter um efeito colateral curioso: seus testículos e pênis são proporcionalmente minúsculos perto dos de chimpanzés (e dos de machos da nossa espécie). Ao que tudo indica, o encolhimento se deu porque as fêmeas são controladas por poucos machos. Logo, os gorilas não precisam produzir grandes quantidades de espermatozoides para competir pela fecundação com o esperma de outros indivíduos dentro do organismo das parceiras.
Mas o contrário também acontece. Em algumas espécies em que o controle da vida reprodutiva recai sobre as fêmeas, elas é que tendem a ser maiores, mais agressivas ou mesmo a exibir características aparentemente masculinas nos seus órgãos sexuais. É algo que se verifica em várias espécies de lêmures – aqueles primatas primitivos e esquisitões da ilha de Madagáscar – e suricatos (célebres por causa do personagem Timão de O Rei Leão). Mas o caso mais extremo é o das hienas-pintadas (Crocuta crocuta), estudadas por Davidian na reserva natural de Ngorongoro, na Tanzânia.
As hienas-pintadas do sexo feminino são portadoras de um pseudopênis, um pouco mais curto que o pênis verdadeiro dos machos – só que mais grosso e com uma glande mais arredondada. Trata-se, na verdade, de um clitóris tamanho família, enquanto os lábios vaginais, fundidos, formam pseudotestículos.
A conformação desse singular aparato das hienas fêmeas é tal que nenhum macho é capaz de penetrá-las contra a vontade delas. Os machos precisam adotar uma postura submissa quando tentam se acasalar, e elas costumam preferir indivíduos mais jovens. A cópula acontece pela abertura do pseudopênis, que vai se recolhendo “para dentro” conforme a penetração acontece. Parece dolorido, e talvez seja mesmo, já que ambos os parceiros passam vários minutos lambendo sua genitália depois da consumação do ato. Mas foi assim que as fêmeas da espécie ganharam protagonismo na seleção sexual.
As fêmeas contra-atacam
Do lado das moças, a estratégia radical de desenvolver um pseudopênis muitas vezes não é necessária para equilibrar o jogo. O importante é retomar ao menos parte do controle sobre a própria capacidade reprodutiva, e dá para fazer isso das mais variadas maneiras.
Há, por exemplo, as fêmeas com espírito de agentes do caos dos mangustos-listrados (Mungos mungo), pequenos carnívoros africanos aparentados aos suricatos. As fêmeas da espécie incitam brigas de seu bando com grupos vizinhos cujo objetivo é distrair os machos que normalmente as monopolizam.
Desse jeito, elas conseguem achar parceiros entre os machos do outro grupo.
Já as fossas (Cryptoprocta fossa), animais de aparência levemente felina, endêmicos de Madagáscar, adotam a estratégia do “motel arbóreo”. Embora o bicho não seja arborícola em situações normais, as fêmeas no cio ficam esperando os machos no alto das árvores. Os pretendentes se aproximam com aquela sede ao pote de sempre, mas elas só se acasalam com os que realmente despertam seu interesse – empurrando os demais de volta ao solo.
Um tipo de virada de mesa ainda mais sutil é o hormonal. Em muitas espécies, as fêmeas costumam emitir o que os biólogos chamam de “sinais honestos” de que seus óvulos estão prontinhos para serem fecundados – coisas como um inchaço ou uma mudança da coloração na região da genitália, por exemplo.
De vez em quando, porém, pode valer a pena transformar os tais sinais honestos em sinais enganadores. Em espécies que são promíscuas, isso pode fazer com que machos indesejáveis até consigam copular com as fêmeas, mas se tornem incapazes de gerar filhos com elas, as quais “se guardam” para os machos que realmente são de seu interesse.
Os sinais enganadores sobre a fertilidade parecem estar por trás, por exemplo, da vida tranquila e relativamente igualitária dos ou chimpanzés-pigmeus (Pan paniscus). Nessa espécie, as fêmeas têm elevado prestígio social e muitos conflitos são resolvidos por meio do sexo, e não da pancadaria – justamente o contrário do que acontece no caso dos chimpanzés–comuns. Já os testículos dos machos são enormes: sinal de que a competição reprodutiva se dá dentro do corpo das fêmeas. Vence quem produzir mais espermatozoides – o oposto do que se dá com os gorilas.
Outra possibilidade é a concentração da fertilidade delas numa janela tão estreita de tempo (algumas horas por ano apenas, no caso de certos lêmures) que, para os machos, deixa de valer a pena o hábito de ficar no pé das parceiras.
E quanto ao bom e velho Homo sapiens? Bem, nossa anatomia e fisiologia trazem algumas pistas. Para começar, como você deve ter reparado, o dimorfismo sexual da nossa espécie é bastante modesto e nem se compara ao dos gorilas – sinal de que haréns não são “naturais” entre nós.
Os sinais de fertilidade das humanas do sexo feminino também não são nada óbvios de detectar, o que, de certa maneira, faz com que elas não sejam tão diferentes das fêmeas de bonobos.
É verdade que inúmeros homens poderosos ao longo da história fizeram questão de monopolizar sexualmente o maior número possível de mulheres – mas esse tipo de comportamento é uma “inovação” comparativamente recente, que apareceu após a invenção da agricultura, cerca de 10 mil anos atrás. Mesmo depois disso, essa era, em geral, uma opção para poucos. Sempre foi muito mais comum uma relação mais íntima e menos desigual entre homens e mulheres. Eis aí um pensamento encorajador.
Fonte: abril