Em 24 de maio de 1970, uma perfuratriz de poços de petróleo Uralmash-4E, de fabricação soviética, começou a escavar o buraco mais fundo da história humana.
As obras do poço superfundo de Kola, localizado na fronteira da URSS com a Noruega, só seriam interrompidas em 1990, quando ele havia alcançado 12,2 km de profundidade – superando com folga a Fossa das Marianas, que é o ponto mais fundo dos oceanos, com 11 km em relação ao nível do mar.
Os 12,2 km alcançados pelos soviéticos cobrem “só” um terço da profundidade até o ponto em que a crosta terrestre encontra o manto de magma, que é de 35 km na superfície dos continentes (em média).
A meta era chegar aos 15 km. Naquela época, a empresa Uralmash até desenvolveu uma nova perfuratriz, chamada Uralmash-15000, especiaficamente para essa missão. Mas a operação precisou parar antes, quando a temperatura alcançou 180 ºC – mais do que o maquinário aguentava.
O poço tem apenas 23 cm de diâmetro, e hoje é selado por uma espessa tampa de metal, fixada no chão com parafusos grossos e enferrujados. A estação de pesquisa, que jaz acima do Círculo Polar Ártico, está abandonada, em ruínas. Mas as amostras coletadas na época permitiram descobertas importantes, e são objeto de análise até hoje.
O objetivo dessa escavação ambiciosa na gélida península de Kola, acima do Círculo Polar Ártico, não era encontrar petróleo, e sim ganhar a versão subterrânea da Corrida Espacial contra os americanos – que planejaram fazer um furo equivalente nos anos 1960, com o Projeto Mohole.
(O nome é um trocadilho entre a palavra hole, que significa “buraco”, e o nome Moho. Moho é o apelido bonitinho da descontinuidade de Mohorovičić, o nome técnico do ponto em que a crosta encontra o manto.)
Os EUA pensaram algo um pouco diferente. A crosta terrestre é bem menos espessa no leito dos oceanos: cerca de 10 km, às vezes menos. Uma perfuração realizada no fundo do mar, portanto, seria capaz de alcançar o manto e coletar amostras.
Acontece que escavar a partir de um navio era uma tecnologia avançada para a época. Os EUA fizeram vários avanços no maquinário para esse tipo de furo, e foram bem-sucedidos, mas o financiamento do governo rareou e o projeto acabou cancelado ainda na sua primeira fase, em apenas 183 m de profundidade.
Até hoje, a descontinuidade Moho permanece intocada por equipamentos humanos. Tudo que sabemos sobre a interface entre a crosta e o manto provém de evidências indiretas, como a análise das ondas sísmicas geradas por terremotos (a propagação delas muda conforme a densidade do meio, e a densidade indica composição química).
Mas os 12,2 km alcançados pelos soviéticos, embora não fossem suficientes para chegar ao manto, permitiram algumas descobertas, porque as amostras coletadas foram na contramão de várias previsões sobre a geologia no interior profundo da crosta.
Alguns desses achados são, é de se admitir, um pouco entediantes para quem não é geólogo. Por exemplo: os pesquisadores esperavam encontrar granitos até uma certa profundidade, e depois, só basaltos (que são rochas ígneas, formadas por lava solidificada após erupções vulcânicas).
Calhou que havia granitos até lá embaixo, e que as diferenças detectadas nas análises de ondas sísmicas não indicavam uma divisa entre granito e basalto, e sim uma divisa entre dois tipos diferentes de granito. Os granitos mais fundos estavam metamorfoseados pela pressão extrema.
A importância de outras descobertas, porém, é mais facilmente apreensível por meros mortais. Por exemplo: havia depósitos de água líquida a mais de 5 km de profundidade, algo que não se considerava possível até então – e que gerou esperança na busca por repositórios inéditos de água doce na Terra.
O projeto foi encerrado com o colapso da União Soviética e a situação socioeconômica frágil em que a Rússia mergulhou logo depois. Nenhuma outra escavação totalmente vertical, desde então, atingiu a mesma profundidade – nem mesmo as que têm a finalidade de encontrar petróleo.
O buraco de Kola é um atestado da ousadia das batalhas no front científico da Guerra Fria. E um lembrete do quanto o interior da Terra, embora esteja apenas alguns quilômetros abaixo de nós, ainda é uma fronteira mais desconhecida (e, quiçá, mais inacessível) do que a Lua ou o Sol. O interior do nosso próprio planeta permanece tão alienígena quanto os astros ao nosso redor.
Fonte: abril