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Ciência & Saúde

‘Hambúrguer de laboratório: vantagens e desvantagens da carne sintética’

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Poucos lugares no mundo já serviram carne de animais que não foram mortos. Por tempo limitado, o restaurante 1880 e o açougue e bistrô Huber’s, em Singapura, ofereceram frango cultivado em laboratório. A cidade-estado asiática foi o primeiro país do mundo a aprovar a venda desse tipo de produto, em 2020. Por lá, uma filial da empresa americana Eat Just fabrica os frangos a partir da multiplicação de células de galinhas vivas.

Pouco tempo depois veio o aval da FDA, agência de vigilância sanitária dos Estados Unidos, em 2023. O frango de laboratório já apareceu no menu do Bar Crenn, em São Francisco, e do China Chilcano, em Washington D.C. – novamente, por tempo limitado. Somando os clientes dos restaurantes (e mais alguns investidores, influencers e pesquisadores), pouquíssimas pessoas já experimentaram essa iguaria futurista.

Vale lembrar que os hambúrgueres do futuro e frangos incríveis encontrados nos supermercados brasileiros não são carne cultivada em laboratório. Eles têm origem 100% vegetal – o aroma, a textura e a aparência de carne vêm de uma série de aditivos, além de técnicas industriais e culinárias que não dependem de animais.

Já o frango servido nesses estabelecimentos seletos dos EUA e de Singapura é completamente diferente. A carne é, de fato, animal. A diferença básica entre um filé convencional e o cultivado é que, no primeiro caso, as células crescem dentro da própria galinha; no segundo, elas se multiplicam em laboratório. Uma exige o abate do animal para o consumo; a outra, não.

Galinhas à parte, o principal foco dos pesquisadores que desenvolvem essa técnica é a carne bovina. A pecuária é responsável por 7,4% das emissões mundiais (1) de gases geradores de efeito estufa. O desmatamento para a produção de soja (que vira ração) e pasto (para abrigar gado) reduz a capacidade das florestas de absorver carbono. Além disso, o sistema digestivo dos bois não está exatamente preocupado com a crise climática: esses animais liberam metano (CH4) no ambiente na forma de puns abundantes.

“A agricultura celular está dando uma guinada agora justamente porque existem problemas que a gente precisa resolver”, diz Mariana Ueta, socióloga e pesquisadora de novas tecnologias alimentares na Universidade de Wageningen, Holanda. “Para as mudanças climáticas, o uso da terra e as emissões de carbono, essa tecnologia pode ajudar.” O cultivo de filés também pode dar mais autonomia a países que não têm território suficiente para alimentar a própria população.

Infográfico, em fundo preto, com o histórico de produção de carne cultivada.
(Arte/Superinteressante)

O interesse de Singapura em startups de carne cultivada é justamente aumentar a soberania nacional. O plano de governo “30 por 30” prevê que a ilha passe a produzir 30% dos alimentos que consome até 2030. Para atingir essa meta e ainda manter o consumo de carne, o território – que tem metade do tamanho do município de São Paulo – não pode depender da pecuária extensiva.

O mesmo vale para Hong Kong e Israel, que aprovaram, respectivamente, foie gras e carne bovina cultivada em 2024. Apesar da aprovação nesses países, a carne de laboratório ainda não está nas prateleiras de supermercado – e mesmo os restaurantes não mantêm o item fixo no cardápio. “Pode levar anos desde a aprovação até a comercialização”, diz Alysson Soares, head de políticas públicas do The Good Food Institute Brasil (GFI), uma ONG em prol das proteínas alternativas. Atualmente, o principal desafio da carne cultivada é a produção em massa.

Fazenda de células

A primeira carne cultivada surgiu em 2013. O cientista Mark Post, da Universidade de Maastricht, dedicou sua carreira a desenvolver um hambúrguer a partir de algumas poucas células retiradas de um boi. A empreitada custou 215 mil libras esterlinas na época, o que equivale a R$ 2,17 milhões em valores atuais. A primeira degustação, feita por críticos gastronômicos, foi transmitida na TV britânica.

“Naquela época, ele estava desenvolvendo a ciência por trás de fazer um hambúrguer do zero”, diz Ueta. Desde então, diferentes empresas de biotecnologia entraram no ramo, e houve um barateamento dos insumos e meios de cultivo da carne – que, apesar de cara, se tornou acessível para um público seleto. O sanduíche de frango cultivado servido no Huber’s, por exemplo, custava 18,50 dólares de Singapura (R$ 80) em 2023.

Imagem de pedaços de carne em recipientes de laboratório.
Diferentes tipos de carne podem ser produzidos a partir de células de gordura, músculo, estruturais etc. As opções vão de hambúrguer a foie gras. (Felipe del Rio/Superinteressante)

Seja de boi ou de galinha, a lógica por trás da produção da carne é a mesma. As primeiras células são colhidas por meio de uma biópsia ou pela raspagem da gengiva ou pele de um animal vivo. Essa amostra contém diferentes tipos de células: músculo, gordura, pele e até células-tronco. Os produtores estão interessados nestas últimas, que ainda não estão especializadas em uma única função (as células-tronco podem se transformar em qualquer tipo de célula). Em laboratório, elas são isoladas das demais.

As melhores são inseridas em tanques chamados biorreatores, que fazem o papel do corpo do animal. Eles têm a temperatura e o pH de que a célula precisa para se multiplicar, além de aminoácidos, vitaminas, minerais e outros nutrientes que os animais geralmente adquirem por meio da alimentação.

Hormônios introduzidos no meio de cultivo induzem a diferenciação e o crescimento das células. Dependendo das moléculas postas ali, genes específicos se ativam ou desativam – e as células-tronco vão se transformando em tecido muscular, gordura e fibroblastos (células estruturais), dentre outros tipos que compõem um pedaço de carne.

Um dos fatores de crescimento mais utilizados – tanto na carne cultivada quanto em outras pesquisas que envolvem a multiplicação de células em laboratório – é algo chamado “soro fetal bovino”. Ele contém uma combinação ideal de hormônios que faz as células se multiplicarem. O problema é que, como o nome já diz, esse soro vem do sangue do coração do feto após o abate de uma vaca grávida – o que significa que a carne cultivada ainda não é uma alternativa isenta de sofrimento animal.

O soro é usado desde os anos 1950 no cultivo de células in vitro – e é crucial para o desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas, por exemplo. Mas uma coisa é utilizá-lo em pesquisas, e outra é aplicá-lo em escala industrial. Além da questão ética, o soro fetal é extremamente caro, correspondendo em média a 60% dos custos de obtenção de meio de cultivo (2). O meio de cultivo, por sua vez, é a parte mais cara da produção. Essa é a maior barreira ao barateamento da carne cultivada.

“Uma das principais investigações que existem no momento é definir quais outros elementos poderiam ser maturógenos [para substituir o soro]”, diz Amanda Leitolis, bióloga especialista em carne cultivada do GFI. “Precisamos selecionar algo que mimetize o efeito dos hormônios. Pode ser um vegetal, um fungo ou alguma coisa da natureza que consiga fazer a mesma sinalização na célula.” Essas alternativas existem, mas raramente são tão eficientes quanto o soro animal.

A última etapa é montar o produto. As células diferenciadas viram ingredientes para carne moída, hambúrguer, linguiça, nuggets, foie gras etc. Cortes estruturados (como um filé ou peito de frango) são os mais difíceis de reproduzir, pois exigem moldes específicos para a adesão das células.

“Eu posso ter proporções de gordura diferentes, escolher o tipo de gordura”, diz Leitolis. “Tem a possibilidade de customização […] Não só para ter um produto mais saudável mas também para direcioná-lo para populações específicas – por exemplo, pessoas que têm alguma deficiência e precisam de um produto com determinada textura ou certos nutrientes.”

O peso da carne cultivada

Outro obstáculo é o tamanho dos biorreatores – os equipamentos em que as células se multiplicam. Todos os que existem hoje no mundo, juntos, têm capacidade de 15 milhões de litros. Para suprir 1% do consumo de carne dos Estados Unidos, seriam necessários 120 milhões de litros. E, se quiséssemos alimentar o mundo apenas com carne cultivada, precisaríamos de 60 bilhões, segundo uma estimativa da empresa Ark Biotech. Ou seja: precisamos de outra revolução industrial.

Um relatório produzido pela GFI estima que, até o fim de 2026, a capacidade de produção somada de todas as empresas de carne cultivada será menor que a de um único abatedouro dos Estados Unidos (3).

“A tecnologia hoje ainda não permite uma escalabilidade massiva”, diz Soares. “As pesquisas estão vindo para entendermos se devemos fazer um escalonamento vertical [uma indústria com poucos biorreatores de grande capacidade], ou horizontal [muitos biorreatores com menor capacidade].”

Imagem de uma balança comparando o peso de um boi e um pedaço de carne.
A carne cultivada consome menos água e área de solo em comparação à tradicional. Mas vem com um alto custo energético. (Felipe del Rio/Superinteressante)

Outro problema são os hormônios e nutrientes que precisam estar presentes no meio de cultivo. Os aminoácidos, que são as pecinhas químicas que constroem as proteínas, são obtidos usando a mesma abordagem da indústria farmacêutica. “Eu produzo microrganismos em laboratório, eles fabricam os aminoácidos que eu quero, e eu os coloco no meio de cultivo”, diz Leitolis. Esse processo é custoso. Para baratear e escalar a produção, os nutrientes deveriam ser obtidos por meio de culturas agrícolas.

Mesmo em Singapura, que deu o pontapé na venda de carne cultivada, a capacidade de produção ainda é muito limitada: em 2023, a Eat Just produzia de 2 kg a 3 kg de frango cultivado por semana para fornecer ao Huber’s – o que não está nem perto de suprir a demanda total do restaurante. O frango era servido uma vez por semana, com lugares reservados.

Mesmo com esses empecilhos, os defensores dessa tecnologia argumentam que os esforços para aumentar a produção valem a pena. É inegável que a carne cultivada exigiria um menor uso de terra e água em comparação à carne convencional, além de emitir menos gases do efeito estufa. Uma pesquisa publicada no The International Journal of Life Cycle Assessment estima que, se a carne bovina cultivada atingir escala comercial até 2030, sua produção exigirá 90% menos solo, emitirá 92% menos CO2 e consumirá 66% menos água (4).

Por outro lado, esse mesmo estudo mostra que a produção da carne em laboratório exigiria 58% mais energia do que a carne convencional bovina. Esse alto consumo vem não só do uso de biorreatores mas também da produção dos insumos farmacêuticos usados no cultivo. E isso é um problema, considerando que 80% da matriz energética mundial é composta de fontes não renováveis (5).

Uma outra pesquisa da Universidade da Califórnia em Davis, que ainda não foi publicada em um periódico especializado, calculou que a produção de 1 kg de carne cultivada com as técnicas disponíveis hoje pode emitir de quatro a 25 vezes mais CO2 em comparação à carne convencional se não houver mudanças na fabricação dos insumos necessários – especialmente do caríssimo meio de cultivo, feito com o soro fetal. (6) De toda forma, é pouco provável que a produção da carne de laboratório se mantenha nos moldes atuais, devido à inviabilidade econômica dos processos.

Infográfico, em fundo preto, explicando os três pontos que dificultam a produção de carne cultivada.
(Arte/Superinteressante)

“Se no futuro a gente tiver processos mais otimizados – que já usam menos energia em si – e mais fontes de energia renovável, essas tecnologias [de cultivo de carne] têm muito potencial para se beneficiarem”, diz a socióloga Mariana Ueta. Ela explica que a transformação de tecnologias alimentares deve ser acompanhada de uma transição energética.

Mesmo com fontes de energia renováveis, porém, a carne cultivada não seria uma bala de prata contra a crise climática. O mais provável é que a carne convencional e a cultivada coexistam no mercado. O Órgão das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a FAO, estima que o consumo de proteína de origem animal cresça 14% até 2030 (7). Segundo as projeções da ONU, teremos 2 bilhões de bocas a mais para alimentar em 2050.

Os defensores da carne cultivada dizem que ela viria para preencher esse vão. “Agora é mantra das companhias dizer que não existe competição com os produtores convencionais”, diz Ueta. “Eles só vão acrescentar, porque a demanda já está crescendo de qualquer forma.”

Tanto é que as gigantes brasileiras do setor de carne, JBS e BRF, também estão desenvolvendo carne cultivada. O JBS Biotech Innovation Center, centro de pesquisa que está sendo construído em Florianópolis, será dedicado a essa tecnologia.

Na prática, é difícil prever como a proteína cultivada será incorporada às nossas dietas. Em vez de se tornar uma alternativa à carne convencional, é possível que ela estimule o consumo em excesso. “Dando uma maior possibilidade das pessoas comerem carne, às vezes quem comia carne uma vez por dia pode passar a comer cinco vezes por dia”, diz Ueta.

Essa mudança de hábito teria implicações para a saúde, já que a carne cultivada não anula os malefícios já conhecidos da carne vermelha. “As principais doenças relacionadas ao alto consumo de carne vermelha são diabetes, câncer e doenças cardiovasculares, sendo que estas duas últimas são as que mais matam no Brasil e no mundo”, diz a nutricionista Aline de Carvalho, que coordena o projeto Sustentarea, da USP.

Imagem, em fundo vermelho, de uma geladeira com a porta aberta, contendo vários pedaços de carne.
O consumo de proteína de origem animal deve crescer 14% até 2030. As empresas de carne cultivada dizem que ela viria para preencher esse vão. (Felipe del Rio/Superinteressante)

Esses problemas estão associados ao perfil nutricional da carne, seu teor de ferro, a quantidade de gordura e os modos de preparo mais comuns. “Não é por ser de origem natural ou de laboratório que isso vai diminuir.”

No momento, a parceria da Eat Just com o Huber’s segue por uma via inusitada, que pode ditar o rumo da indústria: a união da carne cultivada com produtos de origem vegetal. Em maio de 2024, o açougue passou a vender frango com apenas 3% de células cultivadas. O resto é proteína de plantas.

Esse é o primeiro produto feito com células cultivadas disponível nas prateleiras de um mercado, e não em restaurantes. O valor é de 7,20 dólares de Singapura (o equivalente a R$ 30) por 120 gramas. Enquanto os problemas industriais não são resolvidos, essa foi a maneira encontrada para reduzir os custos e aumentar a disponibilidade da carne cultivada.

O futuro reserva dois caminhos possíveis. Com uma evolução tecnológica drástica nos processos disponíveis à indústria e nas fontes de energia renováveis, a carne cultivada pode se tornar o padrão – e a carne de matadouros passaria a ser um luxo excêntrico. Outra opção, é claro, é a carne convencional permanecer mais acessível – e a carne de laboratório manter seu status de produto restrito à elite financeira, com um aumento humilde na produção. O jeito é esperar os próximos capítulos.

Fontes (1) Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura; (2) artigo “Analysis of commercial fetal bovine serum (FBS) and its substitutes in the development of cultured meat”; (3) Trends in cultivated meat scale-up and bioprocessing; (4) artigo “Ex-ante life cycle assessment of commercial-scale cultivated meat production in 2030”;  (5) International Energy Agency;  (6) artigo “Environmental impacts of cultured meat: A cradle-to-gate life cycle assessment”;  (7) OECD-FAO Agricultural Outlook 2021-2030.

Agradecimento Matheus Ferreira, jornalista.

Fonte: abril

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