Isaac Newton tinha 23 anos quando entrou em quarentena. Era 1666. A Europa passava por uma epidemia de peste bubônica, que forçou Newton e seus contemporâneos a se trancarem em casa para evitar a contaminação. O físico tinha acabado de se formar na Trinity College, em cambridge, mas foi impedido de continuar os estudos por causa da peste. Então dedicou o ano sabático a pensar sobre alguns problemas da física.
Viveu o isolamento na Mansão Woolsthorpe, uma casa que sua família tinha no interior da Inglaterra. Embora o quintal realmente tivesse uma macieira, a história da maçã que teria caído na sua cabeça é lenda. Fato mesmo é que Newton começou a desenvolver a Teoria da Gravitação Universal nessa casa. As ideias amadurecidas só viriam a ser publicadas em 1687, no livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, ou simplesmente Principia – o nome reduzido do título (que era em latim).
Newton precisava de um método eficaz para fazer cálculos e prever o movimento dos corpos celestes – coisa que as ferramentas matemáticas da época, isoladamente, não davam conta de fazer com precisão. Aqui entra outra ideia que ele desenvolveu na época da quarentena: o cálculo infinitesimal – também chamado de cálculo diferencial e integral; ou só cálculo mesmo.
Essa é a área da matemática que estuda variações. Em especial, variações que não seguem um padrão linear, como o movimento dos planetas. Por exemplo: sabemos que a velocidade média de translação da Terra ao redor do Sol é de 107 mil km/h. Mas isso diz pouco sobre o que realmente acontece no espaço. Quando o planeta está no afélio (ponto mais distante do Sol), sua velocidade é 105,4 mil km/h, enquanto no periélio (ponto mais próximo), a velocidade é 109 mil km/h. Essas velocidades variam ao longo da órbita.
Esse tipo de cálculo só é possível, bom, com o cálculo. Mas seria simplista atribuir somente a Newton a criação dessa ferramenta. Não só porque boa parte dos conceitos já tinha sido desenvolvida por outros matemáticos e filósofos antes dele, mas também porque havia outro sujeito de peruca fazendo o mesmo trabalho, na mesma época: o alemão Gottfried Leibniz.
A questão é: Newton já trabalhava com o cálculo infinitesimal desde 1666, mas só o divulgou no Principia em 1687. Já Leibniz começou seus estudos em 1674, e publicou suas ideias formalmente no periódico Acta Eruditorum, de 1684.
A deliberação sobre quem seria o verdadeiro pai do cálculo levou a uma das maiores disputas de intelecto e poder da história da ciência – que só terminou com a morte de um deles. Antes de chegar nela, vale entender ao certo o que o cálculo faz.
O que o cálculo calcula
(Que fique claro: não espere encontrar fórmulas ou a resolução de exercícios de matemática neste texto, mas sim entender os conceitos básicos por trás do cálculo. Vamos lá.)
Para explicar o cálculo, vamos deixar o movimento dos planetas de lado e focar em algo mais terreno: o deslocamento de um carro. Suponha que um motorista faça uma viagem de uma hora de duração. Durante esse período, podemos filmar seu velocímetro – ou seja, sabemos qual é a velocidade do carro a cada instante do trajeto.
A pergunta que queremos responder é: quantos quilômetros ele andou no total? Bom, se o velocímetro ficou parado em 60 km/h o tempo todo, é fácil – ele andou 60 km em uma hora. Mas não é o que rola normalmente. O motorista acelerou e desacelerou ao longo da viagem.
Para visualizar melhor o problema, podemos transformar a variação do velocímetro em um gráfico, em que o eixo y (vertical) é a velocidade, e o eixo x (horizontal) é o tempo, como está representado abaixo. A distância percorrida é a multiplicação da velocidade pelo tempo – ou seja, a área do gráfico.
No final das contas, o desafio é descobrir a área de uma forma geométrica curvilínea. Arquimedes fez isso no século 3 a.C., por meio de algo chamado “método de exaustão”. Ele tratava o círculo, por exemplo, como se fosse um polígono de vários lados retos – algo que é mais fácil de calcular. Quanto mais lados o polígono tem, mais sua área se assemelha à de um círculo.
Essa ideia se tornaria a base do cálculo integral. Podemos transformar nosso gráfico de velocidade em vários retângulos. Mas para obter a área exata do gráfico, precisamos fatiá-lo em infinitos retângulos, e então somar a área de todos eles. Esse é o valor da integral do gráfico – no caso, a distância percorrida pelo carro.
Para fazer caber infinitos retângulos nesse espaço finito, a espessura deles deve ser infinitamente pequena também. Não temos um nome para esse tamanho, então o chamamos de dx (pois é um pedaço pequenininho, infinitesimal, do eixo x).
O dx também é usado para calcular a aceleração do carro em determinado momento do trajeto. Por definição, a aceleração diz quanto a velocidade variou ao longo de certo tempo – por isso, não faz sentido falar da aceleração em um único ponto. Mas podemos calculá-la usando dois pontos infinitamente próximos, ou seja, que estão a “dx” de distância no eixo x, e “dy” de distância no eixo y.
Se traçarmos uma linha passando por esses dois pontos, obtemos uma reta tangente, que só “encosta” no gráfico (veja no gráfico acima). Chamamos essa reta de derivada – nesse caso, ela representa a aceleração ou desaceleração do carro naquele ponto. A derivada é obtida por meio de outra ferramenta matemática, o cálculo diferencial.
No século 19, a noção de uma distância infinitamente próxima foi substituída pelo limite, outro conceito essencial do cálculo. A ideia é parecida: podemos nos aproximar o quanto quisermos de um número, sem nunca “tocá-lo”. Imagine que você está numa estrada a exatos 120 km/h, fazendo uma viagem de 500 km. Aí você para no posto por 10 minutos. Então volta para a rodovia, a 120 km/h. Ao chegar ao destino, sua velocidade média será um pouco abaixo de 120 km/h. Mais: mesmo que você rodasse infinitos quilômetros, por toda a eternidade, a velocidade média jamais chegaria a 120 km/h, já que um dia você parou no posto. Ela seria de 119,99999… km/h. Sempre ganhando um nove a mais enquato você progride. É isso.
Agora podemos sair da estrada e aplicar o cálculo integral e diferencial a outros gráficos e situações. Eles permitem extrair informações mais precisas sobre o que acontece ao longo de qualquer processo que envolva uma taxa variável, como o voo de um pássaro, o fluxo de um rio, ou o calor solar absorvido pela Terra.
Isso é o que todo estudante universitário de exatas aprende nas primeiras aulas de Cálculo I. Mas é só o começo da história. Como uma boa saga de livros, os raciocínios ficam mais sofisticados nas matérias de Cálculo II, Cálculo III… (cursos como Matemática Pura chegam ao Cálculo VI). Mas, para o objetivo deste texto, podemos parar por aqui.
Uma nova área da matemática
O conceito de infinitesimal (algo infinitamente pequeno) já era bem desenvolvido antes de Newton e Leibniz. Matemáticos como Bonaventura Cavalieri, Pierre de Fermat, John Wallis e Isaac Barrow já trabalhavam com integrais e tangentes na primeira metade do século 17 – este último, inclusive, foi professor de Newton. Por que, então, o atestado de paternidade costuma ir só para dois físicos?
Até então, os conceitos de integrais e derivadas eram estudados separadamente. A principal contribuição de Newton e Leibniz foi juntá-los, formulando o que conhecemos hoje como Teorema Fundamental do Cálculo. Ambos demonstraram matematicamente que a derivada é a operação inversa à integral. E vice-versa.
O gráfico que mostramos no tópico anterior pode ser escrito como uma função: uma equação que descreve como os pontos do eixo y devem se comportar dependendo do eixo x. Se você calcular a derivada de uma função, basta fazer a operação de integração para voltar à função original. E se você tem a integral, pode derivá-la para voltar à função também. Veja como esse conceito se traduz no exemplo do carro:
Newton e Leibniz sistematizaram e relacionaram todas essas ideias, percebendo que poderiam ser mais do que ferramentas isoladas, e tornarem-se uma nova área da matemática. Cada um fez isso ao seu modo: Newton chamava seu trabalho de “Método de Fluxões”, enquanto Leibniz não usava um nome em específico. Os raciocínios eram distintos, mas chegavam ao mesmo lugar.
Guerra de gigantes
No final do século 17, após a publicação de Leibniz, em 1684, e a de Newton, em 1687, o debate sobre o verdadeiro criador do cálculo estava formado. O físico inglês acusou o alemão de ter lido e plagiado seus manuscritos. A discussão foi fomentada por colegas e defensores de Newton, como o matemático John Keill. Mais do que um debate sobre a autoria, a questão virou uma disputa nacionalista. A opinião pública da Inglaterra ficou do lado de Newton. Os alemães, obviamente, tendiam para Leibniz.
Acontece que Newton era bem mais influente no meio acadêmico. Leibniz era formado em direito, e havia tido pouco contato com matemática antes de 1670 – seus estudos eram mais voltados à filosofia. Enquanto isso, Newton já era uma celebridade britânica, graças a seus trabalhos sobre órbitas planetárias e óptica – em 1705, seria ordenado cavaleiro pela Rainha Ana (1665-1714).
Newton também havia sido eleito presidente da Royal Society de Londres em 1703, uma instituição que reunia os acadêmicos de maior destaque da época para discutir questões filosóficas e científicas. Durante seu mandato, o físico instaurou um comitê de análise para determinar a verdadeira autoria do cálculo infinitesimal.
A investigação consistiu em analisar manuscritos e cartas trocadas entre os matemáticos da época – inclusive entre Newton e Leibniz. Em 1712 saiu o parecer, indicando o inglês como verdadeiro pai do cálculo. O texto foi publicado sob o nome da Royal Society, mas hoje sabemos que foi Newton quem articulou a conclusão do artigo. Não satisfeito, ele ainda escreveu uma revisão e comentário sobre esse caso, publicado anonimamente no periódico Philosophical Transactions of the Royal Society, em 1715.
Enquanto se engalfinhava com Newton por meio de cartas, Leibniz trabalhava como conselheiro e historiador da corte dos Brunswick, na Alemanha. Por meio de pesquisas de genealogia, ele ajudou a família a assegurar o posto como governantes do Eleitorado de Hanôver. Após a morte da rainha Ana, em 1714, George Louis de Hanôver se viu como o primeiro na linha de sucessão ao trono britânico – pois é, as famílias reais europeias tinham (e têm) fortes laços de sangue. Leibniz entendeu que o fato de ser alguém próximo do novo rei da Grã-Bretanha seria sua chance de dar a volta por cima.
Mas não rolou. O rei, que assumiu o trono sob a alcunha George I, levou sua corte de estudiosos para a Inglaterra, menos Leibniz. Ele não queria desavenças com Isaac Newton, que era contrário à presença de Leibniz por lá. O matemático alemão perdeu o cargo que ocupava desde 1678.
Apesar de tudo, Leibniz nunca reconheceu as acusações de Newton. Hoje, o consenso é que ambos descobriram o cálculo independentemente – Newton antes, e Leibniz um pouco depois. O alemão morreu em 1716, doente e na miséria. Reza a lenda que a única pessoa próxima presente no funeral foi seu secretário (Leibniz não tinha esposa ou filhos). Ele foi enterrado em uma cova anônima, que só receberia uma identificação anos depois. Newton morreu em 1727, ainda como presidente da Royal Society.
Hoje, os matemáticos preferem olhar para o cálculo como uma construção que evoluiu ao longo dos séculos, com contribuições de outros matemáticos que viriam depois de Newton e Leibniz – nas quais um passo não seria possível sem o anterior.
Mesmo assim, o alemão ainda poderia puxar a sardinha para si: a notação científica usada no cálculo atualmente é a de Leibniz, por ser mais sucinta que a do “Método de Fluxões” de Newton. Ele criou o dx e o dy que mencionamos anteriormente, além do símbolo que representa a integral (∫). Se os contemporâneos não o fizeram, a história deu conta de reconhecer Leibniz.
Fontes: Gildo Magalhães, diretor do Centro de História da Ciência da USP; livro “The history of the calculus and its conceptual development”; livro “Grandes debates da ciência”. Agradecimento: Renato Antoniassi, engenheiro de computação.
Fonte: abril