Até ontem, se você perguntasse a um paleontólogo o que foi a megafauna, receberia uma resposta mais ou menos assim: “um conjunto de grandes mamíferos que habitou a Terra durante o período Pleistoceno, uma era geológica que terminou há cerca de 12 mil anos”.
Você provavelmente também ouviria que esses animais foram subitamente extintos por uma sucessão de mudanças climáticas e ecológicas ao final da última glaciação, que incluíram a ação de caçadores humanos.
Agora, um novo estudo com a datação de oito fósseis da megafauna brasileira sugere que, na verdade, vários desses animais ainda driblaram a extinção até cerca de 3 mil anos atrás — o que é ontem na escala de tempo da evolução biológica.
Essa descoberta tem implicações para muitas áreas do conhecimento, já que a extinção da megafauna há cerca de 12 mil anos é um dos vários elementos que embasam a determinação da fronteira entre o pleistoceno e época geológica atual, chamada de holoceno.
Publicado hoje (24) na revista científica Journal of South American Earth Sciences, o artigo é fruto da pesquisa de pós-doutorado de Fábio Henrique Faria, do departamento de geologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Fábio estudou fósseis guardados em dois acervos museológicos: no Museu de Pré História de Itapipoca (MUPHI), no Ceará, e na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).
A descoberta foi por acaso: a ideia era datar alguns itens do acervo para acrescentar informações ao que já sabia sobre a época icônica em que predominou a megafauna — conhecida pelo público não especialista graças à animação A Era do Gelo.
Antes disso, já existiam dúvidas sobre o declínio de mamíferos gigantes na virada do pleistoceno para o holoceno, já que a linha do tempo fornecida pelos fósseis tem buracos que dificultam o estudo sobre a extinção das espécies gigantes.
“De início, não foi uma ideia proposital descobrir a megafauna holocênica [pertencente ao Holoceno, era geológica atual]. O intuito principal era dar maior resolução temporal para esse período em que essa megafauna existiu na América do Sul.”, explica Faria.
“Então, a gente quis datar para ver se encontrava coisas novas. Por sorte, ou por trabalho, a gente conseguiu encontrar essas datações holocênicas.”
Os espécimes estudados eram fragmentos fósseis de sete espécies diferentes.
Do sítio do Ceará, vieram amostras de um tigre-dente-de-sabre; uma preguiça-gigante; um Xenorhinotherium bahiensis, um animal extinto que tinha o corpo de lhama e a tromba de uma anta; um mastodonte; um toxodonte, um quadrúpede do tamanho de um rinoceronte; e, por fim, uma paleolama, um camelídeo maior que as lhamas atuais.
Já do sítio paleontológico do Rio Miranda, no Mato Grosso do Sul, veio um dente de preguiça-gigante. Todos os fósseis são holocênicos, com idades que variam entre 8 mil e 3,3 mil anos.
Os materiais foram escavados em 2006 e 2010, respectivamente, e estavam guardados desde então. “Isso revela até a grande dificuldade que a gente tem na ciência do Brasil. Em 2006, a coleta. Em 2025, sai a publicação.” diz Celso Ximenes, coautor do estudo e pesquisador MUPHI.
“Isso parece abandono, mas não é, porque, realmente, as datações são caras e a gente nem sempre tem esses recursos. A gente conseguir publicar um artigo que vai trazer impacto. A gente fica muito orgulhoso, porque só nós sabemos o quanto é difícil, muito custoso.”
Os pesquisadores realizaram a datação por carbono-14, um método que permite calcular a idade de materiais orgânicos analisando o decaimento do carbono-14, um isótopo radioativo. Ela é usada para determinar a idade fósseis e outros itens com até 70 mil anos; você pode entender melhor o processo neste texto.
Os dois locais de origem dos fósseis, Ceará e Mato Grosso do Sul, são separados por muitos quilômetros e abrigam biomas bem diferentes entre si. “São extremos, mas, ao mesmo tempo, as datações mostram que existe uma sincronia.”, explica Edna Facincani, coautora do estudo e professora da UFMS.
Para os autores, isso é uma pista de que a extinção das espécies não foi abrupta, como se imaginava, mas um processo que levou alguns milênios.
No Brasil, a transição do Pleistoceno para o Holoceno, há cerca de 12 mil anos, foi marcada pelo aumento das temperaturas e da umidade. As florestas tropicais, como a Amazônia e a Mata Atlântica, se expandiram e dominaram áreas que antes eram mais abertas.
Além de influenciar nos padrões de ocupação humana no território, essas mudanças também impactaram diretamente a megafauna.
Hermínio Araújo-Júnior, coautor do estudo e presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, aponta que futuras pesquisas devem se dedicar a desvendar “quais foram as condições desses lugares para que essa fauna tenha existido por tanto tempo, em uma condição climática que a gente sabe que era muito diferente da propícia para essa fauna.”
A América do Sul foi o continente em que a extinção da megafauna foi mais brutal, com o desaparecimento de cerca de 83% dos gêneros de mamíferos enormes.
O estudo da natureza dessas mudanças e das características das espécies sobreviventes e extintas fornece pistas importantes para compreender e prever impactos das mudanças climáticas que vivemos atualmente.
A descoberta dessa megafauna recente também permite especulações empolgantes no campo da antropologia. Por exemplo, muitos grupos indígenas da Amazônia brasileira e boliviana narram a existência do mapinguari, um ser da floresta bem peludo e com mais de dois metros de altura.
Existem muitas variações na forma como o mapinguari é descrito: um olho só, três bocas, peito de pedra e outros traços físicos assustadores. A tradição indígena é unânime em considerá-lo agressivo, fedorento e barulhento.
Há décadas, pesquisadores especulam que o mapinguari pode ter alguma relação com a preguiça-gigante, e que sua história poderia um resquício do contato que povos indígenas teriam tido com esse animal antes de sua extinção.
A perspectiva é controversa entre os cientistas, em parte porque se acreditava que a extinção das preguiças-gigantes teria ocorrido há 12 mil anos. Mas isso pode mudar com a nova datação, que aponta que esses animais estiveram presentes no território brasileiro até cerca de 6 mil anos atrás.
Ismar Carvalho, coautor do estudo, afirma que existem muitas “lendas e pinturas rupestres que retratam elementos que nos remetem visualmente à megafauna. A lenda do mapinguari é, com certeza, a mais forte delas.”
A equipe antecipa que a descoberta pode encontrar alguma resistência na comunidade científica internacional.
Eles acreditam que parte dessa resistência virá do fato dessa ser uma pesquisa realizada apenas por cientistas e instituições brasileiras — um preconceito que é parte do que se denomina colonialismo científico, um problema comum na paleontologia e em outras áreas do conhecimento.
No passado, outros estudos já haviam constatado a presença de megafauna nos pampas argentinos e uruguaios já durante o holoceno. Segundo Faria, essas datações foram “desprezadas” e “colocadas de escanteio”.
“Toda quebra de paradigmas sempre vai gerar uma resistência. Mas, se isso não existir, a gente não vai avançar na ciência.”, aponta Araújo-Júnior.
“A ciência cotidiana, vou chamar assim, é aquela em que a gente incrementa algo no que já foi produzido. Mas a gente está tratando aqui de uma outra esfera de ciência: estamos tratando da esfera de ciência que está modificando a ciência.”
Fonte: abril