Inúmeros são os transtornos que impactam na saúde mental das mulheres ao redor do mundo. Entre eles, está o Transtorno de Personalidade Borderline, descrito no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) como “um padrão difuso de instabilidade das relações interpessoais, da autoimagem e dos afetos e de impulsividade acentuada que surte no início da vida adulta e está presente em vários contextos”.
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O transtorno, que afeta e afetou, a vida de personalidades como Angelina Jolie, Lindsay Lohan, Marilyn Monroe e Amy Winehouse, é um dos mais conhecidos e também um dos mais difíceis de ser diagnosticado, podendo ser confundido com transtorno afetivo bipolar, por exemplo.
A médica psiquiatra, Moliane Erédia, esclarece que o distúrbio é “um tipo de transtorno de personalidade marcado por uma instabilidade, em todos os sentidos, além também de uma impulsividade aumentada”. Além disso, de acordo com a especialista, “está ligado a forma ou maneira da pessoa funcionar”. As causas são variadas e incertas, mas, como elucida a profissional, “geralmente envolve uma combinação de fatores os quais, traumas, estresse ambiental, genética, ente ouros”.
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Já em relação à sintomatologia, “extrema dificuldade em tolerar abandono; relacionamentos interpessoais instáveis e intensos; impulsividade em uma ou mais áreas da vida; rápidas oscilações de humor; sensação de vazio crônico mesmo quando as coisas estão indo bem; raiva intensa e inapropriada; comportamento suicida e de automutilação; e distúrbios de identidade”, são alguns dos mais comuns nesse quadro, pontua Dra. Moliane. Além disso, a prevalência desse transtorno pode variar de 1,6 a 5,9, e é predominantemente diagnosticado em mulheres, como aponta o DSM-V, levantando uma bandeira de alerta para a saúde emocional feminina.
Dessa forma, o Dicas de Mulher convidou a escritora cearense, PhD em História e professora universitária, Dia Nobre, diagnosticada em 2015 com o transtorno de personalidade borderline, para falar sobre os reflexos desse diagnóstico nas vivências diárias, nas relações e em sua carreira. Confira a seguir:
Dicas de Mulher – Você poderia falar um pouco sobre você, sobre sua atuação como professora e escritora, e sua vida antes e depois do diagnóstico de transtorno borderline?
Dia Nobre – Eu sou professora universitária há sete anos e tenho pós-doutorado em História. Minha carreira como escritora é mais recente, eu comecei a publicar em 2020. Meus dois livros de ficção, são uma autoficção, quer dizer, em ambos há muito de mim. Emprestei às personagens, minhas memórias e emoções. No primeiro, ‘Todos os meus humores’ (Penalux, 2020), eu falo sobre o transtorno de forma mais específica, por ser um livro de poemas. No segundo, ‘No útero não existe gravidade’ (Penalux, 2021), através de contos, eu narro a história de uma menina que foi abandonada pela mãe na adolescência e como esse trauma a marcou gerando os transtornos que ela sofre na vida adulta. Acho que uma das coisas decisivas para mim, com relação ao diagnóstico, foi poder entender o funcionamento do meu cérebro. Entender porque eu me sentia tão diferente dos outros, entender a autofobia, o medo da rejeição, a atelofobia e as mudanças constantes de humor, e, principalmente, entender que eu não tinha culpa por ser diferente. Ou melhor, que não era algo pelo qual eu devesse me sentir culpada.
Como você descobriu o diagnóstico de transtorno borderline? Surgiram alguns sinais que te deixaram em alerta referente a sua saúde mental?
Eu não lembro, exatamente, quando comecei a ter crises recorrentes. Desde a adolescência já lidava com altos e baixos, momentos de extrema tristeza alternados com uma euforia incontrolável. Mas, somente em 2013, perto de completar 30 anos eu decidi procurar um médico. Fui a um neurologista que me receitou ansiolíticos e me disse que meu sofrimento era derivado da sobrecarga de tensão que vivia naquele momento, escrevendo a tese de doutorado, estudando pra concurso, incerteza sobre o futuro etc. Eu errei duplamente, primeiro, porque omiti muita coisa na consulta e fiz parecer que era algo novo e pontual, e errei por procurar o médico errado. O fato é que eu tinha muito preconceito com relação às doenças mentais e ir a um psiquiatra, era assumir que precisava de ajuda real. Em 2015, durante uma crise particularmente forte, com ideação suicida e tudo mais, acabei chegando ao psiquiatra que me acompanha até hoje, e logo em seguida, comecei a fazer análise. Foi um momento muito delicado para mim, pois esse diagnóstico não é algo fácil de ser obtido. Ele é facilmente confundido com transtorno de ansiedade, por isso, o acompanhamento regular com o psiquiatra e com o analista é fundamental para que se chegue a ele. Exige paciência e comprometimento com o processo. Não há uma medicação específica pra quem sofre com o Transtorno de Personalidade Borderline. É preciso fazer testes com ansiolíticos e antidepressivos, alternar fórmulas e dosagens. Articular o tratamento com a terapia, alimentação saudável e exercícios é fundamental para que a vida seja funcional e manejável.
Como você lida com esse transtorno nas suas relações afetivas, no trabalho como professora e escritora?
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Hoje acho que lido bem, talvez os outros que não lidem. Eu sempre falo sobre o assunto nas minhas redes sociais porque pra mim é importante dizer como eu funciono. Se estou triste, tenho a tendência a me fechar. Quando estou em mania, fico hiper comunicativa. Por isso, eu nunca marco compromissos a longo prazo, principalmente, com amigos, porque pode ser que no dia eu não esteja bem para socializar. Geralmente, os compromissos de trabalho eu manejo melhor porque tenho uma personalidade bem comprometida com prazos e responsabilidades e dificilmente falho com relação a isso, mas também, hoje em dia eu só me comprometo com coisas que sei que posso cumprir, que tenho tempo hábil, sabe? Antes eu me sobrecarregava porque tinha medo de desagradar as pessoas, outro sintoma do Borderline, a gente tem muita dificuldade de dizer não por medo de que o outro nos abandone, mas hoje, se eu não posso fazer algo, digo não sem culpa.
Quais os desafios de construir e desenvolver sua carreira diante de um transtorno como esse?
Falar sobre meu transtorno mental não foi uma decisão fácil, mas foi uma decisão acertada. Me abrir para o mundo foi assumir que eu não preciso lidar com isso sozinha. Meu livro ‘Todos os meus humores’, serviu como uma vitrine onde expus as questões relacionadas ao transtorno: solidão, ansiedade, depressão, mania, ideações suicidas, uso de medicamentos controlados, sessões de terapia. Eu vim de um lugar onde a gente aprende desde cedo a jogar todos os problemas embaixo do tapete porque sobreviver era a única questão. Eu era pobre, morava na periferia no interior do Ceará e tive que começar a trabalhar muito cedo para ajudar em casa. Passei anos lidando com sintomas na base do engole o choro e continua. Quando consegui certa estabilidade a doença veio como um tornado. Levantou o tapete e eu tive que limpar tudo — quantas pessoas aprendem a ignorar seus sintomas para sobreviver? — . Depois que publiquei o livro recebi muitos feedbacks de pessoas que procuraram ajuda profissional, começaram a fazer terapia e a buscar respostas para suas dores. É muito importante para mim saber que minha literatura ajudou alguém porque produzi-la me ajudou muito. Os desafios são os mesmos de uma pessoa neurotípica, pelo menos, no que diz respeito às demandas de uma carreira. O mundo ainda não se adaptou às necessidades de pessoas neurodiversas, nós é que temos que nos adaptar. O desafio maior é deixar o preconceito de lado e procurar ajuda médica, fazer a análise, tomar a medicação etc. De resto, somos funcionais como qualquer pessoa.
O transtorno trouxe prejuízos para sua produtividade no dia a dia, e/ou afetou suas relações?
Quando eu não sabia o diagnóstico, não fazia terapia e vivia sem a medicação, o transtorno afetava muito minhas relações pessoais. Eu era chamada de intensa, volúvel, dramática, tanto que por um tempo, acreditei que era mesmo. Me sentia culpada, achava que tinha que mudar pra me adaptar aos desejos das pessoas, sofri muito. Mas após o diagnóstico, eu passei a me colocar em primeiro lugar, a me valorizar e entendi que se alguém quisesse estar perto de mim, teria que fazer o esforço de me compreender e me respeitar.
Em seu último livro, ‘No útero não existe gravidade’, você aborda questões de saúde mental e conflitos existentes na vida de muitas mulheres. Como foi escrever sobre isso, trazendo elementos da sua própria trajetória de vida?
‘No útero não existe gravidade’ é uma autoficção que parte de um acontecimento que me causou feridas profundas, com as quais lido até hoje. Ele trata das marcas que são invisíveis aos olhos dos outros, perceptíveis apenas para quem tem a memória do acontecimento, essa teia que balança na tênue fronteira entre a lembrança e o esquecimento. Escrever sobre traumas tão pessoais têm o seu preço, pode nos fazer reviver tudo outra vez, mas também nos dá possibilidade de criar, de dar outros destinos às memórias que nos assombram. A escrita para mim, é o lugar do exagero — sempre fui chamada de exagerada — . Esgarço essas memórias, brinco com elas, estico esses fios que me levam em diversas direções, inclusive, na direção da cura; crio narrativas que dizem respeito a mim, mas também a muitas outras mulheres que viveram violências semelhantes. por isso, sempre digo que escrever é um processo terapêutico, de reflexão, de mudança de direção, mas nunca de retorno. Eu escrevo sobre o passado para continuar seguindo em direção ao futuro.
O que você diria para mulheres que também receberam esse diagnóstico? É possível ter vivências positivas e seguir a rotina?
Assumir que precisava de ajuda, foi, efetivamente, o primeiro cuidado que eu tomei com a minha saúde mental. Foi uma decisão difícil, desmarcava as sessões com a analista, inventava desculpas para mim mesma, me achava fraca. Foi bem difícil, mas, aos poucos, percebi que foi a melhor decisão que tomei na vida. A segunda melhor decisão foi me afastar de coisas e pessoas que me faziam mal, mas que eu mantinha na minha vida, por um senso de dívida, ou mesmo, por conveniência. Mapear os relacionamentos e tentar identificar aqueles que são abusivos ou tóxicos é algo primordial. Às vezes, a gente se convence de que precisa de algo só pelo medo de mudar. Cada dia que passa, me convenço mais de que a saúde mental é algo que precisamos cuidar bastante. A gente vai deixando pra lá, deixando pra outra hora, se ocupando com o trabalho, com a falta de dinheiro e até com os problemas dos outros. Menos com a gente. Chega uma hora em que descobrimos que não dá mais pra ignorar o fato de que se não estamos bem emocionalmente, não conseguiremos cuidar de mais nada. Não é ser egoísta. É cuidar de si para poder cuidar do resto das coisas. É se colocar em primeiro lugar para poder fazer da sua vida um lugar bom para outras pessoas. É se amar para poder ser plena nas suas relações cotidianas. Falar sobre saúde mental é importante. É uma forma de combater o preconceito e normalizar a busca por tratamento especializado a qualquer momento, não somente no Setembro Amarelo, mas não é fácil, exige um nível alto de empatia, exige olhar para o outro e buscar compreendê-lo. Por isso, eu digo para mulheres, que como eu, sofreram muito tempo com a falta de apoio familiar e dos amigos; que sofreram com o sentimento insuficiência e de rejeição, se amem, se cuidem, priorizem a saúde mental porque a vida é só uma e perder a sanidade é fácil demais. No meu livro, tem um poema que fala da dificuldade de viver nessa corda bamba, “viver em desequilíbrio, não é viver”, então eu insisto. E pago o preço.